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Habitar Palavras: Juliano Napoleão

Em chamas

Um museu, uma floresta,
Arruinados pelo fogo.
Chamas e sombras
Do mesmo triste jogo.

Símbolos de um povo
Levado ao esquecimento.
Seduzidos pelo arbítrio
De um capitão nascimento.

De uma antiflor
De ódio e medo.
Do sanatório geral,
Mais um samba enredo.

Cá entre nós,
Ando tão solitário!
Dos filhos deste solo,
És mãe, Brasil,
Ou pai autoritário?

Mas, entre a angústia
E as ruínas,
Um livro persiste.
Nas mãos de uma mulher negra,
Que, para além da morte,
Resiste.

Livro que desejo forte,
Apesar de tão rasgado.
Chama de luz de lamparina
Na noite dos desgraçados.

 

Coberturas

Não tenho espaço para esse aplicativo,
Não devo ser compatível.
Não tenho tempo para isso,
Tenho que trabalhar.

Talvez seja esse dispositivo.
Obsolescência obscena.
Não tenho tempo para isso,
Tenho que comprar.

Um anúncio cobriu a tela,
Que cobriu a vida.

O ar está coberto de perigos.
Os encontros, proibidos.
Cubra seu rosto de tecido,
Cubra-se de solidão.

Nas redes sociais,
Camadas de ódio e vaidade
Dão cobertura
Para a truculência dos demais.
Cubra mais um corpo,
Coberto de razão.

Enquanto isso,
A cobertura dos jornais
Encobre a indiferença
Às diferenças sociais.
Cubra mais um corpo,
Encoberto de razões.

O sinal está ruim,
Não é um bom sinal.
Vocês estão me vendo?
Vocês estão me ouvindo?

Deve ser interferência,
Deve ser viral.
Vocês estão se vendo?
Vocês estão se ouvindo?

Preciso desligar.
Vamos perder essa conexão,
Deixar cair.
Descobrir novos meios
E novos fins.

 

De tela em tela

De tela em tela,
Asse o tempo, veja a vida passar.
Passar sem se passar.
Longe de onde se está.

Para um drama feito de feijão,
Uma vida feita só de não.
Ela também tem as coisas dela,
Eterna tampa sem panela.

De tela em tela,
Ignore os sentidos, ignore a favela.
Ecoe seu ego com filtros,
Sem choro, nem vela.

Para um drama feito de razão,
Uma vida sem explicação.
Ele também tem as coisas dele,
Sem guias que o aconselhe.

De tela em tela,
A série substitui a novela.
Trama vazia, nada revela.
Novas versões da mesma cela.

Para um drama feito de limão,
Duas vidas só de circo e pão.
Nenhum doce vence o azedume,
Da solidão que os une,
Do julgamento que os pune,
Do medo que não se assume.

Basta.
Não ter para ser,
Não se vender,
Não servir para nada,
Nem se bastar.
Basta de se bastar.

Sediar a sede
Que o mundo mata.
Regar contra a corrente.
Na verdadeira navegação,
Que faz, do náufrago, o mar.


Sobre o autor

Juliano Napoleão é professor de Filosofia do Direito, Direitos Humanos e Metodologia da Pesquisa Científica. Possui graduação em Direito pela UFJF (2007), mestrado em Direito pela UFMG (2009) e doutorado em Direito também pela UFMG (2014), com período de investigação na Bodelian Law Library - Faculty of Law/University of Oxford (Inglaterra) e no Ius Gentium Conimbrigae - Centro de Direitos Humanos da Universidade de Coimbra (Portugal). É autor de diversos artigos, capítulos de coletâneas e dos seguintes livros: Direito e Cinema (org.); Justiça como vivência de alteridade; Justiça para uma vida boa; e Ética, transformação e liberdade. Promove a divulgação científica e filosófica de conteúdos relacionados aos direitos humanos e à transformação social pelo canal do YouTube e podcast Juliano Napoleão. Escreve também poesias e canções.

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

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