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Meu mundo, o picadeiro

Paulo Barbuto
Paulo Barbuto

Graduado em administração de empresas, Fernando Sampaio engavetou o diploma para vestir outra profissão: a de palhaço. À revelia da família, no final da década de 1980, decidiu que seguiria um caminho de encantamento, acrobacias, risos e desafios, do qual aos 55 anos de idade se sente orgulhoso. Desde 1989, fosse nos parques e praças, nas salas de teatro ou no circo, o artista criou e participou de diversos espetáculos com diferentes companhias, como Nau de Ícaros e Pia Fraus. Até que, em 1997, fundou a Cia. La Mínima, ao lado do ator e parceiro Domingos Montagner (1962-2016), com quem também criou o Circo Zanni em 2004. Após meses de fechamento por causa da pandemia, em novembro passado, o circo pôde armar a lona. Foi no Sesc Parque Dom Pedro II que o picadeiro um pouquinho diferente (obedecendo aos protocolos de segurança e saúde) se formou. Entre prêmios recebidos ao longo da carreira e inúmeros alunos formados em oficinas, Fernando Sampaio acredita que o troféu mais importante pelo seu ofício seja abrir sorrisos em adultos e crianças. Respeitável público, neste Encontros, o artista compartilha recordações, fala sobre formação e ensino, diversidade, desafios e peripécias.

 

Antes do riso

Quando eu tinha 17 anos, e fazia cursinho, no teste de aptidão vocacional deu: desinteresse generalizado. É que sempre fui uma pessoa muito distante do ensino formal. Quando fui prestar vestibular, entrei, por acaso, no curso de administração de empresas. Tinha um emprego num banco, onde trabalhava como office boy, até que, em 1985, vi Ubu, Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes [do grupo Teatro do Ornitorrinco], um espetáculo no qual o circo era muito forte. Minha história começa aí. A minha primeira impressão era de que o teatro devia ser uma coisa prazerosa. Fui buscar uma escola e encontrei a Recriarte, na Vila Madalena. Fazia o curso de teatro aos sábados por causa do meu emprego. Tinha uma feira em frente à escola e o dono da escola pediu para os alunos saíssem por ela para fazer uma divulgação. Sobrou para mim o figurino de palhaço. Então, minha primeira saída como palhaço também foi por acaso. Na época, me lembro de uma sensação muito boa. Até hoje, passados 35 anos, me sinto bem como palhaço.

 

Novos rumos

Na época em que fazia o curso de teatro, vi um folhetinho com o anúncio de uma oficina no Sesc Pompeia. Era de introdução ao clown ou ao palhaço, algo assim, com a Val de Carvalho e o Edson Di Mello, em 1986 ou 1987. Depois da oficina, a Val me falou: “Acho que o circo pode ser uma coisa boa para você. Vá ao Circo Escola Picadeiro e procure o Seu Rogê [Roger Avanzi, conhecido como Palhaço Picolino, 1922-2018]”. Mas para mim era muito difícil, porque em 1987 eu já havia me formado e era analista de assuntos fiscais. Mesmo assim, ficava de olho no Circo Escola e fazia curso de teatro aos sábados. Até que o teatro começou a me interessar muito e resolvi sair do emprego fixo, de segunda a sexta. Inventei uma história e fui trabalhar com meu pai, que era corretor de imóveis. Ele era autônomo e sabia que tinha horários flexíveis. Daí, eu pensei que essa seria uma boa saída para me manter num emprego estável e ter horas vagas para escapar. No escritório, dizia que ia ver um imóvel e escapava para a escola de circo, onde conheci o palhaço Picolino e fiquei doido. Quando conheci a figura do Rogê, foi uma identificação e admiração muito grande pelos palhaços e por todos os artistas de circo. Foi na escola de circo que conheci o Duma [o ator Domingos Montagner], meu parceiro. Até que num determinado momento, não dava mais para fazer qualquer outra coisa que não fosse me dedicar totalmente ao circo. Foi uma briga em casa, mas eu entrei de cabeça.

 

APRENDI QUE PALHAÇO BOM É UM PALHAÇO

COM MUITAS VIRTUDES – E AS GRANDES ESCOLAS NÃO SÓ FORMAM

O ARTISTA DE CIRCO, MAS GRANDES ARTISTAS

 

 

Chapéu na mão

Eu já tinha um trailer, que estacionei no Circo Escola, onde fiquei morando um tempo. Com Domingos, comecei a fazer apresentações na rua muito rápido, acho que já em 1989. Íamos para parques da cidade de São Paulo passando o chapéu. Depois, acho que meus primeiros trabalhos no Sesc São Paulo começaram em 1990, no Sesc Bertioga. Na época, eu trabalhava com a Banda Palhaçal e com outro grupo chamado Circo e Companhia. Além disso, a dupla com o Domingos foi crescendo. Ele era da Pia Fraus e eu montei uma companhia, a Nau de Ícaros, onde fiquei até 1995. Mas ainda éramos Domingos e eu, a dupla, porque a gente sempre escapava para se apresentar juntos em parques. Até que, em 1997, a gente montou o primeiro espetáculo: LaMínima Cia. de Ballet. Eu trabalhava eventualmente com a Pia Fraus, com a qual participei de uma produção no Sesc Consolação em 1999, o espetáculo Navegadores. Em 2000, Domingos saiu da Pia Fraus e, a partir de 2001, a gente passou a focar toda nossa agenda no grupo La Mínima. Em 2001, montamos À La Carte, primeiro espetáculo de sala de teatro. E, assim, nestes 22 anos do La Mínima, montamos 16 espetáculos. Estamos continuamente em processo de montagem.

