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Para ler durante as próximas primaveras

Dia 20 de outubro de 2020. Processo criativo. Encontro 2.

Algo foi semeado e agora começa a germinar.

Quinze dias se passaram desde a última vez que nos vimos e quase oito meses desde que nos encontramos. Não há certeza de que tenha sido tempo suficiente para nos reconhecermos enquanto um coletivo criador ou coletivo criatura.

Será que é possível conhecer a pessoa com quem estou criando, mesmo através de uma janelinha do Google Meet?

Eu não consigo perceber uma ruga, uma cicatriz ou uma mancha sequer no rosto do outro. Os pixels me confundem, a falta de nitidez da câmera...

Alguns segundos de frustração: Pixels não contam uma história viva como contam as rugas, manchas e cicatrizes.

Dentre as tantas dificuldades do cotidiano digital ao qual já estamos até que bem acostumados, está a chegança que nos prepara para o fazer teatral.  Não tem olho no olho, só olho na tela. Não tem abraço que faça registro prévio da temperatura do corpo que cruzará com o seu durante a cena. Aliás, nem corpo tem... só tem ombro e cabeça, recortados pela janelinha. Não tem caminhada pelo espaço, percepção do espaço de criação. Tem percepção da plataforma online, das janelas, móveis, escadas e portas da casa do outro.

É isso o que temos para hoje. Nosso espaço de criação é impalpável e talvez essa seja a coisa mais bizarra a qual jamais poderíamos imaginar. Nós, gente de teatro, somos absolutamente materiais e essencialmente não-cibernéticos. A matéria é a nossa ferramenta primordial e o encontro é o que antecede a nossa existência.

Reinvenção! É isso que dizem sobre estes tempos, não é?

Imagine só! Se pudéssemos dizer algo para nossos eus do passado, fazedores de teatro, certamente diríamos: “você já imaginou fazer teatro pela internet? Já imaginou um processo criativo online? Pois é, esse dia vai chegar”
Talvez nossos eus do passado gargalhariam, em desespero.

Então é essa a chegança pela qual optamos. Vamos mergulhar em perguntas abismo, dessas complexas e difíceis de responder de prontidão, cujas respostas talvez nos deem alguma pista sobre quem o outro, a outra criatura que criará comigo.

Se eu pudesse dizer algo para o meu eu do passado, eu diria...

- Não precisava se preocupar tanto... vai dar tudo errado!

- Faça um mestrado

- Continue com a homeopatia e os ansiolíticos

- Saiba dosar o quanto você se doa para as situações.

- Faça tudo de novo...

- Divirta-se mais...

- Tenha vergonha na cara e faça uma reserva financeira!

- Não diria nada.



Coletamos as pistas sobre nós e seguimos.

Há quinze dias o grupo havia levado poesias, indagações, angústias e relatos ao qual o Núcleo de Experimentos em Dramaturgia tentou tecer textos-resposta.
Quatro textos-resposta que condensavam uma tentativa de digerir e regurgitar o caos do não-saber que nos acompanha nestes tempos. Os textos-resposta, por sua vez, transformaram-se em novo material poético pelos olhares do grupo. 
Esta troca faz parte do pacto que foi selado coletivamente: criaremos alguma coisa, alguma coisa que sirva para comunicar. Arte, poesia, teatro do agora, do tempo presente, de 2020. Guardaremos isso em uma cápsula do tempo, que será enviada ao nós-futuro.
Talvez a próxima primavera possa ser tão surpreendente e inimaginável quanto a que estamos vivendo agora.

Hora do compartilhamento de cenas:

- Será que consigo compartilhar a minha tela?
- Vocês conseguem escutar?
- Estou tentando mandar o vídeo no grupo.
- Eu não sei, tá travando...
- Vou compartilhar a minha tela aqui, ver se eu consigo...
- Compartilha o link com a gente depois?
- Agora sim! Vocês tão vendo?
- Eu não estou vendo...
- Agora vocês estão vendo?
- Sim
- Sim
- Eu continuo não vendo.
- Agora vejo, agora vejo!
- Não estou conseguindo, tá dando como arquivo incompatível.
- Coloca seu celular na câmera!
- Se a gente fixar a tela dele, a gente consegue ver melhor
- Aproxima mais da câmera
- Um pouco mais pra lateral...
- A outra lateral
- Vai, agora “play”
- Pera, sobe um pouquinho...


Ih, travou tudo, congelou, caiu.

Mesmo em frames cortados e entre silêncios de conexão de rede, atravessamos a dificuldade que a tecnologia impõe ao tão analógico teatro. Telas compartilhadas, cenas rodando. Assistimos uma cena e inevitavelmente assistimos às nossas próprias reações também, olhares atentos nas janelinhas. Cena espelho. Assistir à cena já é, por si só, um ato de criação de uma nova cena paralela, espontânea e sem pretensão alguma.

“o vídeo não apareceu aqui para mim, então fiquei assistindo vocês enquanto assistiam ao vídeo. Tentei captar alguma coisa pelo rosto de vocês...”

Ainda assim, resistentes que somos, as cenas mostraram: pássaros nos pés, chuveiro, cama-fogueira, folha amarela, janela, cidade, primeiro dia do ano, máscara, metrô, música, violão, poesia.

Um emaranhado que nos levará a mais perguntas e respostas para a próxima estação.
Daqui quinze dias nos vemos de novo pelas janelinhas. Até lá, seguimos olhando através de janelas maiores que possam nos provocar novos horizontes. Há que se reinventar, que se recriar alguma coisa de tudo isso que está acontecendo.

Seguimos plantando, regando, podando, adubando e observando os ciclos de alguma coisa que esperamos colher na próxima primavera.
 


GLOSSÁRIO:

TRA.VAR (verbo transitivo direto): Agarrar algo de modo firme; segurar, tomar ou... SER INTERROMPIDE PELA FALTA DE CONEXÃO COM ALGO OU ALGUÉM.

CON.GE.LAR (verbo transitivo direto/indireto/pronominal):  Transformar(-se) um líquido em gelo; gelar ou... PARALISAR POR UM PERÍODO NO TEMPO, HIATO FORÇADO.

CA.IR (verbo intransitivo): Descer no espaço, em virtude da gravidade, quando libertado da suspensão ou suporte; ir de cima para baixo; ser levado de cima para baixo pelo próprio peso; tombar ou... ESTAR AUSENTE OU IMPEDIDE DE PRESENCIAR AQUILO QUE GOSTARIA.
 


Denise Hyginio
NED – Núcleo de Experimentos em Dramaturgia
24/10/2020 – 2h17






 

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ATELIÊ COLETIVO ONLINE: RELATOS

O texto que você acaba de ler integra a programação do projeto Cenas Centrífugas: Entreato.

Enquanto a segunda edição do projeto Cenas Centrífugas permanece suspensa por conta da pandemia causada pela Covid-19, os grupos convidados se encontram para refletir sobre o teatro no contexto atual e para experimentar possibilidades do fazer teatral no meio digital.

Por meio de relatos textuais, o NED (Núcleo de Experimentos em Dramaturgia) apresenta para o público perspectivas sobre a experiência de realização do Ateliê Coletivo Online. Ao longo dos dois meses de encontros, o Núcleo, que orientará a Cia. do Flores, a Cia. do Tijolo e o Coletivo MENELÃO, produzirá semanalmente um relato sobre essa aventura cênica no campo digital.