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Cuidar de Quem Cuida: Doulas Pretas, Doulas de Adoção e Doulas Pós-parto

Foto: Jeff Dias
Foto: Jeff Dias

Por Ligea de Mateo, Paula Futada e Coletivo Doulas Pretas


Pensar em cuidado nos leva até o mito grego da Deusa Deméter, que rege a fertilidade, o amor maternal, a agricultura e a nutrição. Sua filha Perséfone é a Deusa da Primavera, das ervas e do mundo dos mortos. Perséfone foi seduzida por Hades, o Deus do submundo, e ficou aprisionada no “inferno” até que sua mãe Deméter conseguisse um acordo com Zeus, o Deus dos Deuses, que a liberou para ficar com a mãe, na primavera, verão e outono, período de terra farta e abundante.

Contudo, no inverno, a filha precisa retornar ao submundo, momento em que a terra fica seca e escassa, simbolizando a dor da mãe e da perda em geral, seja da mãe que perde um filho, ou da pessoa que deposita todo o seu amor em um único projeto, relacionamento, trabalho ou sonho, que acaba por não vingar, ou mesmo que floresça, demanda uma entrega enorme.

Nesse cenário a pessoa se esvai, seca, fica estéril e assim como a terra não nutre a si e a mais ninguém, sua força motriz é exaurida pela negação de si mesma. O arquétipo da Deméter nos faz refletir sobre a “cilada da cuidadora”, isto é, a falsa sensação de possuir recursos internos inesgotáveis, se dedicando exaustivamente a cuidar do outro, como na relação “mãe-bebê”, nas relações de trabalho, projetos, relacionamentos e sonhos pessoais, que demandam longas jornadas e extenuante doação, como é a relação de doulagem.

O gestar, o parir e o cuidar atravessaram a nossa história como eventos eminentemente femininos, permeando o imaginário de diversos povos com narrativas ligadas à fertilidade, aos cuidados e aos ciclos da vida. Entre alguns povos do Antigo Egito ter filhos é sinal de prosperidade e os momentos da gestação, parto e cuidados com as crianças são considerados sagrados, devendo ser respeitados e vividos em comunidade.

Para os povos yorubás, parir é um momento tão sagrado que existe um termo específico que o define: Ikunle Abyiamo (ajoelhar-se, acocorar-se para parir). Da mesma forma, para esses povos o cuidado com o processo de gestar vai além do parto e do nascimento. É necessário, igualmente, cuidar das mulheres, pois assim cuida-se também da divindade do poder feminino e do progresso da comunidade. Por essa razão, historicamente as mulheres dão à luz na companhia de outras mulheres da comunidade, parteiras, comadres e doulas, responsáveis pelo cuidado nesse importante rito de passagem.

Para além do aspecto simbólico, a doulagem pode ser pensada também no contexto do empoderamento feminino para o ciclo gravídico puerperal e as doulas se inserem num processo de importantes mudanças na cena do parto no Brasil. Pensar no “ser mulher” pluraliza o trabalho da doula, extrapolando a esfera da cis normatividade e compreendendo o contexto biopsicossocial, atuando assertivamente junto às maternidades invisibilizadas de mulheres trans, maternidades solo, mulheres em situação de cárcere, mulheres campesinas, mulheres que vivem nas ruas, mães e famílias de adoção, entre tantas outras.

Do ponto de vista profissional, as doulas são reconhecidas pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), com entrada em muitas maternidades públicas e privadas, onde sua função é colaborar para que a mulher se fortaleça na gestação, no parto, na adoção e assim constitua uma maternidade positiva.

O arquétipo de Deméter nos convoca a pausar e olhar para as nossas necessidades pessoais, identificar quando estamos exaustas, amargas, apáticas, furiosas, acolher nossas dores e identificar formas de cuidar de nós mesmas, nos nutrindo ou ainda permitindo que a(o) outra (o) nos nutra, nos reservando períodos de descanso para que a energia vital seja restabelecida.

Em tempos pandêmicos agravam-se ainda mais as sobrecargas mental e física das pessoas, com acentuada relevância das mulheres, num isolamento necessário e urgente no qual as redes de apoio ficam escassas, mas ainda assim, filhos e mães continuam a nascer e a doulagem se torna imprescindível, como um ofício significativo que vem ao encontro da frase: “se quer mudar o mundo, inicie mudando a forma de parir”.

O significado de parir neste texto vai além do parto biológico, fala-se do “tornar-se mãe”, quando as doulas são convocadas a maternar a primeira infância, cuidando primeiramente da mulher-mãe que acaba de nascer, seja do ponto de vista biológico ou adotivo.