 

 

 

 

Nasce o circo

Paralelamente ao La Mínima, Domingos e eu montamos o Circo Zanni em 2004, fruto de um momento especial do circo em São Paulo. Acho que em 2001 ou 2002, houve um movimento para que tivéssemos um galpão em comum que foi a Central do Circo. Uma grande parte da classe se juntou, fazíamos uma vaquinha e alugávamos um galpão em Cotia. Então, a gente tinha essa associação que se transferiu para São Paulo em 2002, depois que ganhamos do município um projeto de fomento ao teatro. Alugamos um galpão incrível que foi um marco na cidade para a classe. Dentro dessa associação, convivendo, a gente juntou uma turma de amigos e resolveu fazer uma experiência: alugar uma lona e levá-la ao município de Boiçucanga para que tivéssemos essa experiência de circo. Em janeiro de 2004, alugamos uma lona pequena e começa aí, de uma experiência na praia, o Circo Zanni. O resultado foi incrível. O circo lotava e a gente acreditou na nossa junção. Tanto que estamos juntos, grande parte desse grupo, há 16 anos. O Circo Zanni é uma paixão especial. Também levo o La Mínima até hoje. Nesse momento, estamos montando um espetáculo, interrompemos por causa do coronavírus, mas fizemos ensaios por Zoom, pesquisas pela internet. De alguma maneira nos encontrando virtualmente, nos mantivemos na ativa, e, quando foi possível, presencialmente, de máscara. O circo é transformador. Tenho 55 anos e quero daqui para os meus 80 anos ser palhaço de circo.

 

Ensino e formação

Entre as coisas que são muito importantes no circo e que percebi no meu aprendizado é que os grandes palhaços são artistas completos. O próprio Grock [palhaço suíço, 1880-1959] era um músico espetacular e um ator extraordinário. Na tradição do circo, exigia-se que os artistas estudassem música, dança, acrobacia, teatro, magia cômica e que soubessem lidar com bichos até onde essa prática foi permitida [no Brasil, 11 estados proíbem a presença de animais em números de circo desde 2018]. Na Europa, escolas de circo da Bélgica e da França, por exemplo, existem desde os anos 1940 e 1950; na Rússia e na China essas escolas surgiram bem antes. E, nessas escolas europeias, além de se especializar numa técnica circense, você se forma após tocar um instrumento e ter feito uma peça de teatro. São escolas muito exigentes. Aprendi que palhaço bom é um palhaço com muitas virtudes – e as grandes escolas não só formam o artista de circo, mas grandes artistas. Sempre falo que não gosto muito de trabalhar como professor. Gosto muito mais de exercer a função de ensaiador, porque não aprendi a dar aulas de circo, minha experiência foi na prática. Você só vai aprender um número de trapézio depois de muitos calos na mão, e, se for no tecido, depois de muitos exercícios de fortalecimento. Como na música: ninguém se torna muito bom se não dedicar muitas horas à prática de um instrumento.

 

Para todes

O ponto de partida para atender a curadoria do Festival Internacional de Circo de São Paulo (FIC) [realizado em dezembro passado] é a diversidade. Acho que ninguém hoje em dia pode fazer um festival ou evento sem cuidar dessa questão. Outra coisa: das poucas oficinas de palhaçaria e comicidade física que realizo, posso dizer que, de 15 anos para cá, o número de inscrições de mulheres é sempre maior em relação ao de homens. Então, o mercado de palhaças, palhaços e palhaces em São Paulo é bem dividido. Hoje o preconceito contra a palhaça me parece superado. As mulheres são maioria no mercado de circo e nas escolas de circo.

 

Próximo ato

Chama a atenção o fato de grupos como o La Mínima, Os Parlapatões, Le Plat Du Jour e Pia Fraus, por exemplo, mesmo com 30 anos de história, serem dependentes de editais públicos ou de contratações. Mesmo sendo grupos independentes, há certa independência que ainda não alcançamos: a independência de viver da bilheteria. Isso é uma questão que chamaria, por parte das companhias de circo, mal resolvida. Quando começamos, em 1991, eu já ia para parques, e a gente viveu durante um bom momento de passar o chapéu, depois, saímos um pouco da rua para o segmento do teatro e das contratações e isso de alguma maneira nos deu uma dependência. Não temos, infelizmente, uma autonomia de viver da venda de ingresso. E ainda não sei como podemos resolver essa questão.

 

Fernando Sampaio esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 20 de novembro de 2020

 

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