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Trabalho e Refúgio

Ayesha Saeed em sua casa | Foto: Umar Javaid
Ayesha Saeed em sua casa | Foto: Umar Javaid

A série de registros e depoimentos, "Trabalho e Refúgio", com estrangeiros em situação de refúgio em São Paulo, ligados ao projeto Deslocamento Criativo, apresenta os trabalhos artesanais (perfumaria, pintura, costura e aplicação de henna) destas pessoas e suas alternativas de atuação profissional no cenário atual, além de preocupações e perspectivas futuras. O Deslocamento Criativo é uma ação de impacto social concebida para mapear, dar visibilidade e auxiliar profissionais refugiados e imigrantes.

Os registros fotográficos (exceto os de Ayesha Saeed) foram realizados pelo palestino-sírio Salim Mhanna, que é formado em Antropologia Visual pela Faculdade de Belas Artes, na Universidade de Damasco. Tem mais de 15 anos de experiência na produção e elaboração de obras audiovisuais (séries, filmes e documentários), edição, efeitos visuais e design gráfico na Síria e em Dubai, além de ter sido diretor da ICFlix, primeira plataforma árabe de filmes sobre demanda. No Brasil, produziu vídeos e fotos para o grupo teatral Os Satyros, comandou o restaurante BAB, local que mistura espaço cultural com bar de culinária árabe e também é integrante do projeto Deslocamento Criativo.

Ayesha Saeed

Nascida em Islamabad, capital do Paquistão, Ayesha Saeed é formada em Tecnologia da Informação e Relações Internacionais e já trabalhou em embaixadas. Em 2016, resolveu deixar o país natal por causa do terrorismo e da violência contra a mulher. Escolheu vir para o Brasil porque conhecia um pouco a cultura, por ter feito aulas de capoeira em Islamabad. Ao chegar aqui, trabalhou como professora de inglês, fazendo aplicação de henna nas mãos e caligrafia urdu. Há cerca de um ano começou a trabalhar na área de gastronomia, trazendo para os brasileiros os aromas e sabores paquistaneses.

Nesse momento, desde o anúncio da pandemia, consequente da COVID-19, foi muito difícil para todo mundo e para mim também. Estou sem fazer nada há quase seis meses. Felizmente tenho um marido, uma família, e por isso não fiquei tão sozinha. Desde que cheguei ao Brasil, me divido entre fazer tatuagem de henna, dar aulas de inglês, vender peças trazidas do Paquistão e oferecer comida tradicional de lá. Só há algumas semanas as aulas de inglês começaram a ser retomadas, mas não completamente. A renda da minha participação em eventos ajudava muito e isso parou completamente. Em oficinas em que ensino a fazer henna, por exemplo, como a pessoa aprenderá a manusear a bisnaga e a fazer os traços com a tintura? Ao mesmo tempo, ensino sobre a história dos usos de cada desenho, conversamos sobre as diferenças culturais e ainda mostro as diferenças dos traços da henna mehndi e de outras regiões. Sim, essas coisas também podemos fazer pela internet, mas não é a mesma coisa. Sobre o futuro, pós pandemia, também sinto insegurança. Acredito que tudo, ou quase tudo, será virtual. Agora tudo o que tenho feito é pela internet: aulas online, pedidos pelo Instagram, Facebook e WhatsApp. mas eu prefiro pessoalmente, porque a interação é muito melhor."
 

  
Ayesha Saeed em sua casa | Fotos: Umar Javaid


Duchelier Mahonza Kinkani

O congolês Duchelier Mahonza Kinkani, formado em Artes Plásticas pela Academia de Belas Ares de Kinshasa, República Democrática do Congo, também morou em Angola, antes vir para o Brasil, e lá aprendeu português, facilitando sua integração ao chegar aqui. No Brasil, criou o curso “O significado dos designs de tecidos africanos”, motivado pelas estampas dos tecidos e suas histórias, ensinando técnicas de pintura.

Quando a pandemia começou, fiquei paralisado, pois a proposta do meu trabalho é toda presencial. Tive dificuldade para transformar minhas aulas em uma linguagem digital, também porque disponho de pouca estrutura, equipamentos e outros recursos. Nesse momento, trabalhar está sendo um pouco difícil, porque a maioria dos espaços culturais estão fechados, mas a gente se adapta e já estou fazendo algumas oficinas virtuais. Realizei uma de Adinkra, que são aqueles símbolos que representam conceitos ou aforismos e são amplamente utilizados em tecidos, logotipos e cerâmicas, além de serem incorporados em paredes e outras características arquitetônicas. Por exemplo, o Akoben, também chamado de chifre de guerra, é um símbolo Adinkra que representa a vigilância e a precaução, era uma espécie de convocação de guerreiros para o combate. Também estou aproveitando esse tempo de quarentena para pintar algumas telas, criar algo autoral. Economicamente tem sido duro e a ajuda emergencial tem sido um apoio importante. Mas por acreditar no potencial da arte como uma forma de comunicação, para libertar sentimentos e emoção a cada criação, a minha perspectiva futura é que as coisas vão melhorar e logo voltarei a realizar oficinas presenciais.
 