O que propomos aqui é uma reflexão do ponto de vista do autocuidado e das redes de apoio, ou seja, quais são as formas de cuidado de si para a reposição de toda a doação de energia vital que o doular exige. Assim, propusemos aqui uma troca de experiências, conversando com as doulas Ligea de Mateo, Paula Futada e Coletivo Doulas Pretas sobre suas respectivas práticas e autocuidados em diferentes contextos de suas atuações.

 

Quem materna a Doula?

Ligea de Mateo: Além de algumas práticas de autocuidado, posso contar com uma rede de apoio de familiares, como meu companheiro, minha sogra, mãe e tia que me socorrem nos momentos em que as coisas estão difíceis, muito corridas ou quando necessito ficar sozinha por um tempo, já que tenho três filhos. Voltei para a análise recentemente e tem sido um bálsamo nesses tempos pandêmicos. Sou doulada por algumas mestras espirituais que me cuidam energeticamente e também por mulheres especiais que me doulam esteticamente, cuidando dos meus cabelos, unhas e sobrancelhas.

Paula Futada: Nossa sociedade ainda carece muito da cultura da maternagem. A doula, assim como as outras mulheres, luta pela existência abrindo fendas e criando movimentos de levante numa estrutura machista e patriarcal, que procura manter as mulheres submissas e solitárias. A doula aprende a se auto-maternar. Mas, aos poucos, as mãos vão se encontrando e a roda vai crescendo... A ciranda de mulheres, doulas ou não, vai girar e maternar o futuro. É o que estamos fazendo aqui.

Coletivo Doulas Pretas: Antes de ser profissional, a doula é uma mulher com suas subjetividades, contexto social, afetivo, político, que escolheu como atividade laborativa a doulagem, o cuidar de outras mulheres e famílias. Profissões eminentemente femininas tendem a ser desvalorizadas monetariamente, pois no imaginário social a mulher nasceu para ser mãe e possui amor inato. A doula é a função do cuidado, mas cuidar da outra requer estar bem, amparada, acolhida. Sim, é necessário estar bem para estar com a outra. Nesse processo de tantas nuances, quem cuida da mulher doula? A potência das redes de apoio, dos coletivos, da irmandade entre mulheres é fundamental para o estar no mundo, não apenas em presença, mas estar presente de forma holística.


Em tempos pandêmicos, seu “quintal” pode se tornar, ou se manteve um espaço de segurança? Uma rede de apoio que permitiu algum descanso ou alívio de tensão?

Ligea de Mateo: Nos quatro primeiros meses de isolamento, de março a julho de 2020, minha rede de apoio se restringiu ao meu companheiro e filho mais velho, que voltou a morar conosco nesse período para que pudéssemos nos cuidar melhor, mas a sogra, mãe e tia, acabaram ficando totalmente isoladas e ficamos pelo menos quatro meses sem contato algum. Tempos sombrios, de muitas incertezas, como todo o contexto pandêmico. Somente quando compreendemos que “não iria passar”, que o isolamento não seria provisório, foi que pudemos criar novas formas de nos relacionar e de implantar novas possibilidades de autocuidado.

Paula Futada: Tenho a grande sorte de ter um quintal cheio de pessoas que amo e que me mantém fortalecida e muito bem acompanhada: pertenço a uma família que funciona como coletivo no qual cada integrante apoia e sustenta o outro. Amigos de longa data também foram fundamentais para preencher os momentos de solidão. Mas o herói do quintal é mesmo meu filho-leão que nele habita. Sua força, alegria e vivacidade transformam qualquer dia cinzento em paraíso solar. Devo a ele a leveza de cada minuto de minha vida.

Coletivo Doulas Pretas: A rede de apoio é algo fundamental para a doula. Ter com quem contar para desabafos, suporte em momentos desafiadores tanto no parto quanto nos desafios cotidianos e até no pós-parto. Quando o parto não acontece da forma esperada, principalmente, é algo que afeta tanto a gestante e sua família, quanto a doula. Neste sentido, contar com doulas mais experientes, que vivenciam ou vivenciaram os mesmos desafios, é algo fundamental. O coletivo é um suporte importante para todas nós. Nos proporcionando segurança, conforto e em muitos momentos conselhos e orientações.


Quais práticas de autocuidado preservam sua potência fértil?

