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Nas ruas e nas redes

Adriana Vichi
Adriana Vichi

DESAVENÇAS, FALTA DE DIÁLOGO E DESINFORMAÇÃO SÃO POTENCIALIZADAS PELAS REDES SOCIAIS, MAS A RAIZ DESSES PROBLEMAS PODE ESTAR FORA DO ESPAÇO VIRTUAL

 

Ao criar a internet, as redes sociais e os aplicativos voltados para a comunicação, seus inventores buscavam derrubar fronteiras geográficas, aproximar pessoas e difundir conhecimento e informação, gratuitamente, para os usuários dessas ferramentas. No entanto, como ocorre com outras criações humanas, finalidades e maneiras de uso desdobram-se em variáveis. Professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Filosofia, Pablo Ortellado investiga as peças desse tabuleiro. Ele acredita que essas plataformas não são a causa em si para o atual cenário de polarização política, discursos de ódio e desinformação. “Com toda a certeza há o componente tecnológico. Ou seja, a estrutura, a forma e as mudanças nas tecnologias de comunicação impactam organizações diversas. Mas eu seria prudente ao atribuir a polarização política às redes sociais. A gente não tem nenhum elemento que indique que elas sejam a causa ou mesmo o componente principal”, diz. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação (Gpopai), Ortellado afirma que é preciso levar em consideração mais do que a influência da tecnologia sobre o comportamento da sociedade. Ainda é preciso considerar os protagonistas por trás dessas plataformas, e de que forma uma legislação pode ser capaz de responsabilizar esses atores e conter o fenômeno das fake news. “Ela [a indústria da tecnologia] realmente organiza o debate político. Mesmo no Brasil, que já acumula mais horas de uso nessas redes do que assistindo à televisão. Por isso precisa haver uma regulação”, complementa.

 

A polarização tanto na área política quanto nas relações interpessoais foi provocada pelas redes sociais?

A resposta honesta para essa pergunta é que a gente não sabe. Com toda a certeza há o componente tecnológico. Ou seja, a estrutura, a forma e as mudanças nas tecnologias de comunicação impactam organizações diversas. Mas eu seria prudente em atribuir a polarização política às redes sociais. A gente não tem nenhum elemento que indique que elas sejam a causa ou mesmo o componente principal. Vou dar um fato contrário a essa tese: sabemos que a população mais velha está mais polarizada e essa parcela é a que menos usa as tecnologias digitais. Então, isso sugere que a gente olhe mais para as causas sociais e políticas. Claro, tem um componente de comunicação — a comunicação organiza politicamente e estrutura um debate —, mas hesito ao atribuir uma causalidade às tecnologias como acontece no documentário O Dilema das Redes (2020), sobre o qual pessoas estão discutindo e acho que de maneira muito apressada.

 

Por que apressada?

Quando os entrevistados falam do vício em tecnologia, que é o centro do documentário, acho que eles têm muito a dizer porque foram eles que a desenharam. A gente não vê o executivo, o engenheiro chefe, o pessoal que arquitetou tudo isso. Mas, quando se fala dos efeitos políticos, acho que os entrevistados estão sendo tecnodeterministas. Está longe de haver um consenso na comunidade que estuda as relações entre as tecnologias de comunicação e os processos sociais e políticos sobre se existe uma relação de causalidade. A gente tem dados conflitantes e ainda não conseguiu isolar esse fator.

 

NÃO FORAM OS ALGORITMOS QUE INVENTARAM

ESSA NOSSA PREDISPOSIÇÃO A ESCOLHER CONVIVER

COM PESSOAS QUE PENSAM PARECIDO

 

O documentário é feito com base em depoimentos de dissidentes. Ou seja, é o primeiro caso contemporâneo de pessoas que ajudaram a construir aplicativos, redes sociais, sites, e que agora estão “pulando fora”, assustadas com o que elas próprias criaram. Por quê?

Em relação aos dissidentes é curioso porque se você olhar para outras indústrias vai ver que isso jamais aconteceu. Não aconteceu na indústria do tabaco ou na indústria automobilística. Então, tem um elemento aí. Eles reuniram muitos dissidentes, e acho que isso tem a ver com a natureza dessa indústria, que é muito particular. A indústria da tecnologia é “portadora de valores”. Ela acha — e esse é um discurso compartilhado por muitos autores — que é promotora de uma espécie de bem social. Promotora da democracia e da liberdade de expressão. Como se as ferramentas que ela está difundindo fossem um benefício para a humanidade. Esses valores estão muito encarnados dentro dessas empresas.

