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O valor da diversidade

Fotos: Nego Júnior
Fotos: Nego Júnior

AVANÇOS E DESAFIOS DA REPRESENTATIVIDADE

DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA NO MERCADO DE TRABALHO

 

Diretora-executiva do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), que neste ano completa três décadas, Cida Bento foi eleita como uma das 50 pessoas mais influentes do mundo no campo da diversidade, em 2015, pela revista britânica The Economist. Ela acumula vivência e experiência nessa organização não governamental que ajudou a criar e que produz conhecimento, desenvolve e executa projetos voltados para a promoção da equidade racial e de gênero. Sua atuação também ganha destaque em outros espaços, na luta por oportunidades iguais para mais da metade da população brasileira, formada por negros e negras. Uma parcela que, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), é a mais atingida pela escalada do desemprego, uma vez que sua taxa de desocupação é 71,2% maior que a dos brancos, no segundo trimestre deste ano. Neste Encontros, Cida Bento esteve acompanhada por dois colegas do Ceert, o advogado e coordenador de projetos Daniel Teixeira e o sociólogo, diretor e pesquisador Mario Rogerio. Os três compartilharam dados e reflexões que demandam ações urgentes de toda a sociedade brasileira.

Marco legal

O Ceert foi constituído por Ivair Augusto dos Santos, que tinha o foco em políticas públicas, Hédio Silva Júnior, com foco no movimento sindical, e por mim, que vinha da área de recursos humanos de empresas. Já naquele tempo (década de 1990), começamos a trabalhar com esses três pilares no mercado de trabalho. Durante muitos anos, discutimos com o que chamávamos de “esquerda branca”, que tinha uma concepção de trabalho, de resistência e de luta no país a partir da chegada dos imigrantes italianos. No entanto, já havia quatro séculos de luta. Até escolhemos um trecho de Clóvis Moura [sociólogo, jornalista, historiador e escritor brasileiro, 1925-2003], de uma reivindicação de escravos, que fala sobre condições de trabalho, da questão da mulher e do homem, da terra que eles precisavam ter. Com isso, a gente mostrou como a luta e como o debate sobre esse tema já tinha sido colocado muito antes da chegada dos italianos aqui, mas o sindicato não contemplava essa história. A gente vivia provocando, porque o movimento sindical e as centrais são um ator fundamental quando se fala de trabalho. Seguimos assim e, por volta de 1992, no Ceert, o Hédio Silva Júnior conseguiu localizar a Convenção 111 [adotada pela Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em sua 42ª sessão, em 25 de junho de 1958], que fala sobre equidade e igualdade no trabalho, no cargo e no salário, de mulheres e homens negros. O Brasil assinou essa convenção em 1964 e a engavetou. Nós falamos: “Isso tem força de lei e se tem força de lei a gente precisa provocar o país”. Junto com o movimento negro e com as centrais sindicais, a gente denunciou o Brasil em Genebra em 1992. Isso teve uma repercussão. A Organização Internacional do Trabalho deu um retorno ao Brasil sobre a necessidade da implementação dessa convenção e começou aí a ação do Ministério do Trabalho para a criação de núcleos em diversos estados, junto à delegacia do trabalho, para cuidar das questões da diversidade de gênero, de raça, de pessoa com deficiência. Esse foi um trabalho que durou muitos anos, que teve uma repercussão forte nas políticas públicas. (Cida Bento)

 

 

Classificação racial

A cor da pele é um dos principais e mais potentes definidores de lugares. Então, quando a gente pensa na questão racial, eu considero muito importante lembrar que a classificação racial tem que vir. É ela que vai definir os lugares, e que vai definir, efetivamente, quem está sofrendo o impacto do racismo e quem não está. Ela é uma luz que a gente coloca nos dados, nas pesquisas e nos nossos cadastros, sejam públicos ou privados. Aí é que a gente consegue entender quem tem acesso ao sistema de saúde, à educação, a hospitais de qualidade e, nesse último caso, se estes hospitais estão na região central da cidade, com certeza eles não estão atendendo a população que está na periferia, cuja maioria é negra. O quesito cor é coletado desde 1872, não é uma novidade, e é importante a gente dizer isso porque, nesses tempos, fala-se que classificação racial vai separar a sociedade, mas não vai. É um dado que deve ser considerado e coletado em instituições tanto públicas quanto privadas. Eu venho coordenando o censo da diversidade e o Ceert vem, há décadas, aprimorando metodologias para quantificar as desigualdades dentro das instituições públicas e privadas, realizando o trabalho de comparação de inserção (no mercado de trabalho), de salários, de oportunidade de promoção e de treinamento dentro das instituições, para que a própria instituição veja seu retrato no campo das desigualdades e possa pensar e desenhar juntamente conosco um plano de ação. Nós utilizamos a técnica da autoclassificação: a própria pessoa indica seu pertencimento. Não cabe a ninguém atribuir o seu pertencimento. Cabe à própria pessoa dizer: eu sou preto, eu sou pardo, eu sou amarelo, eu sou indígena, eu sou branco. A classificação reflete o impacto do racismo. E quando a gente conhece a classificação racial, a gente começa a colocar uma lupa dentro das instituições e entender se elas são equitativas. (Mario Rogerio)

