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Aventuras urbanas

Se essa calçada fosse minha...

Andar nas calçadas de São Paulo, em áreas ricas ou pobres, é uma aventura. Buracos, camelôs, falta de calçamento, desníveis brutais no piso - as irregularidades são imensas. Uma lei obriga cada proprietário a cuidar do calçamento de seu imóvel, mas poucos cumprem suas obrigações, aumentando o caos urbano na paulicéia
Por Silvia Bascilio

Parece brincadeira, mas uma piada urbanística européia tornou-se realidade: Londres resistiu bravamente aos ataques dos B-52 alemães, mas São Paulo não agüenta uma chuva de quinze minutos. Logo os semáforos entram em pane, os bueiros entupidos cospem lixo, as ruas ficam inundadas e o paulistano volta a repensar o projeto sempre adiado de morar numa cidade tranqüila (pelo menos mais civilizada) do interior.
Nova York, em setembro, foi vítima do maior atentado terrorista da história das metrópoles, mas os escombros das duas torres gêmeas de mais de cem andares já foram recolhidos e agora se discute o que construir naquele espaço. Desde sua instalação, há cerca de vinte anos, São Paulo ainda não teve sucesso na tarefa de sincronizar seus faróis inteligentes: na mesma avenida, um abre e o da esquina seguinte fecha.
Vamos discutir um problema paulistano: a união de áreas ricas e pobres no descaso às calçadas.

Dona Aparecida
Sexta-feira, oito e meia. A dona de casa Aparecida Sales volta para casa. Sem sucesso, procura brechas para percorrer a calçada da alameda Joaquim Eugênio de Lima, entupida de mesas de bar. Os poucos metros que restam de calçamento obrigam os pedestres a formar uma verdadeira fila indiana. Ao tentar uma ultrapassagem, a dona de casa é "esmagada" contra um telefone público por um grupo de pessoas. Resolve, então, desafiar carros e motos, arriscando-se na difícil travessia de uma rua lotada de veículos. Seu objetivo é cumprido, mas não sem antes despender certa dose de suor, passos acelerados e algum equilíbrio entre os automóveis pouco solidários à sua aflição.
O relato não se refere a uma experiência exclusiva de dona Aparecida; qualquer pedestre, na maioria das ruas paulistanas, já passou por isso. Seu desfecho, contudo, pode vir a ser bem mais trágico.
Irregularidades envolvendo calçamentos estão previstas na lei municipal 10.508, aprovada e regulamentada por decreto em 1988. Basta caminhar alguns metros pelas ruas de qualquer bairro paulistano para perceber que a "calçada ideal", moldada pela lei, é praticamente uma utopia. O secretário de Implementação de Subprefeituras, Jilmar Tatto, reconhece que são "poucos" os passeios que respeitam as condições exigidas. Contudo, ele não titubeia em opinar que a falta de conhecimento das leis agrava o descaso às calçadas.
De fato, muitos paulistanos desconhecem que a construção e o reparo das calçadas não são responsabilidades da prefeitura. Conforme disposto na mesma lei, "os responsáveis por imóveis, edificados ou não, lindeiros a vias ou logradouros públicos dotados de guias e sarjetas, são obrigados a construir os respectivos passeios na extensão correspondente à sua testada". E mais: o texto determina que esses indivíduos devem zelar, sob pena de multa, pelo "perfeito estado de conservação" de seus calçamentos.
Regina Monteiro, presidente da ONG Defenda São Paulo, também aponta a falta de informação dos paulistanos como um dos principais entraves ao reparo dos passeios. "As pessoas não sabem que podem cuidar das calçadas. É necessária uma campanha nesse sentido, uma mudança cultural", defende a urbanista, que indica a elaboração do Guia das Calçadas, pela Regional da Sé, como o primeiro passo para o esclarecimento do tema.
O informativo, disponível no site da prefeitura, foi distribuído gratuitamente na região para esclarecer dúvidas acerca das vias para pedestre. O trabalho, porém, não impede que a questão, mais uma vez, recaia sobre o munícipe. Segundo a regional, os resultados semeados pelo guia devem ser sentidos apenas em médio prazo, pois as reformas dependem exclusivamente dos proprietários.
Embora representantes do governo e da sociedade civil apontem o desconhecimento do tema como um dos obstáculos centrais à melhoria das calçadas, é também inegável o empurra-empurra de responsabilidades entre o poder público e a população.
De um lado, as associações de bairro acusam a prefeitura de não averiguar as irregularidades. Do outro, as regionais alegam não possuir um efetivo administrativo suficiente para realizar a tarefa. "A fiscalização é zero e os fiscais só agem quando nós denunciamos", afirma a presidente da Defenda São Paulo.
Apesar de cobrar conscientização, Tatto aposta que, em curto prazo, a questão deve ser parcialmente resolvida com o aumento das ações fiscalizatórias. O atual efetivo de trezentos fiscais da secretaria, que cuida não só das calçadas, mas também de muros, obras e publicidade irregular, deve triplicar. A idéia é contratar, a partir de julho, mais setecentos agentes para o trabalho. "Desencadearemos um processo de multas jamais visto em São Paulo", promete Tatto.
O supervisor geral de Uso e Ocupação do Solo, Gerson Bittencourt, alega que "infelizmente as pessoas só agem sob efeito coercitivo". Dessa forma, ainda que detectada a carência de campanhas esclarecedoras, é sobre o paulistano que recairá mais uma solução paliativa do problema. O fomento à aproximação entre proprietários de imóveis e construtoras com o propósito de reconstruir os calçamentos também é uma alternativa considerada pela secretaria, mas que, no momento, encontra-se apenas no âmbito das discussões.
Como parte do esforço para ampliar a fiscalização, a prefeitura pretende, até julho, adquirir veículos motorizados dotados de aparelhos georreferenciados. O equipamento, conectado via satélite, filmará as calçadas. Com a identificação das irregularidades, a prefeitura encaminhará intimações (etapa anterior ao envio da multa) aos responsáveis. A partir daí, eles terão trinta dias para tomar as devidas providências, caso contrário serão multados.
O valor das multas depende de critérios previstos em lei. No caso de calçadas inexistentes, que não foram executadas corretamente ou nas quais o mau estado de conservação excede 20% de sua área total, a multa é de 5 UFMs (Unidade Fiscal do Município de São Paulo) para cinco metros ou fração de testada do imóvel. Hoje, cada UFM vale R$ 57,86. Nas calçadas em que a má conservação não excede um quinto da área total, a multa aplicada é de 1,5 UFM para cada metro linear de passeio danificado.