 

Boa parte dos criadores da indústria da tecnologia, como a turma de Bill Gates e Steve Jobs, foi inspirada pelo movimento hippie. Tanto que havia, no início, essa ideia de uma comunidade aberta, de algo livre. Ou seja, ela nasce sob um espírito libertário, mas a impressão que se tem é que ela é tomada pela questão financeira. O que pensa a respeito?

Isso é algo bastante estudado. Essas empresas de tecnologia sofreram muito impacto da contracultura, na qual a cibercultura está enraizada, assim como está enraizada na cultura acadêmica, que tem esses valores de colaboração e de conhecimento aberto. E essas empresas, por sua vez, estão muito enraizadas nas universidades. A Google nasceu de um projeto de dois doutorandos da Universidade Stanford, o Facebook nasceu do projeto de um estudante da Universidade Harvard. Por isso acho que essa é uma indústria bem particular.

 

É justamente esse espírito libertário que atrapalha a própria indústria? Ela acaba se transformando nesse espaço para manifestações de ódio, de racismo, de xenofobia e intolerâncias de maneira geral?

Se você olhar para o começo da internet até os anos 2010, havia uma crença genuína de que essas tecnologias digitais eram portadoras de transformações positivas. Era unânime isso. Aliás, quanto mais para o início da abertura da internet, nos anos 1990, mais forte era esse pensamento. Até o começo de 2010, há um papel libertário e revolucionário. Isso só mudou com o processo de polarização política e junto com ele o problema das notícias falsas. Então, a desinformação se consolidou de um lado e do outro lado a ascensão de governos populistas. Aí, esse panorama “róseo” que o mundo viveu da abertura da internet de 1995 até 2010 foi substituído por uma visão muito negativa.

 

Hoje se discute uma legislação para a responsabilização dessas empresas de tecnologia que veiculam notícias falsas. O que pensa disso?

Acho que isso tem a ver com o que dissemos antes. Havia um entendimento de que essas tecnologias eram portadoras de um bem, de que elas encarnavam determinados valores. À medida que isso se mostrou flagrantemente falso, essa ideologia da não regulamentação também está indo embora. Nós estamos falando de regulação múltipla. Essas empresas já são reguladas no tocante à privacidade, à guarda de dados pessoais, mas acredito que haverá uma regulação que envolve o próprio conteúdo.

 

Como seria?

Por exemplo, todo processo de moderação de conteúdo — desde a sua retirada, o que as empresas já fazem de acordo com seus termos de uso, até o processo de distribuição dos conteúdos — vai ser regulado mais cedo ou mais tarde. Porque, na verdade, essas empresas estão organizando o debate público, e não faz o menor sentido que o debate público, que depois vai gerar efeitos políticos concretos, seja organizado por uma empresa privada, seguindo regras privadas. O que as empresas fazem? Elas determinam o que entra e o que sai: o que entra livremente, o que é rotulado como falso, o que é rotulado como questionável, o que é distribuído amplamente, o que é distribuído parcialmente e o que é retirado de circulação. Determinam também quem perde a conta e deixa de participar dessa esfera pública digital. Isso é poder demais para uma empresa ter. Ela realmente organiza o debate político. Mesmo no Brasil, que já acumula mais horas de uso nessas redes do que assistindo à televisão. Por isso precisa haver uma regulação, por isso o PL [projeto de lei] das Fake News.

 

ESSAS EMPRESAS DE TECNOLOGIA SOFRERAM MUITO IMPACTO

DA CONTRACULTURA, NA QUAL A CIBERCULTURA ESTÁ ENRAIZADA,

ASSIM COMO ESTÁ ENRAIZADA NA CULTURA ACADÊMICA,

QUE TEM ESSES VALORES DE COLABORAÇÃO E DE CONHECIMENTO ABERTO

 

 

Nos últimos meses, houve medidas de retirada de tweets de políticos, a exemplo de informações falsas sobre a Covid-19. Há aí uma questão de saúde pública, não de cerceamento à opinião. Por que o Twitter agiu dessa forma e o Facebook não derrubou postagens desse tipo?

