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Radar Sonoro: música para tempos brutos

*Por Patricia Palumbo

A gente quer comida, diversão e arte, certo? Esse verso de "Comida" dos Titãs é alimento pra nossa sede de cultura desde os anos 80. Mas, bem antes disso, na antiguidade clássica, já se falava em carpe diem, expressão belissimamente traduzida pelo poeta e filósofo Antonio Cícero como colher o dia.

O desafio hoje é como fazer isso. Como se nutrir de arte e cultura sem sair de casa, sem ir aos shows, às festas, aos saraus, aos encontros? A gente quer diversão, balé, prazer pra aliviar a dor...

Também é histórica a capacidade do ser humano de se transformar, de ressignificar a vida e, na medida do possível, sair melhor que antes. E já que comecei com citações musicais, vou seguir com elas e lembrarei aqui do maravilhoso samba de Paulo Vanzolini, "Volta Por Cima", que manda essa importante lição há gerações: a gente levanta, sacode a poeira e segue em frente.

Estamos vendo a cultura seguir. Não sem esforço, não sem perdas, mas seguindo. Ainda meio no escuro, mas buscando saídas.

Vou listar aqui algumas iniciativas que me acompanharam e que me salvaram a alma nesses tempos de isolamento. 

Aqui no Radar Sonoro, tive o prazer de entrevistar Julia Tygel, que é uma das idealizadoras do belo projeto A Nossa Música. Uma iniciativa que acolhe duplamente. A quem pede a canção e aos que a realizam. Música feita por encomenda. É quase um retorno ao tempo dos mecenas. Ainda me impressiona ver que há quem entenda quanto vale um carro e pague o que for por ele, mas que não “gasta” com um disco ou com uma bela noite de música ao vivo, pagando por um show. Será mesmo que em pleno século vinte e um possa resistir à idéia absurda de que um músico não é um trabalhador? Pensar, criar, tarefas subjetivas, silenciosas às vezes, e tão fundamentais para o crescimento de uma nação, de um povo, de um país.

Bem, encomendar uma música e deixar que os artistas criem livremente é quase um sonho. Realizável agora em plena pandemia e, que ironia, que nasceu justamente por estarmos passando por ela.

Ainda com a Júlia, lembramos juntas dos concertos da Osesp, nossa maravilhosa Orquestra Sinfonica do Estado de São Paulo! Já fui assinante de alguns programas e durante longo período frequentei a Sala São Paulo, sempre às quintas-feiras. E vivi momentos incríveis. Grandes maestros, grandes obras, clássicas e contemporâneas. Com o Quarteto de Cordas, já tive viagens quase lisérgicas com compositores de nomes impronunciáveis. O canal da Orquestra no Youtube é meu favorito aos domingos. Em alto e bom som na tv da sala. Pra quem puder investir na tecnologia digital, recomendo!

 

 

A riquíssima música instrumental brasileira é minha companheira de vida. Muito mais ouvida no Japão do que aqui, por incrível que pareça. Faz mais de 20 anos que faço parte da equipe do Instrumental Sesc Brasil, projeto que hoje segue na série "playmusica" #EmCasaComSesc, depois de alguns meses em suspensão. O acervo é belíssimo e eu indico uma visita ao site oficial, mas também ao novo formato que está em todas as plataformas – inclusive como live às terças-feiras, às 19h, transmitido direto do Sesc Consolação. Em outubro, tivemos Yaniel Matos com seu trio e Neymar Dias, tocando viola com quarteto de cordas e fazendo, por exemplo, "Estrada Branca", de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. 
 

 

 

Ainda no instrumental brasileiro, começou em novembro a série que celebra os 20 anos do renomado Prêmio BDMG. Eu fui convidada para fazer as entrevistas com dez artistas mineiros que passaram por essa brilhante iniciativa. Começou com o violão e a simpatia de Thiago Delegado. Descubra, caso você ainda não conheça, a incrível música feita em Minas Gerais.
 