Pedestres X camelôs
Buracos à parte, os pedestres também são obrigados a concorrer com o exército de ambulantes que lota as ruas de São Paulo, que junto com automóveis esparramados sobre as calçadas também acabam por asfixiar ainda mais o incauto transeunte.
O trabalho dos camelôs e a disposição das mesas de bar sobre as vias devem receber autorização prévia da regional. Para isso, são consideradas a segurança e a circulação de pedestres. "A rua 25 de Março é um inferno. Tem muitos camelôs. A calçada acaba ficando estreita demais. Trata-se de um péssimo exemplo de lugar para pedestres", denuncia o presidente da Associação Brasileira de Pedestres (Abraspe), Eduardo José Darus. "A condição de circulação em São Paulo é muito precária", completa.
A Regional da Sé, que responde pela rua 25 de Março, afirma que essa via é objeto de fiscalização diária. Os ambulantes autorizados para atuar no local já estão cadastrados, informa o órgão. Suas bancas têm de apresentar um metro quadrado de área e manter uma distância de dez metros entre si.
O rebaixamento de calçadas também deve passar pelo crivo das regionais. É notória a existência de estabelecimentos comerciais que apresentam guias rebaixadas ao longo de toda, ou quase toda, sua extensão. A prática impede o estacionamento de automóveis nas vias públicas. Além disso, ao propiciar o acesso a veículos, pode colocar em risco a segurança dos pedestres. "Nesse caso, as pessoas são obrigadas a caminhar de lado", nota Regina Monteiro. A presidente da ONG argumenta ainda que, em São Paulo, os automóveis estão sendo cada vez mais priorizados, em detrimento dos transeuntes. "Estamos perdendo nossas calçadas para os veículos. É uma posição política: em primeiro lugar estão os automóveis, em segundo, os pedestres e em terceiro, os deficientes", provoca. Questionado sobre o tema, Jilmar Tatto nega a acusação e afirma que "o objetivo da prefeitura é dar ênfase ao transporte público, em particular ao metrô".