A diferença de abordagem tem a ver com o tamanho, a orientação e como a empresa é gerida. O Twitter é uma rede muito menor que o Facebook e tem um passado ativista. O Facebook é uma empresa mais comercial e vai além, já que dela fazem parte o Instagram e o WhatsApp – este último não é relevante nos Estados Unidos, mas é no resto do mundo. Saíram várias reportagens na imprensa americana, como no New York Times e Washington Post, mostrando que o Facebook fez muitos esforços para incorporar mais executivos ligados ao setor conservador, porque a empresa era entendida como de esquerda e com vínculos naturais com o Partido Democrata. Foi aí que ela passou a incorporar conservadores, para criar uma imagem mais equilibrada de si. E o Facebook sabe que, se aplicar de maneira uniforme as regras, vai prejudicar mais o campo conservador do que o campo progressista. E é por esse motivo que, de acordo com essas reportagens, a empresa criou essa excepcionalidade para o discurso político. O argumento do Facebook é o seguinte: o interesse do eleitor de conhecer a posição do seu representante prevalece sobre a obrigação da plataforma de retirar um conteúdo danoso.

 

Foto: Adriana Vichi

 

Nessa polarização, vemos as chamadas bolhas nas redes. Como funcionam essas bolhas?

Primeiro vamos definir. Quando a gente usa as ferramentas de mídias sociais, o ordenamento dos posts de um grupo de 300 pessoas, por exemplo, que você segue, não aparece em ordem cronológica. O algoritmo — conjunto de instruções da plataforma –, ordena os posts de uma determinada maneira. E esse ordenamento é uma tentativa do software de antecipar as nossas escolhas. O resultado disso seriam as tais bolhas. Ou seja, a gente vê muito mais mensagens parecidas com quem a gente é. Agora, essas bolhas, de certa maneira, reproduzem escolhas que a gente faz offline, as tais “câmeras de eco”. Quando a gente está fora, a gente sai para jantar com amigos que pensam como nós, a gente trabalha em ambientes parecidos conosco. Existe uma homogeneidade cultural e de valores nos lugares que a gente frequenta offline.

 

São as bolhas que reforçam a polarização política atual?

Há um argumento que diz que as bolhas criaram a polarização política ao fazer a gente só escutar vozes muito semelhantes às nossas, amplificando nossas convicções e segregando quem pensa diferente. Embora isso deva ter acontecido em alguma medida, essa ideia de causalidade sugere que aquilo que os algoritmos fazem é muito diferente do que o que a gente mesmo faz. E tem muitos estudos mostrando que não é tão diferente, talvez seja um pouco mais intenso. Por exemplo, na hora em que saio do meu trabalho, se sou uma pessoa de esquerda não vou procurar uma pessoa de direita para tomar uma cerveja. Ou seja, não foram os algoritmos que inventaram essa nossa predisposição a escolher conviver com pessoas que pensam parecido.

 

E quanto à ideia de que, por intermédio da bolha, uma opinião minoritária ou um fato falso muito comentado e com repercussão se transforma em algo verdadeiro?

A natureza do problema que estamos vendo da desinformação não tem a mentira no centro, ela tem mais a distorção que a mentira. Esse é um elemento importante. Não sabemos o que deu origem ao processo de polarização, mas, quando ele se estabeleceu, as fontes de informação desse público segregado — a polarização no âmbito digital se manifesta pela segregação do público, ou seja, gente que só consome informação de determinado circuito e outro grupo de pessoas que só consome informação de outro circuito — geraram uma espécie de ecossistema (curtida de páginas, canais de YouTube, sites de notícias) que alimenta esse público segregado. E o que fazem essas páginas, contas e canais? Elas basicamente pegam os fatos do dia noticiados pela imprensa tradicional, atribuindo a própria ideologia e visão de mundo para aquela notícia. Dessa forma, elas cumprem o papel de alimentar seu público com a perspectiva daquele campo político sobre aqueles fatos. Só que eles não estão fazendo isso na forma de opinião política. Eles estão fazendo isso na forma de uma apresentação distorcida das informações.

 

SABEMOS QUE A POPULAÇÃO MAIS VELHA ESTÁ MAIS POLARIZADA

E ESSA PARCELA É A QUE MENOS USA AS TECNOLOGIAS DIGITAIS.

