Sesc SP

Matérias do mês

Postado em

Para ler em 09 de outubro, de 2030 – às 16h21

 
"O homem não vive apenas 'no' tempo, mas é tempo, tempo não cronológico.
A nossa consciência não passa por uma sucessão de momentos neutros,
como o ponteiro de um relógio, mas cada momento contém
todos os momentos anteriores. Em cada instante, a nossa consciência
é uma totalidade que engloba, como atualidade presente,
o passado e, além disso, o futuro,  como um horizonte
de possibilidades e expectativas."
Anatol Rosenfeld.

 

 

Vou começar contando sobre um futuro que não aconteceu.

Era março de 2020.  

Na velocidade da luz, as faixas: de vias e rodovias, de pedestres, dos trilhos, e dos sons, guiavam o cotidiano do tempo subjetivo de cada um.

Farol. Buzina. Para. Atravessa. Sobe. Desce. Escada. Estação. “Olha o chocolate, paga três e leva 10!”

Das certezas do que eu estava fazendo da minha vida, estava estruturando a logística do tempo para dar conta de uma agenda, que de março a maio me colocaria em estado de investigação, de difusão, de fruição, e de vivências artísticas intensas, dentro do Sesc Santo André.

Na sequência das certezas, junto aos meus pares do teatro, preparávamos cenas, laboratórios de dramaturgia, propostas de investigação coletiva acerca da poesia que queremos pro mundo. Seguíamos a narrativa que nos cabia de acordo com o fluxo das urgências, das potências, e daquilo que o planejamento do tempo estava nos oferecendo como possível.

Atrair os olhares do centro à margem! Este era o intuito do evento Cenas Centrífugas, que realizaria sua segunda edição no primeiro semestre de 2020. Coletivos do ABC Paulista – Cia do Flores, Coletivo Menelão e NED - Núcleo de Experimentos em Dramaturgia – colocariam luz a esta geografia resistente e resiliente no fazer teatral. Teriam a responsabilidade de representar o Teatro do ABC e se tornariam anfitriões não só da Cia do Tijolo, estabelecida na capital paulista, mas de todo o público, apresentando esta margem como um lugar que se estabelece, há anos, como um território de criação e fruição do teatro.

Três meses. Aproximadamente 30 apresentações. Três Instalações de repertório dos coletivos. Um Laboratório de Dramaturgia. Um Ateliê de Criação Colaborativa. Tudo pronto. Ensaios realizados. Público a espera. Inscrições de oficinas contabilizadas. Vara de luz no lugar. Estruturas posicionadas. Detalhes acertados.

 

Todas as certezas me levavam para o dia 20 de março. Sexta-feira. Imprensa. Cortejo. Abertura Oficial. Celebração!
Respira.
Terça-feira. 17 de março de 2020.
Respira.
Portões semiabertos. Teatro fechado. Palco vazio. Plateia desocupada. Cabine. Coxia. Camarim. Silêncio. Covid-19.
Fecharam-se as portas do teatro e eu fui pra casa. Fomos pra casa!
Res-pira.
Cenário desconhecido.
Tempo desconfigurado.
Espaço limitado.
Fomos invadidos pelas incertezas de todas as narrativas conhecidas até então.
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete meses.
Há mais de 200 dias, eu sigo desconstruindo certezas, criando embate com o tempo, ou melhor, tentando concatenar-me subjetivamente com o tempo, com as minhas narrativas e com as narrativas do outro.
São sete meses negociando a vida.
Pelo que vale a pena viver?
Pelo que vale a pena morrer?
 

Acredito, que das angústias que vivemos é pela arte que ela se esvai. Das dores que sofremos é pela arte que ela se esvai.

Daquilo que não foi tempo futuro, o passado não registrou. Tudo fica flutuando em minha memória do não acontecimento. Tudo é parte da história que teria sido.

Mas foi preciso seguir, porque a resiliência é prerrogativa para o exercício da arte. E numa tentativa desonesta com a minha capacidade de assimilar o agora, eu vou te contar um recorte deste tempo:

 

É outubro de 2020.

Estou aqui! Estamos aqui! Cenas Centrífugas 2 – Entreato!

