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Habitar Palavras: Audrey Moreira

Diário de uma professora: página 1

De repente tudo mudou, da água para o vinho... o isolamento nos deixou longe das pessoas de nosso convívio e até das que mais amamos... diante de um vírus que todos desconhecíamos... medo do desconhecido, pois transformou nosso cotidiano de um dia para o outro. As aulas não tinham prazo para voltar, a sensação de impotência, chega a ordem e fecha a Escola. Pouco mais de um mês parada, sem atividades.

Uma mistura de sentimentos e a dificuldade de expor o que sinto me faz escrever. Afinal, me sinto insegura, tenho dúvidas que permanecem. Pensávamos que seria algo rápido, que em quinze dias estaríamos de volta. Já são mais de cento e cinquenta dias em quarentena... sinto falta da minha rotina, do meu trabalho. Estou passando por situações de angústia, de estar deprimida, me emociono quando converso nas lives/aulas com os alunos, desmonto em cada uma delas.

Se antes a rotina nos envolvia no ambiente escolar agitado, agora com o combate ao coronavírus, a sala de aula calorosa deu lugar a tela fria do computador e do celular. Desse choque de realidades surgiu uma profunda sensação de solidão.

Me encontro em um momento que tento me desdobrar em ampliar meus conhecimentos básicos digitais, o que já é uma busca muito solitária, e apreender o suficiente para conquistar meus alunos dessa era informatizada que vive com o celular nas mãos.

O distanciamento nos isolou e trouxe a ausência, sinto falta das pessoas e dos lugares que poderia estar... da Escola, da fisioterapia (e do Grupo da Dor), da Igreja, da Casa da Cultura (aulas de teatro e clube do livro), dos eventos culturais e sociais...

A pandemia do coronavírus nos isolou em nossas casas, fechou o comércio, fronteiras entre países e também nossas escolas... os pátios encontram-se silenciosos... as salas de aula que antes eram tumultuadas pelas interações de aprendizagem estão vazias pelo distanciamento social.

Para aliviar a falta do convívio que nos auxilia na vida escolar tudo que posso fazer é tentar diminuir essa sensação de desconforto e começar esse momento de educar a distância... mesmo me sentindo perdida e deprimida... precisava tentar.

Aulas montadas... cronograma elaborado, apenas atividades de leituras, interpretações e compreensão de textos...

Alunos sem mandar respostas... começo a ficar aflita...

Fico sabendo que nem todos possuem celular para participar das atividades... alguns moram onde a internet não funciona...

Tento manter a calma...

A falta de comunicação pode me deixar mais confusa do que já me encontro... o que devo fazer? Os dias vão passando e nada das atividades...

 

Diário de uma professora: página 2

Como posso dizer o que sinto se também não consigo saber? Como vou tentar encontrar uma solução para essa situação tão inesperada e conflitante?

Tudo aconteceu de repente... aulas estavam normais e presenciais, mas a pandemia chegou e tudo parou...

Depois de um certo tempo aulas online, via celulares, porém nem todos participam... quer dizer, a maioria não participa... e eu, como fico?

Tento... tento... tento... mas quase ninguém me dá um retorno... me sinto ignorada, fiquei sem dormir (precisei ir ao médico - preocupação com a falta de atividades dos alunos, como posso avaliar se não tem nenhuma produção?).

Já não sei mais o que devo fazer... estou me sentindo um náufrago à deriva, que perdeu o seu barco; aliás, vários barquinhos... por mais que eu tente poucos dos meus alunos me dão retorno das atividades que me empenho em tentar produzir com tantos avanços tecnológicos e a distância para trabalharmos atividades de leituras e interpretações. Como posso dar sequência aos conteúdos se poucos me dão o retorno que preciso para auxiliá-los em suas atividades de interpretações textuais?

Me sinto triste... um verdadeiro trapo, um bagaço; pois me desdobro em várias pesquisas para ampliar meu insignificante conhecimento em informática e produzir novas atividades que possam ser mais atraentes aos olhos dos meus alunos e... NADA.

Ninguém dá um retorno... as atividades estão vencendo o prazo, preciso entregar notas e... NADA.

Pouquíssimos fazem e me enviam suas atividades... e os outros? Cadê? Será que não vão fazer?

