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Lenine: músico, escritor e ativista

Foto: Flora Pimentel
Foto: Flora Pimentel

Entrevista: Luciana Vicária

Uma conversa com o cantor e compositor sobre a lixeira da cozinha, a sobrecarga do planeta, esperança, netos — e a necessidade de um despertar coletivo.

de natureza privilegiada, Lenine guarda mais que um belo cordel de memórias: a busca por caranguejos nos mangues do Recife e as intermináveis tardes de banho de mar na praia da Boa Viagem ajudaram a construir uma consciência ambiental que reverbera, cada vez mais forte, em todas as suas produções artísticas. Cantor reconhecido e compositor de mais de 500 canções, arranjador e multi-instrumentista; além de letrista, ator, escritor e produtor musical, Oswaldo Lenine Macedo Pimentel, ou simplesmente Lenine, se tornou, ao longo de sua trajetória, um porta-voz do nosso compromisso com a proteção ambiental.

Na entrevista a seguir, a qual concedeu por telefone de sua casa, no bairro da Urca, no Rio, Lenine se indignou com as embalagens de eletrodomésticos, contou como reaproveita seus próprios resíduos e foi enfático em apontar onde começa o único futuro possível: no despertar coletivo.

As letras das suas canções falam muito sobre a responsabilidade ambiental com o planeta. Como você encara a forma como lidamos com os resíduos?

A matéria das minhas canções é feita do que me incomoda ou me comove. Acredito, sobretudo, que as canções são como fotografias, sob o ponto de vista de quem compõe, e nesse sentido o meio ambiente sempre foi uma área de interesse. A forma como lidamos com o nosso resíduo diz muito sobre quem somos e os valores que realmente importam para nós.

Então a destinação dos resíduos é uma questão de ética?

Sim, no nosso caso, de falta de ética, uma vez que o lixo nunca fez parte da nossa equação de consumo. A lixeira da nossa casa, por exemplo, é o lugar onde a gente esconde aquilo que não serve, que embalou algo nobre e perdeu a sua utilidade. Como se, ao botar no saco preto, aquela enorme quantidade de resíduos simplesmente desaparecesse, como em um passe de mágica.

Vivemos uma tendência de alta na produção de resíduos no Brasil: cerca de 80 milhões de toneladas no ano passado, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública, devendo chegar a 100 milhões em 2030.
Exato, a gente não pensa em quanto de planeta usamos para produzir os milhões de caixas e de embalagens plásticas que, além de consumir os nossos recursos, são enterradas no solo, descartadas em rios e oceanos. Lidamos de forma natural com um descarte volumoso de embalagens, como se fosse algo absolutamente natural. Essa equação perversa tem levado a um futuro insustentável.

Pode dar um exemplo prático da sua rotina?

Claro. Recentemente comprei um vaporizador. Fui abrir a caixa e contei 13 sacos plásticos. Primeiro, a caixa de papelão; depois, vários pedaços de isopor envolvendo as peças. Sem contar o invólucro plástico em cada uma delas. Para quê? O que fazer com aquilo tudo? Me dá uma tristeza instantânea e uma preocupação do que fazer com aquilo tudo. Até esqueço, por ora, do meu vaporizador.

E o que você faz?

O isopor eu resolvo com a minha paixão botânica, que começou com as orquídeas. Uso todos, sem exceção. Transformo as garrafas PET em pequenos recipientes vazados com um ferro de soldador. Elas também recebem mudas no meu jardim. Até da lâmpada eu retiro algumas partes e faço cultivo de coisas ali. Travesseiro velho vai para a compostagem, assim como os restos de alimentos. Mas a sacola plástica… Ah, a sacola. É uma luta.

 

"Meu pai me ensinou a pensar não no que vou deixar para os meus filhos, mas no que estou deixando para o planeta. Sempre me pergunto o que faço, por que faço e a quem faço. Sigo a vida respondendo a essas três perguntas"

 

Além de incluir o tema ambiental em sua arte, Lenine preza pelo contato com a natureza e pelo respeito à ciência: “Estamos vivendo em um ambiente de desestruturação e de quebra de todas as certezas científicas, quase um período de barbárie medieval”. Foto: Flora Pimentel

 

Que situações do dia a dia mais incomodam você?

Comprar carne no supermercado. Ela vem dentro de um saco, que vem dentro de outro saco. O que é isso, pessoal? É um vício de linguagem? É um modo de “viver”? Se a gente não educar a população e ensinar que existe uma necessidade urgente de mudar a atitude diante dos resíduos, não temos como esperar um futuro promissor; caminhamos para o fim.

E como fazer isso?

A gente já fez isso com sucesso com a vedete do canudinho. Lembra da imagem marcante da tartaruga morta com o canudo? Então, aquilo causou um incômodo tão grande nas pessoas que rapidamente a gente mudou de atitude, não foi? Surgiram os canudinhos de materiais biodegradáveis e outro universo de coisas para substituí-lo. Precisamos ter a mesma atitude diante dos outros resíduos também.

Mas como convencer as pessoas?

A mudança tem de vir das indústrias em um primeiro momento. Muitas já o fazem, mas boa parte ainda atua de forma leviana. Há um aspecto muito interessante que é o da responsabilização pelos resíduos. Significa que cada um que produz alguma coisa vai ter de cuidar de seu resíduo, independentemente de já existir uma indústria de reciclagem, como a do alumínio e do plástico.

 

"Precisamos evoluir e ainda estamos em um processo de involução. É urgente a consciência de que vivemos em um único planeta, como se fôssemos um grande útero encerrado em si"

 

Falta educação também?

Sim. A gente não sabe o que fazer com um eletrônico quebrado. Tem gente que joga no lixo comum, que deveria receber apenas orgânicos. As pessoas desconhecem que boa parte dele poderia ser reutilizada. Precisamos saber que existe um ponto de não retorno — e que já exigimos mais do planeta do que ele é capaz de nos oferecer.

Como essa situação chega até você?

É muito difícil ter contato com tudo isso sem ficar chocado. Estamos vivendo em um ambiente de desestruturação e de quebra de todas as certezas científicas, quase um período de barbárie medieval. O grau de banalização a que chegaram as coisas é muito surreal. Costumo dizer que a gente está vivendo o desespero da não confiança — e acho que a gente precisa muito confiar. Não existe outra saída. Precisamos confiar no ser humano, na ciência e em todas as nossas conquistas.

Você se tornou avô e imagino que deva refletir sobre o futuro dos seus netos.

Com certeza, o tempo todo. Meu pai me ensinou a pensar não no que vou deixar para os meus filhos, mas no que estou deixando para o planeta. Sempre me pergunto o que faço, por que faço e a quem faço. Sigo a vida respondendo a essas três perguntas. Tento passar essa forma de ver o mundo aos meus filhos e netos, como meu pai me ensinou.

Será que a gente desperta a tempo?

Estamos todos flutuando ao sabor do inevitável. Vivemos uma negação de coisas práticas e objetivas. Tenho fé em que a gente vai tomar um choque de realidade. Só assim para inverter a rota. Precisamos evoluir e ainda estamos em um processo de involução. É urgente a consciência de que vivemos em um único planeta, como se fôssemos um grande útero encerrado em si.


Essa ideia de limites de países, de lixo meu e lixo seu, temos de rever. Enquanto não entendermos que só a atitude de cada um pode garantir um futuro compatível com a nossa permanência, não temos como pensar em um amanhã de esperança.