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Olga Quiroga: memória viva da luta de pessoas idosas por moradia na cidade de São Paulo

Por Olga Quiroga* e Áurea Soares Barroso**

 

Dona Olga, 84 anos de idade, nasceu no Chile e adotou o Brasil como seu país ainda na década de 1960. Em 2018, recebeu o título de Cidadã Paulistana, uma honraria concedida pela Câmara Municipal de São Paulo a pessoas nascidas em outras cidades, mas que desenvolvem ações significativas para a capital paulista.

Olga Quiroga tem o sagrado como princípio da sua existência, a sua devoção cristã a orienta em direção à prática do amor fraterno e solidário, o que faz com que abrace com bravura as lutas sociais. Começou defendendo os direitos de crianças e adolescentes, mas, desde a década de 1980, luta por melhores condições de vida para os idosos. É considerada referência, quando o debate gira em torno de moradia para idosos em vulnerabilidade social na cidade de São Paulo, por pesquisadores e seus companheiros de caminhada.   

Olga está sempre com o sorriso estampado no rosto, o ouvido atento, o olhar acolhedor e uma palavra de esperança para oferecer aos seus amigos. Ao mesmo tempo, sua palavra é firme e destemida ao dialogar com quem tenta diminuir a importância da contribuição social dos idosos ou usurpar os seus direitos. Uma mulher que combina delicadeza e doçura com coragem e combatividade, e vive com simplicidade na periferia da cidade de São Paulo.

Para Olga, a aprovação do Estatuto do Idoso foi um avanço, mas precisa ser mais conhecido pelos idosos e aplicado pelos governantes.

“Vamos começar pelo mais essencial. Onde tem banheiro público na cidade de SP? Se você comprar alguma coisa, você pode usar o banheiro de um estabelecimento, mas, se não está ali para comprar, então, não pode usar o banheiro. A calçada é uma coisa terrível... O governo precisa investir muito, muito mais em Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI). Muitas vezes, com a velhice, chegam as doenças, aquela doença porque a pessoa bebeu demais, aquela doença porque a pessoa fumou demais, aquela doença porque a pessoa trabalhou em ambiente que acabou prejudicando a sua saúde. Conversei outro dia com uma senhora idosa que cuida da sua mãe, que também é idosa. Ela me disse que precisou deixar o emprego para cuidar da mãe, mas que não sabe como cuidar da mãe acamada. Ela estava abalada emocionalmente, repetiu várias vezes: 'não sei como cuidar da minha mãe'. Então, o governo precisa investir muito em ILPI, porque chega uma hora que não dá mais para família cuidar. Os filhos precisam trabalhar, porque abandonar o trabalho só vai agravar ainda mais a situação daquela família. O governo precisa investir em Centro Dia [unidade pública destinada ao atendimento especializado a pessoas idosas e a pessoas com deficiência que tenham algum grau de dependência de cuidados], cuidadores para ajudar a família a cuidar dos seus idosos e muito em ILPIs, porque o número de ILPIs públicas ainda é muito pequeno. E o governo precisa oferecer esses serviços no lugar que ele está acostumado, não tirar o idoso do seu bairro”, comenta Olga Quiroga.

Às considerações de Olga Quiroga somam-se evidências em estudos que mostram, realmente, um descompasso entre mudanças ocorridas na transição demográfica e epidemiológica e investimentos em políticas públicas para idosos no Brasil.

Em plena pandemia causada pela COVID-19, Olga relata algumas experiências vivenciadas por pessoas idosas na cidade de São Paulo: "Outro dia fui até o centro da cidade, lá no Largo São Francisco, e tinha muito idoso na fila para pegar marmitex.  Conversei com algumas pessoas e ouvi a mesma coisa: 'na pandemia subiu tudo, subiu o preço do arroz, do feijão'. Então, as pessoas estão indo até o centro da cidade para buscar um pouco de comida para elas e também para levarem para casa. Elas entram na fila e depois voltam... Trocam a blusa e, assim, acabam se misturando na multidão e podem pegar mais de uma marmitex. Voltando do centro da cidade para casa, da janela do ônibus vi várias lojas na região do Bom Retiro e Brás com placas aluga-se, aluga-se... Muita loja fechou, então, agravou a situação e, para retornar a situação, ainda vai demorar. Está muito complicado. Os idosos que trabalhavam fazendo bico como plaqueiros no centro da cidade, fazendo propaganda de compra e venda de ouro, de empréstimo, as mulheres que estavam trabalhando em casa de família, limpando, cozinhando, perderam o seu ganho pão na pandemia. Uma senhora me disse que precisou vender a máquina de costura para pagar o aluguel. E depois que passar a pandemia, como vai poder continuar trabalhando?

Muita coisa boa também aconteceu na pandemia, por exemplo, o pessoal da saúde trabalhou além das suas forças, todo mundo viu isso, né? E mostrou a importância do SUS. Ae não existisse o SUS, o número de mortes teria sido muito maior. Um senhor que faz tratamento da próstata me ligou dizendo que não estava conseguindo pegar um remédio.  Ele devia estar sofrendo, porque mora em lugar onde tem que descer 30 degraus para ir até o banheiro. Então, liguei no posto de saúde que fica perto da casa dele, a gestora do posto atendeu o telefone e pediu para que ele fosse até lá no dia seguinte e que ele chegasse cedo, às 7h. Ela pegou a receita, conseguiu o remédio, levou esse senhor no carro dela pra lá e pra cá, até resolver o caso".