 

O sociólogo Mario Rogerio

 

O RACISMO TEM QUE SER COMBATIDO A PARTIR DO LUGAR

ONDE VOCÊ ESTÁ, NAS SUAS RELAÇÕES,

NAQUILO QUE VOCÊ COTIDIANAMENTE FAZ (CIDA BENTO)

 

Postura consciente

O importante é atuar do lugar onde você está. Neste momento, depois do assassinato de George Floyd [afro-americano assassinado em 25 de maio por um policial de Minneapolis (EUA) que se ajoelhou no pescoço dele, enquanto estava deitado de bruços na estrada], quando muitas pessoas perguntam qual o lugar do branco, digo que é o lugar de tentar mudar a sociedade de onde ele está. Por exemplo, se você é um operador do direito, deve refletir sobre os próprios preconceitos, os quais são responsáveis por manter um percentual grande de jovens negros presos, sem terem sido condenados, ao mesmo tempo que libera e acredita que o réu ou a ré brancos podem aguardar em casa o julgamento. Se é uma psicóloga branca dentro de uma instituição, deve saber que a equidade não está colocada nos processos de seleção. A gente pouco percebe o quanto o nosso olhar está treinado para entender que lugares qualificados são lugares para brancos, que há uma ideia e uma menor confiança na qualificação de negros. Se você é um professor numa escola, pode saber o peso diferencial que tem o racismo na história das crianças negras. Se olharmos para as crianças negras e adolescentes negros, vamos ver que evasão escolar e mau desempenho são dados que não variam ao longo do tempo, porque a escola não é um lugar acolhedor para essa criança, não é um lugar ao qual ela sente que pertence. Assim é em empresas, no Judiciário... Eu sempre penso: o racismo tem que ser combatido a partir do lugar onde você está, nas suas relações, naquilo que você cotidianamente faz. Sem contar todas as ligações que é possível ter com os grandes movimentos em prol da equidade. (C. B.)

Cotas sociais

As cotas vêm dessa resistência negra muito forte no país, com grande impacto na democratização do Brasil. Por exemplo, o ProUni nasceu ProNegro quando foi apresentado ao governo federal, mas não podia ser só para negro, e foi lançado com o conceito de “para todos”. Hoje o ProUni beneficia tanto jovens brancos quanto negros. Se você pensar em cota, a ideia inicial era de cota racial, mas virou cota social, beneficiando tanto o branco pobre quanto o negro. É fundamental dizer que a cota cumpre um papel superimportante no país, de beneficiar também a juventude branca pobre, de beneficiar indígenas — há programas de cotas para indígenas em várias partes do país. Portanto, as cotas têm como primeiro ponto a ampliação da democracia no Brasil. Se você comparar homem, mulher, negro, branco, LGBT e outros, a mulher negra é ainda o segmento em que o impacto da cota na trajetória aparece com mais força. Você vê a presença negra nas universidades mudando as universidades e o mercado editorial. A pressão sobre as organizações públicas e privadas para que se abram portas a todos os segmentos não para de crescer. Mesmo assim, a condição das mulheres no trabalho, em geral, progride com mais dificuldade e lentidão nos censos que temos observado. As mulheres são mais escolarizadas do que os homens, mas elas têm sempre um salário inferior e menor oportunidade de promoção mesmo quando, além da escolaridade, têm mais experiência. Hoje há muitas instituições pressionando o processo de RH para incluir negras e negros. Então, notamos mudanças, sim, mas elas são mais lentas e incorporam menos empresas públicas e privadas do que gostaríamos. (C. B.)

Representação na mídia

A questão do pluralismo é fundamental, afinal, somos plurais também entre negros e negras. Não é viável nem bom que a gente tenha embaixadores e embaixadoras como se essas pessoas fossem uma representação única de um pensamento que é diverso. Além desse olhar da mídia para fora, deve haver esse olhar da mídia para dentro. Cada vez mais a população, principalmente a população negra, tem cobrado isso, que vale para empresas de ramos diversos, mas também para as empresas de comunicação. É preciso esse olhar para dentro e ver se a instituição também está caminhando no sentido de refletir essas novas vozes. Ou seja, é importante essa reflexão sobre constituição, valores e pessoas, sobretudo, para que se garanta algo consistente que reflita o que ela representa para fora. (Daniel Teixeira)

 

O advogado Daniel Teixeira

 

Cida Bento, Daniel Teixeira e Mario Rogerio estiveram presentes na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 20 de agosto de 2020.
 
 
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