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Habitar Palavras: Marcos Telles

Dois mil e vinte 

Pra quem dizia não ter tempo para nada, agora tem tempo de sobra. Um tempo vazio, perdido e cheio de questionamentos sobre o que poderá piorar para que tudo melhore antes que seja tarde demais. Vimos que a cor da pele ainda incomoda muita gente, ao ponto de pintar o asfalto de sangue e tirar vidas que importam, ou pelo menos deveriam importar. Chegamos a Marte, mas não conseguimos chegar diante do respeito que almas calejadas pela guerra, fome, desigualdade e preconceito mereciam estar. A religião tem perdido sua função e se transformado em um grande circo de aberração. Se tornou um jogo impetuoso de quem tem a divindade mais poderosa, a fé mais inabalável e o sofrimento mais promissor que garantirá um camarote no céu. Falando em céu, ele se tornou vermelho com o fogo que devastou e tem devastado florestas, fazendo a vida desaparecer, lamentar, implorar que tudo pare, antes que vire apenas cinzas e esquecimento. Questionamos a vida mais do que todos os outros anos, porque agora ela corre perigo. Perigo de ser esquecida, perigo de ser rara, perigo de entender que não importa quanto dinheiro, poder e status temos, um único vírus tem a chave para acabar com tudo. E o que é tudo agora? Se nos sobrou apenas a saudade imensurável de estar perto de quem se ama, de apertar uma mão amiga, dar um abraço ou apenas viver a vida que vivíamos roboticamente como se fosse descartável demais para darmos a atenção que ela realmente merece. Merecimento, talvez seja isso que 2020 queira nos mostrar, somos merecedores das nossas próprias escolhas, então chegou a hora de escolher melhor, antes que não haja nenhuma alternativa.

 

Essa pele tem história 

Ei, menina linda, parada no canto da quadra, isolada, com sua lágrima imaculada, chorando por algo que não é culpa sua, e nem pode ser assim classificada. Eles falaram que o seu cabelo é ruim, sua pele escura demais, seu nariz largo e seus traços desajeitados. Deram apelidos pesados, te fazendo se sentir a pior pessoa, mas isso não é uma escolha. Você fica chorando, talvez querendo desaparecer, mas vou te dizer que almas como a sua devem sempre florescer. Mas deixe te dizer, preste muita atenção, a pele que eles tanto caçoam tem o poder de mudar uma geração. Eles não foram os primeiros e muito menos serão os últimos, que acham engraçado te colocar em um submundo. Essa pele tem história, histórias das quais eles nunca saberão, histórias de dor, sofrimento, luta e desigualdade que livros nunca descreverão. Mas eu não estou aqui para lembrar de sofrimento, então enxugue essas lágrimas, porque nelas não há acalento. Não prenda o seu cabelo, se chamam ele de rebelde é porque ele lutou para estar solto e aparecendo. Olhe seus traços, são fortes e mostram garra, de que não precisa se apoiar em ninguém para vencer uma batalha. Você carrega amor, força e essência de que nunca recua e seus medos sempre enfrenta. A pele negra é linda, essencial e inesquecível, talvez seja por isso que ela nunca passará despercebida. Você tem uma missão, então não solte a minha mão. Quer que lembrem de você triste e arrependida pela falsa decepção? Ou que escrevam em livros as suas conquistas e em jornais as suas premissas? Essa pele carrega uma história, que está apenas começando a ser escrita. Não deixe que os outros mostrem que a cor te limita. Sorria e mostre a força daqueles que morreram lutando, para que você estivesse alegre e não chorando. Mostre que a pele negra só é diferente para quem não entende, que toda grande árvore começa por uma única e pequena semente.

 

Quero que você nunca cresça 

- Quero que você nunca cresça! - Parece egoísmo eu sei, mas eu juro que é porque te amo demais e quero inutilmente adiar os testes que a vida lhe dará, mesmo sabendo que isso só te tornará ainda mais forte. O mundo adulto não é tão mágico como contam os contos de fadas. Existem pessoas ruins que tentarão fazer você acreditar que seus sonhos serão apenas sonhos e que seu coração é tão descartável quanto um papel de bala. Você vai chorar muitas vezes, mas vai ter que respirar fundo e seguir em frente, sempre seguir. Pessoas que você ama morrerão, mas será tarde demais para você acreditar que elas apenas “vivaram estrelinhas”, porque a saudade de quem nunca mais vai voltar dói igual ralar o joelho andando de bicicleta. Vão falar que o seu corpo está fora do padrão, que você precisa ser igual a outras pessoas em uma tentativa quase em vão. As escolhas serão a pior parte, porque, afinal, a vida é feita de escolhas e quando se escolhe uma coisa se perde outra. Dessa vez você não poderá levar o picolé de morango e limão. Às vezes, a tristeza vai bater na sua porta e você terá que atender, só me faça um favor, não convide ela a entrar, existem visitas que são necessárias, mas que não se deve acomodar. Diz a velha história que dinheiro não compra felicidade, e realmente não, mas não romantize a pobreza, você merece sempre o melhor e nada menos que isso. Cuide de seus sentimentos, não é qualquer um que merece sua atenção. Seu corpo, suas regras, saiba dizer sim, mas, principalmente, não. Ame quem ama viver, a vida é um presente único, aproveite cada segundo e não se prenda esperando as sextas-feiras ou alguma realização. Não deixe limitarem sua fé, Deus é grande e não cabe em uma colher. Não quero que você cresça porque a sua dor sempre vai me doer, mas cicatrizes são bem mais bonitas quando se tem histórias para oferecer. Enquanto isso não chegar, prefiro te ver vestida de super-heroína, aproveite enquanto sua única preocupação é se está pronta a gelatina.

 

Sobre o autor

Marcos Paulo Telles nasceu em Birigui, interior de São Paulo, em 15 de Julho de 1989. Graduou-se em Comunicação Social. Autor de quatro obras publicadas e um conto. Iniciou sua carreira literária em 2015 quando propôs escrever diversas obras dos mais variados gêneros literários, mostrando que não importa como a escrita é empregada, histórias envolventes sempre conseguem transportar o leitor para universos inesquecíveis.

 

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

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