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Foto:Eduardo Knapp/Folhapress
Foto:Eduardo Knapp/Folhapress

Diretor de redação da Folha de S.Paulo fala sobre os bastidores da notícia na pandemia e as consequências do fluxo intenso de fake news nas redes

 

Na Alameda Barão de Limeira, no bairro Campos Elíseos, na capital paulista, o jornalista Sérgio Dávila, diretor de redação da Folha de S.Paulo, coordena os bastidores do jornal e uma equipe que segue em home office para contenção da Covid-19. Há quase três décadas ele trabalha no periódico, para o qual já cobriu fatos marcantes, como a Guerra do Iraque (2003) e o ataque ao World Trade Center, em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001. Coberturas que geraram os livros Nova York – Antes e Depois do Ataque (Geração Editorial, 2002) e Diário de Bagdá – A Guerra do Iraque Segundo os Bombardeados (DBA, 2003). Neste ano, Dávila testemunha outro capítulo da história e acredita que “o jornalismo profissional sairá da cobertura dessa pandemia valorizado”. Para o jornalista, há uma crescente consciência das pessoas sobre o que é fato e o que é opinião. “As pessoas perceberam que nesse momento a gente vive a diferença entre informação verdadeira e fake news e isso pode ser a diferença entre a vida e a morte”, diz. Neste Encontros, Sérgio Dávila traça um panorama atual do jornalismo profissional e fala sobre o papel e a responsabilidade de grandes empresas de tecnologia.

 

Jornalismo presente

É impossível falar do jornalismo hoje sem falar da pandemia. Acho que o jornalismo profissional sairá da cobertura dessa pandemia valorizado. A principal razão é que as pessoas perceberam que nesse momento a gente vive a diferença entre informação verdadeira e fake news e isso pode ser a diferença entre a vida e a morte. Vou dar um exemplo. No começo da pandemia, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deu uma entrevista. No final da coletiva de imprensa, ele falou: “Parece que beber desinfetante mata coronavírus”. Nas 15 horas após a fala dele, só no estado de Nova York, houve 30 casos de envenenamento por desinfetante, um número absolutamente extraordinário. Quem ouviu essa informação e a tomou pelo valor de face pode ter se intoxicado. Quem checou essa informação, passou pelo filtro do jornalismo profissional, entrou em sites como CNN, New York Times e outros, leu: “Não bebam desinfetante. Isso é fake news e pode matar uma pessoa”. Aí houve a diferença entre vida e morte.

 

Mudança de formato

A segunda lição que o jornalismo sob a pandemia nos traz, pelo menos para mim, é que o jornalismo é menos uma reunião de pessoas num lugar e mais a maneira de se apurar a notícia e o fato. Por que eu digo isso? Porque hoje estou na minha sala na Barão de Limeira, mas 98% da nossa redação, que gira em torno de 300 pessoas, está em home office e, ainda assim, o site está no ar, os podcasts e vídeos continuam sendo gravados, o produto impresso continua chegando à casa das pessoas. Quer dizer, a pandemia nos provou que o jornalismo profissional bem-feito não necessariamente precisa reunir 300 pessoas sob o mesmo teto. Claro que há uma troca de experiências, uma troca de temperatura que só as redações têm, perde-se isso, certamente, mas, quando definimos que liberaríamos todo mundo para trabalhar de casa, fizemos isso em águas nunca dantes navegadas. Vai dar certo? Vamos continuar produzindo? E sim. Continuamos produzindo, o número de leitores e de assinaturas aumentou. Então, essa é uma segunda lição bastante importante.

 

Polarização

As pessoas vêm, nos Estados Unidos e no Brasil, numa crescente polarização política. Uma polarização que é estimulada pelas redes sociais e, principalmente, por uma rede “antissocial”, que é o WhatsApp. E o Brasil é o segundo maior usuário do mundo desse ambiente que favorece, diferentemente do jornal, que você reforce as convicções que tem. Então, se você recebe uma informação sobre alguém de que você não gosta politicamente, você acha que ela pode ser duvidosa, mas passa para a frente sem problema de consciência. Mas a gente percebe que o leitor começa a pensar melhor antes de confiar na falsa informação que ele recebe ou à qual ele é exposto nas redes sociais e no WhatsApp. Com isso, a Folha, o Estado, o Globo, o G1, o Uol, os telejornais, e outros veículos de comunicação, viram sua audiência crescer. Em abril, a Folha teve 70 milhões de visitantes no site. É como se metade da internet brasileira tivesse visitado a página do jornal naquele mês, em busca de informação, provavelmente, sobre a pandemia. É a maior audiência desse jornal que vai fazer 100 anos em 2021.