 

A Casa de Francisca juntou cinema e música e criou uma série incrível que estreou com Laiz Bodanski filmando Tulipa Ruiz e Gustavo Ruiz Chagas. Ficamos sabendo nessa live cinematográfica toda filmada em preto e branco que o belo nome da cantora saiu de um filme noir. A Casa sem público virou cenário e o encontro entre músicos e cineastas rendeu maravilhas disponíveis sob demanda. Vejam Siba filmado por Lo Politi, Lirinha por Bárbara Paz. Muito mais que uma live, mais que um show, mais que teatro. Tudo junto, inundando de beleza a sala de sua casa. Cine Lives  “Até o fim, cantar!”. E como tudo começou com Kiko Dinucci sozinho na casa, fazendo o "Rastilho", deixamos aqui o vídeo desse show.
 

 

A pandemia também deu tempo pra que alguns álbuns inteiros fossem parar na internet. É o caso do encontro de Joyce Moreno com Toninho Horta homenageando Tom Jobim. Disco difícil de achar por aqui. Joyce e Toninho tocam juntos em algumas faixas como em "Frevo de Orfeu", dois violões fundamentais. Aliás, o canal de Joyce Moreno no Youtube é uma bela e recente descoberta.
 

 

Alguns artistas também encontraram inspiração no isolamento. Uma música por dia foi o que fez Adriana Calcanhotto no disco "Só". O encarte tem as datas das canções quase como num diário. Canções de saudade, de amor e até um funk de protesto. Músicos do país inteiro colaboraram com o disco que teve produção do compositor paraense Arthur Nogueira. Tem o “clipão” da temporada.
 

 

O casal Pato Fu, John Ulhoa e Fernanda Takai, devidamente isolados em casa, nos deram de presente a lindeza que é o disco "Será que Você Vai Acreditar", mais uma pérola da carreira solo de Fernanda. Algumas parcerias feitas à distancia, regravações afetivas e essa composição assinada por John, que dá nome ao disco e que tem tanto a dizer.
 

 

Em junho de 2020, Luana Carvalho, cantora, compositora e poeta carioca, homenageou sua mãe com o disco "Baile de Máscara". Com produção de Kassim, arranjos incríveis e um recorte emocional do repertório de Beth Carvalho o disco foi todo lançado digitalmente. Parte do baile está em clipes lindos dirigidos por Murilo Alvesso. Destaco o de "Minha Festa", que é de fazer chorar de tão bonito.
 

 

Também vem do Rio outro destaque dessa lista. Mahmundi frequenta minha vitrola desde os primeiros singles. É solar, é verão e me dá vontade de pegar o carro e ir para a praia. Produtora, nessa quarentena ela inventou um jeito de fazer uma rádio nas redes sociais e em maio lançou "Mundo Novo", com sete faixas deliciosas.

 

 

Tivemos também uma grande presença da música no quadradinho do Instagram. E uma das melhores invenções foi o "Ô de Casas" de Monica Salmaso. Foi surpreendente o número de encontros e a qualidade deles. Até Chico Buarque deu literalmente o ar da graça.
 

 

Monica também participou do lançamento da Casa do Choro Digital, uma celebração dos 20 anos da Escola Portátil. Era pra ser presencial, mas, com a pandemia, a banda acabou crescendo e virou um Bandão Digital. Linda e merecida festa para essa importante iniciativa que tem entre seus pilares a cavaquinhista, mestra, compositora Luciana Rabelo.

E até Simone, a Cigarra, se rendeu. No começo meio atrapalhada - e por isso mesmo cheia de charme -, ela canta seu repertório imenso para milhares de pessoas todo domingos, às 17h. Uma alegria pra quem curte os clássicos e pra matar a saudade dessa grande artista.

Anelis Assumpção há tempos vem organizando o legado de seu pai Itamar e lança agora o Mu.Ita, um museu virtual com a obra desse grande artista. Antes da pandemia já pudemos ver a "Pretópera", um musical com um recorte sobre sua vida. O Museu poderá ser visitado a partir de 20 de novembro. Mas Anelis fez belas lives com Curumim e seus filhos com esse repertório. Sempre com links para contribuições sociais, como para o Sopão das Manas. Música com história e engajamento.
 