Como as esculturas que povoam o Sesc Santo André, neste momento de hiato, sentadas nos mesmos lugares, compondo os mesmos cenários, tenho a sensação de que estivemos aqui o tempo todo. De que nós, artistas do Cenas Centrífugas 2, não arredamos o pé. Ficamos em estado de espera, ancorados aqui, para que aquilo que teria sido, encontrasse lugar para ser. E chegamos a este entremeio com a pretensa prerrogativa de refletir o aqui e agora, de investigar este hiato e transformá-lo em material artístico

A você que lê este texto em 2030, antecipo meu pedido de desculpas sobre possíveis equívocos que possamos cometer, mas penso que nossas reflexões encontrarão muitos vazios pelo caminho, pois olhando pro horizonte não vejo nada, mas olhando pro chão, vejo muitos pés cansados, mas resistentes, desejosos de encontrar a poesia no meio do caos.

 

 

É 06 de outubro, de 2020.

Parafraseando Wislawa Szymborska, em “A vida na hora”, não foi possível “praticar uma quarta-feira antes” e nem “ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!” Mas nos foi dada a terça-feira e nós, do NED – Núcleo de Experimentos em Dramaturgia, abrimos a sala virtual. Tocamos Raul, e demos início ao jogo “Antes de tudo isso começar eu achei que ia...” – “Neste momento em que eu vivo uma vida que eu não imaginava a minha âncora é...” – “Quando tudo isso passar eu vou...”

Nesta sala, eram eu, elas, nós, em linhas horizontais, junto a eles: Cia do Flores, Coletivo Menelão e Cia do Tijolo, olhando pra trás, refletindo o agora e desejando o depois, dando início ao primeiro encontro do Ateliê de Criação Coletiva do Cenas Centrífugas 2 Entreato, em formato online, pelo Sesc Santo André.

Ninguém chegou de trem. Não houve luz. Farol. Trilho. Via ou rodovia. Não houve presença física, não houve abraço, olho no olho, porque tem sido necessário ressignificar, redescobrir, reinventar o encontro. Mas estávamos juntos, não mais como seria em março, mas como pode ser agora: em casa, por uma tela, porém conectados para além da rede!

Para uns, o tempo fez hiato. Para outros ele nunca parou. Para uns, a âncora deste momento é a espiritualidade, a respiração, a terapia, o suor do corpo, mas todos seguem ancorados no desejo de que o teatro continue sendo um acontecimento que nos movimenta para refletir e ressignificar este mundo, que cria suas estruturas dentro de uma “disputa de narrativas”.

Este primeiro encontro se estabeleceu pelo tom do acolhimento, que depois da espera pelo tempo possível, estávamos carentes de poesia, de prosa, de deslocamentos da vida real, e fomos nos acolhendo pela escuta, pela transversalidade de saberes, pela diversidade de olhar pro mundo, e pelo desejo de encontrar respostas para questões subjetivas, que depois de compartilhadas, tornaram-se nossas.

Sigo narrando sobre o tempo, sobre um futuro próximo, pois neste aqui-agora, desejamos construir, coletivamente, uma cápsula do tempo, que imprima uma narrativa acerca deste nosso ser-estar artista-cidadão-gente neste cenário de isolamento social, por conta de uma Pandemia, num país com recortes tão específicos artístico-político-social e com rupturas tão evidentes.

O NED tem como desafio criar um registro de passagem por este cenário, criando uma dramaturgia que revele o pensar subjetivo e coletivo deste grupo de artistas. Um material artístico, que com o passar dos anos possa revelar o pensamento crítico de quatro coletivos de teatro, que se debruçaram numa investigação crítica e poética sobre o seu tempo.

O tempo? Tão explorado neste primeiro encontro, e que ditou o tom deste texto, seguiu o curso e me trouxe até aqui, nos trouxe até aqui.  E neste tempo, em que nada mais sabemos sobre nada, no meio do caos, encontrei pessoas para caminhar lado a lado e imaginar um futuro possível.

 

Claudia Jordão
NED – Núcleo de Experimentos em Dramaturgia
09/10/2020 – 16h21
 

 

_______________

ATELIÊ COLETIVO ONLINE: RELATOS

O texto que você acaba de ler integra a programação do projeto Cenas Centrífugas: Entreato.

Enquanto a segunda edição do projeto Cenas Centrífugas permanece suspensa por conta da pandemia causada pela Covid-19, os grupos convidados se encontram para refletir sobre o teatro no contexto atual e para experimentar possibilidades do fazer teatral no meio digital.

Por meio de relatos textuais, o NED (Núcleo de Experimentos em Dramaturgia) apresenta para o público perspectivas sobre a experiência de realização do Ateliê Coletivo Online. Ao longo dos dois meses de encontros, o Núcleo, que orientará a Cia. do Flores, a Cia. do Tijolo e o Coletivo MENELÃO, produzirá semanalmente um relato sobre essa aventura cênica no campo digital.