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Parceria e Cultura Poética: As potências da educação que unem escolas, instituições e movimentos socioculturais

Matéria Poética realizado em 24 de agosto de 2017, no Sesc Campo Limpo. Foto: Ronaldo Domingues

Por Artur Ribeiro*

Uma escola que seja de qualidade, gratuita e de portas abertas para a comunidade. Esse é o desafio enfrentado diariamente por estudantes, professores e trabalhadores da educação pública. Um ideal compartilhado com diversos movimentos e instituições sociais e culturais que compreendem a educação, formal e não-formal, como um direito conquistado pela população e um instrumento fundamental na construção de uma sociedade mais humanista, justa, democrática, próspera e (por que não?) poética para todas e todos.

Todos fingem não ver

Mas é difícil de aceitar

Que criança sem escola

Não chega a nenhum lugar

 

Sabe ler, sabe decorar

Mas quem ensinou

A criança a pensar?

[...]*

Luana Silva

(Aluna da E.E. Francisco D’Amico no ano de 2015)

                * Trecho do poema retirado do livro Sarau do Binho - Antologia II, organizado por Binho e Suzi Soares, publicado pela Ciclo Contínuo Editorial/Sarau do Binho. São Paulo, 2015.

A poesia, que nas palavras da estudante e jovem poeta Luana Silva nos sensibiliza e nos ensina a pensar, pode ser uma das ferramentas para esta construção. Neste momento, em que o isolamento social se faz necessário devido à pandemia de Covid-19, compartilhar poesia pode ser um estímulo ao exercício de análises sociais, ao autoconhecimento e ao oferecimento de ouvidos e braços abertos ao outro, ainda que à distância, de forma virtual.

E como a aproximação entre a escola e movimentos e instituições socioculturais podem ajudar a quem ensina e a quem aprende nessa jornada de desenvolvimento intelectual, social e afetivo-emocional? A resposta pode estar em projetos que conseguem conectar o universo escolar com as questões de seu território local, de maneira direta, unindo teoria e prática como partes de uma mesma metodologia de aprendizagem. Nesse sentido, um dos projetos que exemplificam os benefícios deste tipo de parceria, e que surgiu a partir de pedidos de professores e estudantes, é o Matéria Poética.

Matéria Poética: cultura, educação e parceria em poesia

Idealizado pelo Sarau do Binho e realizado há quatro anos pelo Sesc Campo Limpo em parceria com escolas públicas da zona sul de São Paulo, o projeto Matéria Poética transforma a aula em uma experiência que fomenta a criatividade e a expressão por meio da poesia. A vivência poética vai muito além do gênero literário, ela é ponte entre pessoas com diferentes identidades, histórias e culturas, capaz de encantar e despertar o olhar para outros possíveis modos de conhecer e estar no mundo.

Matéria Poética realizado em 15 de março de 2018, na EMEF Mitsutani I - Jornalista Paulo Patarra. Foto: Suzi Aguiar.

A história do projeto foi marcada desde o início pela atenção voltada às escolas da periferia e pela parceria com o Sesc, mas começou bem distante das escolas da zona sul de São Paulo. Em 2015, a partir de um convite do Sesc Sorocaba, o Sarau do Binho realizou diversos saraus em escolas daquela região. Pouco depois a experiência foi transformada em projeto e encaminhada ao Sesc Campo Limpo dando início à parceria que já se encontra em sua 6ª edição. Desde a primeira edição em 2017, mais de 30 escolas públicas do território acolheram os quase 50 saraus do projeto, que somados aos seis saraus realizados no Sesc Campo Limpo, alcançaram aproximadamente 13 mil alunos.

Os relatos desta experiência mostram o impacto do projeto na vida dos estudantes. Nicoly Soares, ex-estudante da EE Francisco D’Amico quando a escola recebeu o Matéria Poética em 2018, conta o momento em que percebeu a trajetória que estava construindo como artista quando, durante um Matéria Poética, foi apresentada como “a poeta Nicoly” por um professor - o professor Guinão. Atualmente, como integrante da Coletiva Camomila e do Sarau do Binho, Nicoly intercala seus estudos no curso de Ciências Sociais da USP com seu trabalho como produtora cultural e poeta, se apresentando em diversos saraus pela cidade.

