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O imaginário que antecipa o real

A instalação “À deriva”, de Jaime Prades, no Sesc Pompeia, em fevereiro de 2020. Foto de Lúcio Érico
A instalação “À deriva”, de Jaime Prades, no Sesc Pompeia, em fevereiro de 2020. Foto de Lúcio Érico

Texto: Kadija de Paula e Caco de Paula

A instalação “À deriva”, de Jaime Prades,
antevê a crise de responsabilidades e alerta
para os riscos do abraço coletivo ao irracional

Se olharmos para o noticiário desde o início de 2021, uma imagem que sintetiza bem a sensação presente é a de estarmos, de alguma ou de muitas formas, à deriva. Um ano atrás, o artista plástico Jaime Prades expôs no deck do Sesc Pompeia um barco encalhado em 6 mil garrafas plásticas. A instalação “À deriva”, aberta ao público no dia 3 de março, ficaria em exposição até o dia 29 do mesmo mês; mas foi interrompida precocemente no dia 17, com o fechamento da unidade, assim como milhões de outros espaços, em todo o planeta, com o rápido avanço da pandemia de Covid-19.


“À deriva” chama a atenção para o excesso de embalagens plásticas e a poluição dos oceanos e rios. Trata-se de uma nova versão de uma instalação realizada pela primeira vez em 2014, como parte do projeto Natureza Humana, que Prades desenvolve desde 2009. Desta vez “À deriva” também se conecta ao programa educativo Lixo: menos é mais, do Sesc São Paulo, que integra experiências e reflexões voltadas à educação para a sustentabilidade.


À primeira vista, ou em uma camada inicial de interpretação, a instalação pode ser lida como uma representação literal do desastre ambiental em que a sociedade de consumo se vê encalhada em seu próprio resíduo. Em uma leitura mais ampla, o barco pode assumir a simbologia do corpo, da travessia pelo mar plástico, ou ainda um alerta para os perigos que corre uma sociedade ao abraçar a irracionalidade e a falta de rumo que sufocam a vida, negando-lhe oxigênio.

Jaime Prades na montagem da instalação “À deriva”, no Sesc Pompeia. Fotos: Neta Novaes


Nesse sentido, “À deriva” antecipa a atual crise de responsabilidades como uma arqueologia do futuro. “Todos os espaços de convivência são tomados pelo lixo. Temos dificuldade de entender a responsabilidade coletiva, e a questão do lixo e dos resíduos traz à tona uma espécie de patologia comunitária”, diz. “O lixo é um dos sintomas dessa patologia de ociedades desagregadas. Não há empatia pelo outro, e isso se reflete na forma como lidamos com o lixo, não só no Brasil, mas em todo o mundo. É preciso cuidar do que é inviabilizado”, observa. Muitos dos materiais usados por Prades, como no caso da série “Não Árvores”, foram retirados de caçambas que seriam despejadas em lixões ou em aterros sanitários. “A essência da vida pode ser encontrada em um material que está indo para uma caçamba”, lembra.

Nascido na Espanha em 1958, Jaime Prades vive e trabalha desde 1975 em São Paulo, onde atualmente é representado pela galeria Andrea Rehder. “O grande poder da arte é o de abrir o portal para que você possa ver outras coisas”, diz Prades, autor de um trabalho cujo eixo está entre o público e o privado. Nos anos 80 integrou o coletivo Tupinãodá junto a José Carratu, Milton Sogabe e Eduardo Duar. Prades conta que o grupo que é hoje referência histórica de ações artísticas em espaços públicos fazia “pequenas transgressões” e “pequenas faltas de educação” na tentativa de entender o espaço urbano como espaço de arte, para criar um senso comum de que o espaço público também tem valor.

“Árvore 1” da série “Não Árvores” de Prades: madeira descartada. Fotos: Neta Novaes


Em uma entrevista sobre sua experiência com o coletivo, Prades conta: “A gente estava em pleno processo de transição da ditadura para a democracia. E eu tenho pra mim que, quando começou a abrir a panela de pressão, espirrou tinta. A gente já estava na rua, tentando fazer essas intervenções enormes, e trabalhávamos à luz do dia; nosso objetivo era conquistar esse espaço. A situação política ainda era muito tensa. Era um ato perigoso ir para a rua. Hoje também é, não é? A rua é sempre perigosa, mas naquele momento era veladamente perigoso. E o mais provocante é que o nosso discurso era completamente lúdico em termos de imaginário. Mas ir lá fazer aquilo, se expor, isso sim é que era político”.