 

Agora, um pouco de jazz e história. Para nossa tristeza, o grande Zuza Homem de Mello nos deixou este ano. Uma vida dedicada à música com muita alegria. É um mestre para mim e estivemos juntos em muitas ocasiões felizes. Numa delas, gravamos uma hora de conversa boa que rendeu esse delicioso podcast pra Rádio Vozes e um programa lindo pro "Vozes do Brasil". Tem playlist no Spotify também.

 

 

Inspirada por essa linda conversa, vou indicar dois documentários que ensinam com prazer. Como diria o Zuza, aprender a ouvir é muito importante e quanto mais sabemos à respeito, mais divertido fica. Duas lendas do jazz têm documentários lançados e disponíveis, John Coltrane e Miles Davis. Tocaram juntos e os documentários conversam entre si, mesmo que sejam produções diferentes. Boas horas de prazer e nutrição. Ambos disponíveis no Netflix.
 

 

 

E o documentário sobre o "Garoto que me fez chorar de alegria", lançado no In-edit Brasil esse ano. Assisti em casa, claro. Depoimentos de Carlos Lira e Roberto Menescal contando como era importante saber "Duas Contas" ao violão. A imensidão deste instrumentista, a importância dele para o violão e para a composição brasileira. Absolutamente fundamental.
 

 

*Patricia Palumbo é jornalista profissional formada pela PUC/SP em 1986. Atua no meio rádio desde os 18 anos, especializada em música e meio ambiente. Há 22 anos criou o programa Vozes do Brasil, hoje no ar em 11 emissoras do país. Criou, em 2016, a Rádio Vozes, uma rádio digital, um aplicativo e uma plataforma de podcasts. Ainda apresenta a série Instrumental Sesc Brasil pela TV Sesc desde 1998, há 10 anos, com transmissão também pelo canal do Youtube do Sesc SP. 

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Radar Sonoro: Patricia Palumbo e Júlia Tygel

Para apresentar novas produções musicais, tanto inéditas, quanto em gestação, em tempos atuais, surgiu o projeto Radar Sonoro, uma série de vídeos e textos que traçam um panorama da produção musical brasileira no contexto de pandemia e distanciamento social.

O quinto encontro da série digital, disponível a partir de sexta, 20 de novembro, às 11h, no Youtube do Sesc Pinheiros, tem como convidadas a compositora e pianista Júlia Tygel, idealizadora do coletivo A Nossa Música, com a curadoria do compositor Benjamin Taubkin, e a jornalista Patrícia Palumbo, para conversar sobre a produção musical na pandemia.

A Nossa Música, inspirado na ação "Versinhos de Bem-Querer", das Mulheres do Vale do Jequitinhonha, é uma alternativa para gerar renda aos artistas que estão impedidos de se apresentar em público durante a pandemia. Com a indicação de um mote, que pode ser um verso, um fato, uma imagem ou um sentimento, as pessoas encomendam uma música pelo site www.anossamusica.com.br, para ser composta e executada por artistas.

Com 30 músicos participantes, entre eles Ricardo Herz, Daniel Grajew, Salomão Soares, Fabiana Cozza e Marcelo Pretto, em três meses de atividade, o projeto já produziu 80 músicas. A iniciativa reforça que a arte une e equilibra as pessoas, permitindo que cada um acesse suas emoções e reflita de maneira sensível, principalmente nos períodos de crise.

O valor arrecadado na campanha será dividido entre os artistas, sendo que 4% serão destinados ao Conexão Música, outro projeto de auxílio emergencial aos profissionais da música. 

O Radar Sonoro traz, em cada edição, um nome do jornalismo musical e um artista da cena da música brasileira. Já participaram do projeto o vocalista da banda Mombojó, Felipe S, o trombonista Joabe Reis, a compositora e ativista Dani Nega, o arranjador Thiago França e os jornalistas e críticos musicais Alexandre Matias e Carlos Calado e as jornalistas Debora Pill e Patricia Palumbo.

Antes da próxima estreia, aproveite para assistir aos episódios anteriores!