As situações vivenciadas pelos idosos e a dedicação de profissionais da saúde durante a pandemia por COVID-19, relatadas por Olga, encontram eco no discurso do escritor José Saramago no Banquete Nobel de 10 de dezembro de 1998:

Cumpriram-se hoje exatamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos(...) Nestes cinquenta anos, não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrênica humanidade, que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.(...) Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor.

 

Vila dos Idosos: uma experiência exitosa              

A atuação do Grupo de Articulação para Moradia do Idoso da Capital (GARMIC) foi fundamental para conquista da Vila dos Idosos. O GARMIC surgiu em 1999, mas alguns de seus integrantes já haviam participado de um movimento que resultou na ocupação de uma casa abandonada na região central da cidade de São Paulo. O movimento contou com apoio de outros movimentos sociais por moradia e de um grupo de profissionais da Assistência Social. A experiência, conhecida como “Casa Lar”, mostrou a importância de envolver idosos na gestão de serviços a eles destinados. Afazeres, papéis a serem assumidos e responsabilidades na condução daquele espaço eram discutidos e deliberados em rodas de conversa no coletivo. 

Na época, a Assistência Social trabalhava com o conceito de ‘casa de passagem’ como forma de atendimento habitacional, garantindo moradias provisórias. Assim, o GARMIC foi criado com o objetivo de reivindicar a aquisição de uma moradia definitiva.

A Vila dos Idosos está localizada na região central da cidade de São Paulo, com um complexo de 145 unidades habitacionais no Pari, distribuídas entre quitinetes e apartamentos de um quarto, onde residem cerca de 200 pessoas.  Algumas unidades são adaptadas para pessoas com deficiência. Há espaços para uso comum com salas para TV e jogos, salão de festas com cozinha e sanitários, área verde, espelho d’água, horta comunitária e elevadores. Os moradores têm assistência médica, oferecida pelo Programa de Atendimento ao Idoso (PAI), assim como acompanhamento de assistentes sociais e psicólogos.

O conjunto habitacional faz parte do programa habitacional da Prefeitura de São Paulo, que funciona por meio de modelo de locação social: a pessoa idosa paga 10% do seu rendimento mensal, que não pode ser superior a três salários mínimos, algumas despesas, como condomínio, que é muito baixo, aproximadamente R$ 35, além de outras para manter a sua casa.

Dona Olga conta que representantes de governo de diversas regiões do país já estiveram no espaço e espera que outras Vilas dos Idosos possam surgir. Para ela, os idosos deveriam participar mais ativamente da gestão do espaço, lembrando que a Casa Lar foi uma experiência muito interessante neste sentido. A Vila dos Idosos está vinculada à Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura de São Paulo, mas a sua administração é terceirizada.  

Para Olga, o idoso precisa mesmo é que o seu direito de moradia, que está na Constituição Federal e no Estatuto do Idoso, seja respeitado. Mas, para isso, tem de lutar não só pela moradia, mas pela saúde, junto com outros movimentos sociais, idoso junto com jovem, todo mundo junto.

Quem quiser conhecer mais sobre a Vila dos Idosos, pode consultar a pesquisa do sociólogo Rodrigo Bonicenha, basta buscar por BONICENHA, R. C. Envelhecimento na cidade: o caso da Vila dos Idosos. Tese (Doutorado), Universidade Federal do ABC, Santo André, 2019.

 

Vila dos Idosos | Para ver mais clique aqui.

 

Olga faz questão de lembrar que foi em 2005, durante o Encontro Nacional de Idosos, realizado no Sesc Pompeia, quando foi convidada para participar de uma Mesa, que o GARMIC ganhou visibilidade na cidade de São Paulo. “O movimento de moradia dos idosos deve muito ao Sesc, porque, quando a gente começou, foi o primeiro que deu espaço para gente mostrar a nossa ação lá no Sesc Pompeia. Estava acontecendo o Encontro Nacional de Idosos e o Sesc mostrou para todo mundo que a gente não era um grupo de velhos loucos, mas um Grupo que queria alguma coisa na vida, um Grupo organizado e reivindicando direitos de moradia para idosos”, relembra.

Quando concluímos uma conversa com dona Olga ficamos com a sensação que ela ainda tinha muito para nos dizer, pela sua experiência e pela sua vivência cidadã.

 

*Olga Leon Quiroga nasceu no Chile e está há mais de 50 anos no Brasil, se considera mais brasileira do que chilena e fica chateada quando se sente discriminada como “a estrangeira”. Em São Paulo, Olga tem se dedicado à organização de grupos para reivindicação por moradia digna para os idosos.

**Áurea Eleotério Soares Barroso, com experiência em pesquisa, docência e gestão pública, elaborou índice sobre as condições de vida dos idosos nos municípios paulistas em parceria com a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), chancelado pelo Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA/ONU).