Ligea de Mateo: Não tenho muita constância em minhas práticas, mas são várias, amo curtir o meu ciclo menstrual, sacar as fases e a influência dos hormônios em minha vida. Procuro fazer jejum intermitente, tomar limão assim que acordo, sempre misturando com algumas especiarias como, por exemplo, açafrão da terra, canela, gengibre ou ginseng. Consultar meus oráculos, rezar, meditar, conversar com a Deusa, Deus, Universo, Santos e Orixás alimenta minha alma. Quase sempre tomo um litro de chá com alguma erva que sinto vontade ou que percebo que o meu corpo pede. Preparo meus florais, às vezes esfolio minha pele com açúcar e mel e passo algum óleo vegetal no corpo. Tenho ouvido muita música, quase que o tempo todo, ando pela casa com minha caixinha de som portátil e isso me ajuda com as tarefas cotidianas que eu acho chatas e/ou cansativas. Por diversas vezes, não faço nada disso, ou faço bem menos do que gostaria, ou faço o oposto, não me cuido, não me olho e sigo amortecida pelos os afazeres, quando saio deste “transe”, tento me maternar dizendo, “tudo bem, também, da próxima vez, você fará melhor”.

Paula Futada: Alimentar práticas de respiração, meditação, boa alimentação e boa leitura são essenciais para manter a energia vital. Manter os pensamentos no lugar e o humor em alta também são ferramentas de cura e revitalização e, para isso, a música é sempre uma poderosa aliada. Além disso, estar em contato direto com a natureza, mãos na terra e pés no mar, comendo fruta do pé e olhando o céu e o horizonte, ajudam a lembrar do nosso exato – e minúsculo – tamanho perante a grandeza da existência. E isso é extremamente reconfortante.

Coletivo Doulas Pretas: O autocuidado é muito importante para qualquer ser humano. Autocuidado e autoconhecimento. Quando falamos de parto isso se expande, porque nos colocamos no lugar de cuidadoras e isso exige de nós saúde física, mental e espiritual. É sempre bom ter por perto pessoas para conversar, se alimentar bem, chegar em casa depois de um parto e ter um banho de folhas, um escalda pés e elementos que nos auxiliem no processo de descanso. Na verdade, isso é fundamental tanto antes do parto, quanto durante e depois, no processo de acompanhamento do pós-parto, para manter o equilíbrio.
 

CONHEÇA AS DOULAS

Ligea de Mateo: Doula pós-parto, psicóloga formada em 2005 com especialização em Psicologia Social. Atuou com grupo de mães de crianças atendidas pelo grupo marista Cesomar da Vila Progresso, onde eram discutidas questões sobre maternidades periféricas. Atualmente trabalha como terapeuta integrativa com base em preceitos alquímicos e florais do Sistema Joel Aleixo e como doula pós-parto. É mediadora de grupo de mulheres em CAPS e escolas, e facilitadora de “chá de bênçãos”, ritual de “boa-hora” para mulheres prestes a parir. Instagram: @ligeademateo e @laborflorescer.
 


Foto: Junior Santos

 

Paula Futada: Educadora há mais de 20 anos, tem graduação em Pedagogia e Artes Cênicas e pós-graduação em Linguagens da Arte, com atuação em escolas privadas e ONGs de São Paulo. Foi a primeira Doula de Adoção a se formar no Brasil e hoje atua auxiliando e amparando famílias que estão passando ou já passaram pelo processo de adoção. Além da doulagem, presta orientação e consultoria em escolas e outras instituições da sociedade civil, focaliza cursos e palestras sobre adoção, parentalidade e diversidade. É irmã e mãe via adoção. Instagram: @paulafutada
 


Foto: Acervo pessoal

 

Coletivo Doulas Pretas: O Coletivo Doulas Pretas nasce como uma proposta pioneira a partir da iniciativa de mulheres pretas atuantes no cenário da assistência humanizada durante o ciclo gravídico puerperal e da consciência da necessidade de construir uma nova narrativa da gestação, parto e pós-parto para mulheres negras. O Coletivo Doulas Pretas é o Primeiro Coletivo de Doulas Pretas do país a jogar luz sobre essa questão. Nascido na cidade de Salvador, o coletivo é formado por Chenia d’Anunciação (@cheniadanunciacao); Laura Daltro (@netadefrancisca); Julia Morais (@carapinha) e Sueide Ferreira (@enfa.sueide). Instagram: @coletivodoulaspretas
 


Foto: Jeff Dias


Assista a todos as entrevistas:

 

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Este conteúdo faz parte da ação Cuidar de Quem Cuida, que trata das questões sobre o universo da primeira infância e suas cuidadoras e cuidadores de referência. Em sua terceira edição, que acontece de agosto de 2020 a abril de 2021, tem como tema Redes de Apoio e Cuidados. Para saber mais, acesse: sescsp.org.br/cuidardequemcuida.