“Participar do Matéria poética fez eu me sentir profissional, ao mesmo tempo que me fez sentir que o rolê que eu estava construindo e que me ajudou muito a ampliar meus horizontes continuava existindo. E o meu sentimento é de que eu estou fazendo com outras pessoas mais novas o que fizeram comigo quando eu tinha essa idade”, conta Nicoly.

Matéria Poética online realizado em 4 de agosto de 2020, com a EMEF Mario Rangel. Imagem: Artur Ribeiro.

O impacto nos estudantes é visível também no empenho com a preparação e na expectativa para as apresentações ao lado de artistas que são referências em suas áreas de atuação e no território da escola. Samira, aluna de apenas 10 anos da EMEF Mauro Zacaria, contou sobre sua ansiedade antes da apresentação: “Eu estou muito feliz por ter sido convidada, mas estou um pouco ansiosa por ser a primeira vez que me apresento em público. Minha expectativa é me divertir e trazer muitas pessoas para fazer o mesmo”.

Neste e em outros relatos é perceptível que os estudantes trazem nas veias a motivação para criar e se expressar, e projetos como o Matéria Poética se mostram uma valiosa oportunidade de aproximação e identificação para estes jovens artistas no ambiente escolar e fora dele. Por sua vez, as iniciativas sociais e de educação não-formal, com seus saberes e experiências nos mais diversos temas, contribuem de maneira significativa tanto no desenvolvimento artístico e crítico quanto no trabalho dos professores, principais parceiros dos estudantes nessa jornada.

Uma jornada que vai além da escola

O projeto tem buscado o enriquecimento e amadurecimento do repertório dos estudantes ao provocar diálogos entre a vida escolar e a arte que pulsa nas ruas e centros culturais da cidade. Este objetivo vai ao encontro do que nos ensina a professora Conceição, da EMEF Ricardo Vitiello, “o espaço escolar precisa ter vida e movimento, e é no trabalho com essas práticas culturais, agregando cultura, é que nos encontramos nos saberes, o humano dialoga, opina, forma e transforma contribuindo para si e ao meio”.

Matéria Poética realizado em 31 de outubro de 2019, na EMEF Modesto Scagliusi. Foto: Suzi Soares.

A relevância de projetos como o Matéria Poética se faz presente também na voz da professora Simone, da EE Francisco D’Amico e da EMEF Millôr Fernandes, ao destacar que “o acesso a arte foi elitizado por muito tempo. Assim, levar o sarau para dentro da escola e da rede pública tem um potência muito grande porque mexe na escola e na comunidade [...] projetos assim precisam viralizar, não ter fronteiras, porque as linguagens artísticas humanizam e fazem a diferença. E poder contar com parceiros locais, formado por educadores, poetas, escritores, artistas do próprio território da escola, e que, portanto, compreendem as especificidades do local é de fundamental importância para os professores”.

E é nesse contexto que se faz decisiva a atuação dos trabalhadores da cultura, compromissados com a educação, que resistem e reexistem diante dos cenários de crise, como o Sarau do Binho - uma das iniciativas mais atuantes em toda a cidade de São Paulo, especialmente nas periferias onde teve sua origem há mais de 20 anos. Binho Padial e Suzi Aguiar fazem de seu trabalho um instrumento de encantamento pelo mundo e fortalecimento das redes de amizade, parceria e apoio mútuo. Foi assim que durante a pandemia Suzi e Binho tornaram-se referência de assistência social na periferia, recebendo e distribuindo alimentos, produtos de higiene e limpeza, dando apoio emocional, afetivo e poesia a quem precisa.

Para Binho, se apresentar ao lado de estudantes em escolas públicas é uma “sensação muito boa, a energia, a vibração, de estar compartilhando, sendo também professor naquele momento, como um educador [...] e de estar passando alguma coisa que possa fazer a diferença na vida deles”. E para quem pensa que não há diferença entre o Matéria Poética e outros saraus, Binho explica: “Acho que é muito importante o aluno vir para outro ambiente, por exemplo, o palco do Sesc, acho que há uma diferença na apresentação, de uma inquietação naquele momento, e uma expectativa muito boa que se cria. Isso dá um salto na qualidade do trabalho porque eles se preparam para se apresentar”.