ENTÃO, ISSO SUGERE QUE A GENTE OLHE MAIS PARA

AS CAUSAS SOCIAIS E POLÍTICAS

 

 

De que forma?

Os sites de notícias falsas parecem ser de notícias verdadeiras porque eles têm uma forma noticiosa, têm manchete, aspas, lead, enfim, um formato noticioso. Mas eles não seguem um procedimento jornalístico, não fazem apuração nem reportagem. Não verificam documentos nem ligam para fontes. Você pode pegar qualquer um desses sites e vai ver que a maioria das coisas ali não são mentiras, mas distorções. Uma manchete em desacordo com o texto, alguma coisa tirada do contexto ou exagerada e de vez em quando uma mentira. Essa é a natureza do problema. O que está acontecendo é que o sistema de interpretação se descolou do sistema de apuração da notícia e de determinação dos fatos da ciência. Então, a gente tinha duas instituições que se ocupavam de determinar fatos: o jornalismo (fatos políticos) e a ciência (fatos científicos). Não tinha interpretações ideológicas. Quem fazia isso: comentaristas, ativistas, os políticos. Esse sistema se autonomizou e agora apresenta os fatos. Quando isso acontece dos dois lados do espectro, não temos fatos em comum com uma leitura de direita e outra de esquerda. Isso torna preocupante a segregação de públicos. Então, o terreno comum é que os fatos desapareceram e não estamos debatendo a interpretação dos fatos, estamos debatendo uma ideologia que se desgarrou da verdade factual. 

 

Ao longo da história, sempre houve notícias que pendiam para uma ideologia ou outra. Mas hoje há um número expandido de pessoas que manipulam as notícias por interesses diversos. Discursos racistas, misóginos, radicais de direita e de esquerda.

Como em tudo, há continuidades e mudanças no âmbito social. Por exemplo, mentira na política não é algo novo. Jornalismo editorializado não é novo. Porém, tem uma coisa bem nova nisso tudo: a distribuição não é de massa. Isso é bem novo e isso tem a ver com a natureza do nosso problema contemporâneo. Quem distribui a mensagem? Somos nós. E isso é bastante importante, porque nós não estamos falando só de um ator malicioso que está produzindo informação, mas também de um público hiperengajado e segregado que está lendo e passando adiante essa informação. E essa mudança é bastante significativa. Porque, para esse esquema funcionar, preciso de um público que esteja segregado, apaixonado e superengajado, algo que não era necessário no esquema anterior. Não à toa, a gente sabe que a força, a intensidade do sentimento que é despertado por uma mensagem social, está diretamente associada com a quantidade de compartilhamento. Sobretudo informações fortes como ódio, indignação e medo. Esses três sentimentos que as mensagens despertam fazem o usuário apertar o botão de compartilhamento. Então, não é suficiente ter uma máquina de produção de informações desconhecidas, é preciso ter um público assustado, indignado e com ódio para que ele receba as minhas informações e, movido por esses sentimentos, passe as informações adiante. Falamos aí de uma boa parte da população brasileira, e é por isso que a gente tem visto o engajamento nas mídias sociais subir e também a participação em protestos.  

 

Se faz necessária a educação midiática para que as pessoas tenham consciência de que a internet não é “terra de ninguém” e que ela está sob uma legislação?

Falta educação midiática para as pessoas entenderem esse cenário, mas acho que a natureza do problema está além. Porque o problema não é de ignorância das pessoas. Tanto é que a gente sabe, por exemplo, que o consumo de desinformação aumenta com a escolaridade. Não é que as pessoas são mal informadas, é que elas estão hiperengajadas. É um problema de natureza política, de um engajamento político ruim no qual a gente fica muito ativo politicamente e começa a ter comportamentos de grupos de poucas reflexões, que vão gerando divisão na sociedade, intolerância política e que vão caminhando para a violência. Não tenho dúvida de que estamos caminhando a um ritmo rápido para uma intolerância tão crescente que vai gerar mais violência política no futuro. A gente se meteu numa dinâmica política da qual precisa escapar, do contrário ela vai nos afundar ainda mais, porque a gente ainda não chegou ao fundo do poço.