Exilados da cidade
Se o estado deplorável das calçadas expulsa os pedestres das vias públicas, a posição dos portadores de deficiências físicas é bem mais grave. "Eles estão totalmente afastados do espaço público", comenta Darus, da Abraspe. Com vistas à melhoria da acessibilidade de cidadãos com necessidades especiais, Tatto informa que a prefeitura está rebaixando calçamentos na região central.
No entanto, na avaliação do presidente da Abraspe, os rebaixamentos de guia perdem o sentido na medida em que as calçadas não possuem condições de circulação. "Os deficientes só conseguiriam utilizar as guias rebaixadas se descessem de pára-quedas nas calçadas", ironiza Darus. Ao que Regina atesta: "Nunca vi ninguém andar de cadeira de rodas ou muletas nas calçadas".
Em alguns bairros, a discussão sobre a qualidade dos calçamentos transcende questões de infra-estrutura e incide sobre as sujeiras dos cachorros. Se os cães são os melhores amigos do homem, seus donos podem vir a ser um dos maiores inimigos dos pedestres. "Em Moema, o maior problema das calçadas é desviar de buracos e acabar pisando em cocô de cachorro", relata Regina. Para livrar seu bairro desse infortúnio, o presidente da Sociedade Amigos do Brooklin Velho, Mamoru Tinone, criou há cerca de dois anos o "cata-côco" (embora "coco" não tenha acento, o autor do invento o registrou assim mesmo, com circunflexo na primeira sílaba), uma espécie de pá feita com metade de uma lata de azeite acoplada à ponta de uma haste, que ele distribuiu pessoalmente aos donos de cães da região. A engenhoca também acompanha um saco plástico. Poucos sabem, mas Tinone lembra que há em São Paulo uma legislação que obriga os proprietários de cães a remover os excrementos que seus animais deixam nas vias. A lei 11.616, de 1994, regulamentada por decreto em 2000, sujeita os donos porcalhões a uma multa de 3 UFMs (R$ 173,58, nos valores atuais). No caso de reincidência, a multa é dobrada.
No entanto, o criador dos cata-côcos avalia com pesar que essa lei "não pegou". Tinone aponta a ausência de fiscalização por parte de agentes sanitários como a principal razão da ineficiência da legislação. "Ninguém obedece", ele lamenta. Sem perspectivas palpáveis, ele continua armazenando latas de azeite para a fabricação dos cata-côcos. Além disso, deseja implementar campanhas para a conscientização dos moradores do seu bairro.

Serviço
- Reclamações de qualquer natureza relacionadas às calçadas da cidade podem ser encaminhadas diretamente à administração regional local.
- Sistema de Atendimento ao Contribuinte (SAC): 0800-770-5113. oO Disque-Pedestre encaminha as reclamações às entidades responsáveis. O número do telefone é 3068-9768.oAs irregularidades podem ainda ser registradas no site da prefeitura (www.prefeitura.sp.gov.br).

Silvia Bascilio é jornalista

Campo minado - Pedestres disputam espaço num lugar que deveria ser só seu

Camelôs, buracos, mesas de bar, carros estacionados impedindo a passagem. São Paulo é uma metrópole que não dá muitas chances para quem anda a pé. O prazer de caminhar pela cidade acaba transformando-se numa aventura.



Paulista de roupa nova - Aos 111 anos, a avenida ganha um projeto de revitalização

A avenida Paulista pode ganhar no final deste ano um ar de 5ª Avenida. Em parceria com a Associação Paulista Viva, a prefeitura de São Paulo dará início, a partir de agosto, a um projeto de revitalização do cartão-postal da cidade. O plano envolverá a reforma completa de seus calçamentos, o recapeamento das vias, a retirada de painéis irregulares e até mesmo o plantio de árvores em seu canteiro central. "A avenida está perdendo o valor imobiliário em decorrência do abandono dos poderes públicos", denuncia o diretor do Paulista Viva, Nelson Baeta Neves. Segundo ele, não são apenas as condições do calçamento que geram o problema, mas a dificuldade de decisão na região (a avenida está dividida sob a jurisdição de três regionais).
Além disso, há o problema dos ambulantes, da segurança, da poluição visual e da sujeira. "Hoje, a avenida está uma desarrumação total", comenta. Conforme estima, o novo calçamento das vias, ou pelo menos parte dele, deve ser entregue à população no dia 8 de dezembro, quando a avenida completa 111 anos. O prazo, contudo, parece apresentar divergências. "Se o Paulista Viva conseguir o dinheiro para a construção até o dia 31 de julho, garanto que até o fim do ano a calçada estará pronta", desafia o secretário de Implementação de Subprefeituras, Jilmar Tatto. Baeta rebate: "Só coloco dinheiro se formos bem tratados".
O diretor da associação reclama da falta de diálogo sobre o projeto entre a prefeitura e o Paulista Viva, opinião também compartilhada pelo secretário municipal. Cogita-se a escolha dos calçamentos por meio de voto popular, de acordo com sugestão da prefeita paulistana, Marta Suplicy. Ficarão em exposição no vão do Masp até junho cerca de seis modelos de calçadas. Amostra similar ao calçamento de Nova York também poderá ser escolhida. Os votos devem ser recolhidos no local ou via Internet, mas a data de apuração ainda não está definida. O secretário municipal não acha adequada a votação popular. "Deve-se levar em conta outros elementos, não só o visual. Depois de um tempo, a calçada pode sofrer desgaste, ficar feia", comenta. "São Paulo é pobre de símbolos", contrapõe Baeta, defendendo a restauração da Paulista.
O diretor da entidade, que nasceu na região há setenta anos e costumava pegar bonde na avenida para voltar da escola, concorda que o atual estado da via afasta as pessoas do espaço público. "Não podemos deixar que hoje o cartão-postal de São Paulo seja um shopping center", conclui.