Matéria Poética realizado em 24 de agosto de 2017, no Sesc Campo Limpo. Foto: Ronaldo Domingues.

Na perspectiva de Suzi, colocar no centro do palco estudantes que mais precisam de atenção, seja devido às dificuldades em se expressar ou que não se destacam nas disciplinas escolares, é uma das potências do projeto. Produtora cultural de um circuito independente de arte com grande impacto socioeconômico na periferia, Suzi foi co-criadora de eventos que se tornaram tradicionais na cidade, como o Sarau do Binho e a Feira Literária da Zona Sul. Entre os momentos mais marcantes do Matéria Poética, Suzi lembra de um especial: “um aluno com síndrome de down, que estava sendo alfabetizado, e a primeira leitura dele foi em um sarau que nós fizemos. Foi muito forte, muito marcante”, conta.

Ações como o Matéria Poética estimulam a troca de reflexões sobre questões presentes nos currículos escolares, porém, contextualizadas pelas vivências dos parceiros locais. O encontro dessas diferentes abordagens permite o diálogo em um circuito onde os sujeitos coletivos exercem seu papel social na luta pelos direitos sociais mais básicos para a sobrevivência humana e que não são atendidos plenamente pelo Estado - como a educação, a saúde, a moradia, a cultura, entre outros. Estes sujeitos fazem dessa trajetória de luta e construção coletiva um processo educativo.

As experiências que reúnem estudantes, professores e representantes de movimentos e instituições socioculturais mostram que o salto tão almejado na qualidade da educação está na cultura como centro do processo de humanização dos sujeitos. Este posicionamento depende, porém, de uma concepção de formação educacional ampla, que leve em conta seus aspectos cognitivos, éticos, sociais, culturais e históricos. E essa formação é de responsabilidade do Estado, de cada cidadão e de toda a sociedade.

Matéria Poética realizado em 6 de novembro de 2018, no Sesc Campo Limpo. Foto: Dayane Chagas.

Um último breve relato de experiência sobre o trabalho cooperativo entre escolas, movimentos e instituições socioculturais. Desta vez, uma memória pessoal sobre o Matéria Poética: 22 de março de 2018, uma tarde de quinta-feira ensolarada, com o Sesc Campo Limpo a todo vapor recebendo centenas de estudantes de diversas escolas; vejo poesia, dança, música, performance, declamação, surpresas e encantos a cada apresentação. Ao final, celebrando o encontro, o palco é tomado por estudantes e artistas que querem compartilhar a cena; me sinto totalmente presente naquele momento tão singular, em que o tempo voa e a vontade é de apoiar, participar, aplaudir, sem perder nada, sem piscar os olhos. A imagem que fecha este texto realça na memória os traços imprecisos daquele instante que fez vibrar, com parceria e cultura poética, os corações e o palco do Sesc Campo Limpo.

Matéria Poética realizado em 22 de março de 2018, no Sesc Campo Limpo. Foto: Ronaldo Domingues.

Matéria Poética

A 6ª edição do Matéria Poética aconteceu por meio de saraus online entre os dias 24 de julho e 11 de agosto de 2020, com cerca de 600 estudantes e professores, e 20 poetas do Sarau do Binho. Participaram desta edição as escolas E.E.Francisco D’Amico, EMEF Anna Silveira Pedreira, EMEF Marli Ferraz Torrez Bonfim, EMEF Mauro Faccio Gonçalves Zacaria, EMEF Cel. Mário Rangel, EMEF M Boi Mirim I, EMEF Millôr Fernandes e EMEF Professor Ricardo Vitiello.

Sarau do Binho

Apresentado por Robson Padial, o Binho, poeta que há mais de 20 anos vem realizando atividades de incentivo à leitura na zona sul de São Paulo, o Sarau do Binho conta com a participação de artistas em diversas linguagens, e tem a produção de Suzi Aguiar, educadora, articuladora e produtora de coletivos, que realiza diversos projetos de incentivo à leitura, como a Bicicloteca, o Livro no Ponto e a Feira Literária da Zona Sul.

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*Artur Ribeiro é bacharel e licenciado em História, e atua na equipe de programação do Sesc Campo Limpo.