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A torre de Tübingen

Ilustração: Editoria de Arte
Ilustração: Editoria de Arte

Cena Dramática

Em Tübingen, numa torre decorada com poucos móveis rústicos do século 18, o poeta alemão Hölderlin nos anos finais de sua vida, dentro de sua loucura e na representação poética-espacial-ação-musical da fragmentação perceptiva dela. Junto do poeta, sua amada Susette Gontard, chamada por ele de Diotima.

PERSONAGENS

Hölderlin. Diotima (cuja voz sairá da boca de vários objetos e projeções).

UM POUCO DA WIKI PARA A HISTÓRIA REAL

“Johann Christian Friedrich Hölderlin (Lauffen am Neckar, 20 de março de 1770 – Tübingen, 7 de junho de 1843) foi um poeta lírico e romancista alemão.

(...) Quando em 1802 recebe a notícia da morte de Susette, Hölderlin volta para a casa da mãe em Nürtingen e dedica-se ao trabalho das traduções de Sófocles e Píndaro. Em 1805 sua insanidade é diagnosticada. Entretanto, essa caracterização de seu estado mental como loucura é até hoje vista de forma incerta.

Então, em 1807 foi deixado aos cuidados de Ernst Zimmers, um carpinteiro que vivia em Tübingen e grande admirador da obra intitulada Hyperion. Sob o nome de ‘Scardanelli’, Hölderlin escreveu ainda poemas, que contavam com grande estranhamento formal. Mesmo contando com alguns períodos de lucidez, não retornou mais ao convívio social. Durante os próximos 36 anos, permanecerá em um quarto em uma torre, às margens do rio Neckar, até 1843, ano de sua morte”. (Fonte: Wikipédia)

PERSONAGENS EM AÇÃO

Hölderlin esforça-se em arrancar significado de tudo o que vê através das janelas – que é o mesmo que a plateia vê também, participando-a, assim, da loucura do poeta. Ele tenta o exercício quase impossível de, em estado de possessão poética, transmutar a realidade que vê à sua volta diretamente em poesia através de sua voz, sem o intermeio da palavra escrita ou filtrada pelo pensamento crítico-analítico.

Diotima, pelo contrário, pelo amor por Hölderlin (que se situa, em emissão sonora, flutuando entre o carnal e o espiritual), leva o poeta para a “realidade”, mas para uma realidade também cediça – feita dos inúmeros signos, luz e objetos que ela mesma vivifica.

A TORRE DE TÜBINGEN

CENA

(Hölderlin anda em círculos dentro da torre em que está – ele acredita – encarcerado. A torre conterá inúmeros retângulos (que são projeções/fachos de luz) que se espalharão múltiplos, do chão ao teto.)

Hölderlin – Alguns recortes à minha frente, olhos de imensas distâncias, talvez estelares, entre a curva delicada do nariz e de um único, imenso e múltiplo em cacos de luz, ROSTO DE MULHER – ah, nos retângulos policoloridos, neles, nos retângulos...!

(Hölderlin toca com a mão o chão, delicadamente, como uma poça d’água que repousasse abaixo de si. Trata-se da projeção de um retângulo que vai se ampliando à medida que o poeta a toca, até abarcar o palco todo. De dentro do ponto de onde ele está, outros retângulos vão nascendo, menores, se espalhando e fixando-se em todas as partes da torre.)

Hölderlin – Algumas membranas ao vento como bandeiras mortas, quantas janelas luzidias são elas! Estes batentes feitos de infinitos, entre o bem-aventurado arfar de uma mulher – não a que passa, passou, não! Somente ela, aquela que fica!

(Os retângulos começam a exibir rostos de mulheres cortados pela metade, com olhos borrados e com traços que os cortam, rudemente. Dentro deles, ainda, veem-se fragmentos de coisas comuns e objetos, como extratos de banco, trechos de propagandas em muros ou invólucros de produtos etc.)

Hölderlin – Não se oculta aos homens o Ser do Espírito, e tal como a vida, a que os homens encontrarão, assim é o dia da vida, a manhã da vida – como “riqueza”, são as altas horas do Espírito!1

(As projeções lentamente vão se transformando naquilo que de fato são: janelas, com vistas claras e azuis do lado de fora. A cena torna-se alegre com as cores. Hölderlin, porém, tenta fechar cada uma delas – trabalho inútil, já que elas são meras projeções.)