 

Praça pública

O jornal é como uma praça pública em que você anda e esbarra nas pessoas, troca ideias e é exposto a ideias sobre as quais você nem sabia que se interessava. Elas podem reforçar seus pontos de vista ou fazer você repensá-los, o que é muito saudável em diversas situações. Então, temos o jornal como uma praça pública versus as redes sociais como um condomínio fechado, em que as pessoas torcem para o mesmo time, votam nos mesmos candidatos, pensam mais ou menos igual na questão de costumes e moral, e isso tende a reforçar e a radicalizar a posição das pessoas. Daí a polarização pela qual estamos passando. Acrescente a essa dicotomia um aspecto muito brasileiro, também indiano, que é a predominância do WhatsApp como meio de informação. E o WhatsApp não é uma rede social, ela é uma rede fechada: você se comunica com quem você quiser, entra nos grupos que te aceitarem e cria grupos que você quiser. Ou seja, não há um escrutínio público do que está sendo difundido ali como informação. Esse é o desafio com o qual nos deparamos nesse momento. Nós estamos reforçando nossas equipes de checagem, nosso jornalismo de dados, temos que ser muito ágeis porque as coisas acontecem muito rápido e, quando você vê, uma eleição pode ser influenciada por notícias inverídicas. Esse é o pior cenário para quem está numa redação.

 

 

Temos o jornal como uma praça pública [de troca de ideias e opiniões] versus as redes sociais como um condomínio fechado, em que as pessoas torcem para o mesmo time, votam nos mesmos candidatos, pensam mais ou menos igual na questão de costumes e moral

 

 

Junção de forças

Outra lição a ser tirada da pandemia, no caso do jornalismo, especificamente no Brasil: houve uma reunião em um consórcio inédito na imprensa – o que em outros momentos não seria possível por se tratar de uma mídia competitiva entre si. Quando o Ministério da Saúde resolveu rever seus critérios de divulgação do número de mortos e infectados pela Covid, muito rapidamente nós, a Folha, o Estado, o Globo, a Rede Globo, o Uol e o G1, reunimos os dirigentes dessas redações – e todas essas redações têm uma equipe de jornalismo de dados – e colocamos as equipes para conversar, para que fôssemos direto às fontes, no caso as 26 secretarias de saúde, para continuar fornecendo e dando fluxo a essas informações para o público. A gente achou que seria o caos se houvesse um blecaute no fluxo de informações dos números de infectados e mortos por Covid. E começou a haver esse blecaute. Só não foi maior porque esses grupos se uniram, formamos um consórcio e hoje os números, divulgados três vezes por dia pelo consórcio, são considerados os números oficiais. Esse também é um exemplo de como o jornalismo soube reagir bem e rápido diante de uma crise dessa proporção. 

 

 

 

Dilema das redes

Recomendo o documentário O Dilema das Redes [disponível na plataforma de streaming on demand Netflix], pois tem como mérito fazer um excelente resumo das redes sociais e das big techs [as grandes empresas de tecnologia] até agora. Ouvindo pessoas que ocuparam por muito tempo cargos proeminentes no Google, Twitter, Instagram, Facebook, YouTube... Enfim, ali estão os presidentes, vice-presidentes, diretores. E o principal deles era o engenheiro responsável pelo aspecto ético do Google, ele é mais ou menos o fio condutor (do documentário). De fato, aquele velho lema do Google, don’t be evil (não aja com maldade, em português), começa a ser questionado, porque o poder dessas empresas é sem precedentes. Elas têm um poder direto e imediato, rapidamente alcançado, sobre bilhões de pessoas apenas ao apertar uma tecla. O documentário mostra o que para mim é uma novidade: começa a haver uma reação dentro da própria ação, que são esses “evangelistas” por uma rede social menos predadora, mais humanitária, menos em busca do like e mais em busca do seu objetivo original, que era conectar as pessoas, dividir ideias, compartilhar pensamentos diferentes. Já dá para ver esse movimento que partiu de dissidentes dessa indústria. A mesma indústria que originou os players agora reage aos aspectos maléficos da supremacia, chamemos assim, dessas redes sociais. Ao final do documentário, há dez dicas para saber se as pessoas estão tendo ou não uma relação saudável com as redes sociais. Eu já adotei metade, como restringir o tempo de tela das crianças, desabilitar as notificações do celular – e a vida fica muito melhor.

 

Mídia ou plataforma?

O documentário também levanta uma discussão paralela: essas empresas não querem ser chamadas de empresas de mídia, mas de plataformas, de empresas tecnológicas, de big techs. Mas vejamos a definição de uma empresa de mídia: a empresa de mídia publica conteúdo e vende anúncio ao lado desse conteúdo. E o que é o Google? A pessoa dá uma busca, vem um conteúdo e ao lado anúncios. Se isso não é empresa de mídia, então, precisamos rever essa definição. Vejo com bons olhos esses movimentos – mais fortes na Europa e na Austrália – de, em primeiro lugar, estabelecer algum tipo de regulação semelhante ao que acontece com a mídia. Não se trata de uma intervenção estatal, mas, assim como nós, Folha de S.Paulo, somos responsáveis pelo conteúdo que publicamos, que essas empresas também sejam. Com isso, vai ser possível coibir o discurso de ódio, homofobia, racismo. E por que essas plataformas podem fazer isso impunemente? Elas não só podem como alcançam bilhões de pessoas com um clique. Não faz sentido. Outro aspecto: elas se apropriam de um conteúdo de jornalismo profissional que nós produzimos com grande custo e lucram em cima desse conteúdo, vendendo anúncios ao lado dele. A Folha defende tanto a regulação quanto a monetização pelo conteúdo utilizado.

 

Sérgio Dávila esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 22 de setembro de 2020.

 

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