    
Duchelier Mahonza Kinkan em casa | Fotos: Salim Mhanna


Renée Ross-Londja

Renée Ross-Londja é migrante da Guiana Inglesa. Antes era gerente de restaurante, na área administrativa, e hoje em dia, no Brasil, é empreendedora e artesã, produzindo bonecas, acessórios, livros e brinquedos criativos feitos de tecidos.

Nos últimos meses, durante esta pandemia, aprendi a depender e a confiar em Deus. No começo fiquei muito preocupada, mas tudo isso me fez reavaliar minha fé e a confiar em Deus verdadeiramente. Agradeço ainda poder trabalhar, as encomendas de máscaras diminuíram significativamente, mas desde que expandi minha linha de produtos, estou conseguindo novos clientes. Também tenho recebido doações de materiais para o meu trabalho, de forma a reduzir os custos de produção, o que é muito útil. Quando penso no futuro, penso a curto prazo, pois não acredito que as coisas voltem ao normal como estamos acostumados, então precisamos fazer mudanças na forma como fazemos negócios. Agora tudo é digital e por isso preciso fazer as mudanças para me manter atualizada, além de seguir pensando em novos produtos, ideias e projetos. Percebo que é importante priorizar, eliminar gastos desnecessários, orçar e administrar minhas finanças. Para manter minha mente longe do medo, encontro coisas para fazer que me relaxam e me trazem alegria, como a jardinagem (o que me ajuda a economizar, porque não tenho que comprar certos temperos e alimentos). Sinto muito falta da minha família, mas para concluir, vivo o dia a dia, me concentro nas coisas positivas, ajudo os outros quando posso e agradeço por tudo o que tenho. Foi realmente incrível como meu pensamento mudou durante este ano”.
 

     
Renée e suas produções em casa | Fotos: Salim Mhanna


Anas Obaid

O sírio Anas Obaid estudava jornalismo na Síria quando se viu forçado a sair do país por consequência da guerra. Por um ano morou no Líbano e se tornou voluntário no campo de refugiados naquele país, antes de vir para o Brasil, em 2016. Aqui, como meio de sobrevivência, reavivou um conhecimento tradicional de produção artesanal de perfumes, um saber muito comum em alguns países árabes, desde povos antigos.
 

 
Anas em produção e os perfumes | Fotos: Salim Mhanna


Na verdade, eu fiquei um pouco paralisado no início desta pandemia. Estava acostumado a vender meus perfumes e outros produtos em feiras, eventos e, repentinamente, tudo parou. Isso me assustou, pois tenho aluguel e outras despesas para pagar todo mês. Como o meu jeito de trabalhar com perfumes é de forma muito artesanal, baseado na conversa com as pessoas, identificando a personalidade que consigo captar na hora e observações sobre o efeito dos aromas na pele, não sabia como ia resolver de forma digital. Depois de alguns dias, o Deslocamento Criativo me estimulou a criar uma fragrância específica, pensada para este momento da pandemia e então lancei a linha Nasma. E fiz com muito cuidado, na tentativa de levar para as pessoas um aroma que pudesse gerar satisfação àqueles que estão confinados. Criei uma versão para o corpo e outro para o ambiente. Fui verificar como fazer as entregas e, dependendo da distância, passei a levar pessoalmente ou pelo correio. Depois, além dos perfumes que estou vendendo por meios digitais, também comecei a oferecer tapetes árabes, materiais de marchetaria e acessórios árabes, em geral. Também corri atrás de saber mais sobre marketing digital e criar redes de contatos para o envio de informações sobre os meus produtos. Estou aprendendo muito sobre vendas online e também estou melhorando o português, para me expressar melhor na hora de dialogar com meus clientes. Bem, eu vim de uma guerra, faz tempo que tenho enfrentado adversidades complexas, agora já estou mais confiante, aceitando encomendas variadas e pensando em dar prosseguimento nesta forma de trabalho, mesmo depois que esta crise terminar."
 

  
  
Fotos: Salim Mhanna