Meu Deus! O que faço? Eu tenho prazos... datas... mais um bimestre está findando e não tenho atividades para avaliar meus alunos... sei que alguns não possuem celular, outros estão em áreas sem acesso à internet... mas e a maioria... por que não fizeram?

Como poderei fazer uma média se nada foi entregue?

Será que ao menos eles estão lendo os textos que pedi?

Será que conseguem entender a listagem do cronograma de atividades? Será que escrevi numa linguagem muito difícil? Mas ninguém pergunta nada... Será que não seguindo as atividades da apostila eles vão conseguir fazer? Será que entenderam e estão brincando com a minha pessoa? Será que ninguém me entende? Será que nenhum pai ou mãe vê que seu filho não está fazendo nada? Será que estão debochando da minha pessoa?

E agora, amanhã eu entrego quais notas? Como fecho o bimestre?

 

Diário de uma professora: página 3

Minha angústia diminuiu um pouco graças as live que participei do Clube do Livro, uma vez por semana pela rede social da Prefeitura de Ubarana, através da Casa de Cultura.

Como falávamos de livros e literatura era muito interessante e uma forma de trabalhar motivando a leitura para toda a população, inclusive dos alunos das nossas escolas do município.

Como a aprendizagem ficou debilitada pelo afastamento momentâneo nessa fase digital, as lives podem nos proporcionar um retorno ao vínculo da aprendizagem. Semanalmente com sugestões de livros, dicas de leituras e escritores e professores entrevistados na tentativa de despertar o gosto e o hábito da leitura nos espectadores. O que não posso dizer é que foi um alívio, pois nem todos que interagiam eram alunos...

Gratificante pela troca de conhecimentos que cada um dos entrevistados nos agraciou em cada live, motivando com suas vivências e experiências, como foi a sua aprendizagem leitora e o que o motivou a ser um escritor(a) ou professor... servindo de exemplo aos expectadores/participantes das lives.

Porém a tristeza por não obter retorno dos alunos continua... pouquíssimos me dão uma resposta aos cronogramas entregues e às atividades solicitadas...

Fico sem saber como reagir a esse impasse...

Todos criamos expectativas e sabemos que sem qualquer atividade não poderemos sequer avaliar a aprendizagem leitora e interpretativa dos alunos, o que é uma das funções básicas para estarem nas escolas... trabalhando com adolescentes sei que tenho que ter paciência... mas nem toda paciência do mundo diminui a minha aflição por não ter retorno ou questionamentos, dúvidas que os alunos sempre fariam se estivéssemos em sala de aula...

Sei que nos encontramos em uma situação inusitada e diferenciada, que estamos vivendo um momento jamais esperado, no mundo todo, mas mesmo sabendo tudo isso, não consigo deixar de me sentir impotente e incapaz no ato de professorar, pois não tem como exercer minha profissão sem o contato e a troca de informações necessárias com os alunos.

Alívio... em cada aula ministrada via celular tirando dúvidas e auxiliando aos poucos que me pedem ajuda, sentir-se útil e prestativa a cada pedido e contato... mesmo sendo somente alguns que me procuram, volto a me sentir professora... Pode parecer uma coisa sem muito valor, mas para quem estava acostumada a ser solicitada em sala de aula, disputando a atenção entre os alunos para compartilhar as explicações, essa é uma realidade muito cruel.

É gratificante o pouquinho que consigo explicar apenas para alguns... O que me comove é desejar que as pessoas consigam pensar no próximo... Que assim todos reflitam os ensinamentos de amar ao próximo e que no ano vindouro tudo possa melhorar com a vacina, que há de chegar para todos...

 

Sobre o Autor

Eu, sou a Audrey Moreira,  por gostar muito de livros, ler e de literatura me formei em Letras pela UNESP em português e italiano e sou professora de Língua Portuguesa na rede municipal de Ubarana, sempre escrevi... poemas, crônicas e pequenos textos reflexivos  em meus cadernos que nunca tive coragem de compartilhar... e acabei perdendo em minhas mudanças... hoje temos as redes sociais onde tudo é dividido... até mesmo nossos pensamentos mais íntimos.. Participo do Clube do Livro, neste ano com as lives tentando trazer mais conhecimento e ampliar a capacidade dos leitores de nossa comunidade para que possam conquistar seu futuro...

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

Que sensações - palavras têm habitado em ti nestes tempos de isolamento social?
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