Hölderlin – Antes que a luz decline no crepúsculo, e a tênue claridade docemente serene os sons do dia...2

(Abre os braços para cima e gira-os lentamente, e as janelas também começam a girar, mas em sentido contrário. Grita:)

Hölderlin – Quando se nutre o homem de si mesmo, e mesmo e, mais ainda, mesmo, mesmo, mesmo! É como quando um dia de outros dias se diferencia, e o excelso se inclina até esse porvir...3

(Nesse instante, no centro do palco, o torso nu de uma vênus, totalmente vermelha e fosforescente, desce flutuando até o meio da cena. Da vênus escapa um canto antigo, uma ária do século 18. A canção tem uma emissão baixa, pouco audível, que jamais encobre os dizeres do poeta.)

Vênus (canto-sussurra docemente): Plaisir d’amour, ne dure qu’un moment etc.4

Hölderlin – Nomeado... Quando em tal luta aprende o homem, quando e que proveitoso e necessário para a vida...

(Pequenos e muitos olhos de vidro, pendurados como móbiles ao redor da Vênus, começam a baixar e rodeá-la. Movimentam-se e refratam a luz das janelas, como o globo de uma discoteca. Então, descobrimos que a vênus é Diotima. Somem, em tal momento, os olhos de vidro, até restar um, à altura da cabeça de Diotima.)

Hölderlin – Diotima, vê? Olhos estão por fora e por dentro! De vidro, aço, batentes, madeira podre, piano completamente cego, vozes feito luz, enxerga comigo, vamos, engole o olhar ao avesso da porta de entrada da torre!

(Hölderlin aproxima-se do móbile que restou, pega-o com as mãos e o esmigalha, estando agora com uma Diotima só corpo. Então, a estátua de Diotima começa a perder seus membros, em quedas regulares – um braço, a cabeça etc. A luz do palco se apaga.)

Hölderlin (grito longo) – Nomeado!!! Quando em tal luta aprende o homem!!!5

(As luzes se acendem num clarão súbito e quase irritante aos olhos dos espectadores. Uma janela ao fundo do palco, então mais luzente ainda, mostra-se ser um quadro de uma bela mulher setecentista, de cabelos encaracolados, morena e de busto rosado. O mesmo canto da vênus rubra é expelido daquele quadro, e Hölderlin refaz os dizeres de seus poemas, mas agora de forma interrogativa, como perguntas.)

Hölderlin – Assim é o dia da vida, a manhã da vida?

Diotima – Você e eu, Diotima.

Hölderlin – E a tênue claridade???

Diotima – Você e eu, Diotima. Eu, e o meu vítreo corpo... O que foi feito dele, voz, diga-me? Dissolveu-se na escuridão ou se fragmentou aos olhos móbiles que sumiram, numa caótica ascensão?

(Hölderlin chega à beira do palco e, num sorriso lunático, berra “Plaisir d’amour” intercalado com poemas seus, mas agora tudo sem conexão sintática, sentido ou lógica musical. A luz se apaga, e apenas um urro de Diotima se ouve – com a mesma “altura” irritante aos ouvidos da luz que se acendera antes):

Diotima – Você e eu, e mais a manhã da vida, numa janela muda!!!!!

(A luz se acende, apenas uma janela imensa e sem imagem ao meio do palco permanece, e já não se vê mais Hölderlin).

FIM DA CENA

 

Luciano Garcez é poeta, músico, dramaturgo e autor de Salutz a uma Dama Moura (Multifoco, 2010), L’Ascension: o Sia, o Cristal do Milagre Chinês (E-Galáxia, 2015), A Mais Atada à Tua Palavra: “O Caderno de Mariana L., em Mãos Seguido de Avulsos do Poeta B” (Kazuá, 2014) e Kleine Faust (Palavroando, 2018), entre outros livros.
 
1. Um fragmento de “O Ser do Espírito”, um dos “Poemas da Loucura”, de Hölderlin.
2. Outro fragmento, do poema “Visão”.
3. Idem, poema “Os Homens”.
4. “Plaisir d’amour”, canção clássica francesa de 1784, de Jean-Paul Martini (1741-1816), muito popular, foi gravada, inclusive, por Edith Piaf.
5. Poema “A Satisfação”.

 

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