 

NÃO ESTAMOS DEBATENDO A INTERPRETAÇÃO DOS FATOS,

ESTAMOS DEBATENDO UMA IDEOLOGIA QUE SE DESGARROU

NA VERDADE FACTUAL

 

 

No documentário O Dilema das Redes, um dos entrevistados levanta até a possibilidade de uma guerra civil se não houver uma legislação que regule essa disseminação de ódio e ações de intolerância. Qual sua opinião a respeito?

Isso está acontecendo, não há dúvida. Só que não atribuo isso às redes sociais. Escrevi na minha coluna no jornal Folha de S.Paulo sobre isso: pesquisadores dos Estados Unidos, os mais importantes que investigam o fenômeno da polarização, chamaram a atenção. Foi um caso curioso, porque eles estavam pesquisando, em paralelo à questão da violência política, a abertura de grupos politizados à violência política. E, quando eles juntaram seus bancos de dados, descobriram que haviam feito perguntas formuladas de maneira igual, o que permitiu que montassem uma série histórica. Eles viram que de 2017 para cá, entre as pessoas que se identificam como democratas e republicanas, o número daquelas que consideram justificável o uso de violência para atingir finalidades políticas saltou de 8% para 33%. Por volta de 20% dos dois grupos acham que é justificável o uso de violência caso o seu partido perca as eleições.

 

Qual sua opinião sobre guerras culturais e agora o tal “cancelamento” nas redes sociais?

As guerras culturais têm uma origem. E, claro, todas as transformações sociais têm manifestação dentro dessa nova forma de comunicação, mas não atribuo a emergência disso a essas plataformas. O que aconteceu foi que um sistema político entrou em crise e ele incorporou movimentos da sociedade civil. Se você buscar a gênese das guerras culturais, elas são uma reação do campo conservador às mudanças nas relações interpessoais. Então, nos anos 1960 e 1970, a gente tem o movimento gay, o movimento feminista e a contracultura enfatizando mudanças nas relações entre as pessoas, na forma como homens e mulheres, brancos e negros se relacionavam. Essas mudanças começaram a se enraizar na sociedade. Mais ou menos com uma geração de atraso, os conservadores perceberam que isso estava virando a nova norma social. Quando as guerras culturais foram deflagradas nos anos 1990, ocorreu uma mudança no campo político. Havia um fenômeno de indiferenciação entre esquerda e direita e um descrédito da política, ou seja, a desconfiança em partidos políticos e em instituições do governo. A crise que advém dessa indiferenciação da política foi substituída por uma hiperdiferenciação. Dessa forma, as guerras culturais são abraçadas pela política, isso vira o centro da separação entre esquerda e direita, e o resultado é a polarização política.

 

O WhatsApp no Brasil é um fenômeno. Uma rede de comunicação entre amigos e conhecidos que se tornou um dos grandes propagadores de fake news. Como vê o uso dessa plataforma?

O problema do WhatsApp tem o protagonismo brasileiro. A gente viu o uso do WhatsApp na campanha do referendo na Colômbia, nas eleições presidenciais mexicanas, mas em 2018 foi uma revolução ter uma campanha desenhada em cima do WhatsApp, como a do atual presidente brasileiro. Houve certo brilhantismo intuitivo dessa campanha ao perceber que o aplicativo tinha características próprias por causa da sua forma. Por exemplo, se eu viralizo uma mensagem no WhatsApp, eu não sei de onde ela veio. É diferente no Facebook ou no Twitter. Por eu não saber de onde ela vem, aí é o lugar onde posso jogar sujo. Consigo saber apenas quem foi a última pessoa que me enviou. A segunda característica desse aplicativo é que ele não permite resposta. Quando respondo a uma mensagem dessas, a minha resposta não é redistribuída pela cadeia, só consigo responder a um pedacinho da cadeia de distribuição que me diz respeito. Então, isso mata o debate público. E é esse problema, sobretudo, no PL das Fake News: rastrear no WhatsApp as mensagens virais. Ele tenta aplicar um tratamento regulatório diferenciado: preserva-se a privacidade das mensagens interpessoais, mas é preciso retirar do anonimato essas mensagens de massa, permitindo reconstruir a cadeia de sua distribuição. Aí você dá instrumentos de investigação para a Polícia Federal e para o Ministério Público poderem saber de onde veio a notícia.

 

 

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