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O último tsunami

Fabiana Fersasi e Silvio Tendler / Reprodução
Fabiana Fersasi e Silvio Tendler / Reprodução

O DESEJO DE APRENDER E DE COMPARTILHAR MOVE A CRIAÇÃO

DE DOCUMENTÁRIOS DESTE CINEASTA E CONTADOR DE HISTÓRIAS

 

Na hora certa e com a câmera na mão, lá está Silvio Tendler. Conhecido como o “cineasta dos sonhos interrompidos”, Tendler se dedicou a personagens que saíram de cena antes do gran finale. Documentários nos quais ele descortina a vida de nomes cuja história oficial reservava apenas uma versão. Em longas, curtas e média-metragens, contou a história de políticos, poetas, pesquisadores, músicos, médicos... Personagens históricos como os presidentes Juscelino Kubitscheck (Os Anos de JK – Uma Trajetória Política, 1980) e João Goulart (Jango, 1984), o poeta Castro Alves (Castro Alves – Retrato Falado do Poeta, 1996) e o cineasta Glauber Rocha (Glauber – O Filme, Labirinto do Brasil, 2003). De sua experiência e vivência em diferentes países, foi no Chile onde começou os estudos da sétima arte, na década de 1970, e em Paris onde se graduou em História e concluiu um mestrado em Cinema. Mas é no Brasil que ele testemunha e registra a história em movimento. Restrições impostas pela pandemia não interromperam o trabalho do cineasta, que segue com produções e entrevistas pelo ambiente virtual. Além disso, o interesse por disseminar suas criações gratuitamente salta da plataforma de vídeos YouTube (onde a produtora de Tendler, A Caliban, disponibiliza parte da filmografia do diretor) até o WhatsApp, para o qual quer compilar uma série de vídeos curtos acerca do cenário atual, intitulada O Último Tsunami. Com a incansável dedicação ao cinema, Tendler está sempre um passo à frente. Nesta Entrevista concedida por videoconferência, o cineasta compartilha bastidores das filmagens, fala da sede de conhecimento, das facilidades que a tecnologia trouxe para jovens cineastas e do protagonismo do documentário.

 

Quando lançou seus primeiros documentários, nos anos 1970, esse gênero não era tão popular. No entanto, seus documentários tinham grandes plateias. Por quais razões?

O documentário no Brasil era um gênero menor, considerado um trampolim para a ficção. Então, as pessoas faziam um primeiro curta-metragem, achavam que dominavam a linguagem do cinema e iam fazer o que se julgava “cinema de verdade”, ou seja, ficção. Eram poucos os documentaristas que, de fato, faziam documentários pelo prazer de fazê-los.

Eles existiam, mas eram de uma temática mais sociológica, algo mais antropológico. Eles não tinham essa preocupação com o grande público. Existem documentários anteriores aos meus que foram seminais para a minha formação. Além disso, eu morei na França no início dos anos 1970 [em Paris, cursou especialização em Cinema Documental aplicado às Ciências Sociais, no Musée Guimet, concluída em 1973], e o documentário estava em alta. Um cinema que fez muito a minha cabeça. No Brasil, você já tinha bons documentaristas no final dos anos 1960. Por exemplo, o círculo do Thomaz Farkas, que fez o Brasil Verdade, tinha filmes do Sergio Muniz, de Roberto Santos, de Vladimir Carvalho. Havia um cinema documentário bom, mas ele não era feito para as salas de cinema, para o grande público.

 

Como foi o processo de realização de Os Anos JK – Uma Trajetória Política?

Esse filme partiu de um acordo com o produtor. Eu havia voltado ao Brasil em 1976 [de Paris, na França, onde morou de 1972 a 1976], e o Hélio Paulo Ferraz tinha uma produtora de cinema, a Terra Filmes, que ele administrava. Eu me dava com ele e com os irmãos, o Antônio e o Buza Ferraz. Eles meio que me adotaram. O Hélio me falou: “Eu banco seu documentário, mas não faço filme para perder dinheiro. Quero que ele tenha uma pegada comercial”. Aí, comecei a discutir o que poderia ser esse filme e chegamos à conclusão no final de 1976. Em agosto [de 1976], tinha morrido JK, 16 anos depois de ter deixado de ser presidente da República, ele ainda estava no coração do povo. Quando teve o velório dele no Rio de Janeiro, e o cortejo foi até o aeroporto Santos Dumont, onde o corpo embarcou para Brasília, uma multidão foi atrás. Na pista do aeroporto estava Carlos Lacerda, prestando a última homenagem. JK chegou em Brasília, o povo o tirou do caminhão do Corpo de Bombeiros e levou nas costas. Ele foi para a Catedral e de lá para o cemitério, carregado pelo povo.  O Magalhães Pinto, que era o presidente do Senado, não perguntou ao Geisel se poderia ou não, e botou a bandeira a meio-pau. O pessoal não quis saber se o governo ia deixar ou não, e foi prestar homenagem ao JK. Foi aí que nós chegamos a um acordo, Hélio, um industrial, e eu, com minhas veleidades esquerdistas, que seria JK o personagem. Se a gente contasse a história do JK, a gente contaria as histórias sociais e políticas do Brasil. Ele entrou para a história como único presidente que entrou na data marcada e saiu na data marcada. Naquele momento, eu fiz uma conta: “Se 10% dos leitores da Veja, da Isto É, da Folha de S.Paulo, do Estadão, do Globo e do JB assistirem a esse filme, eu tenho 300 mil espectadores, e ele é sucesso de bilheteira. O filme foi lançado em 1980 e nós tivemos 800 mil espectadores”.

 

Em termos de narrativa, o filme tem ritmo de thriller. Você conseguiu colocar no documentário quase que uma novela, prendendo a atenção do espectador. É a esse fato que se deve o sucesso e repercussão de Os Anos JK…?

Acho que ele tem uma linguagem para cinema que aprendi com Joris Ivens, um dos maiores documentaristas do século, e também com Chris Marker, meus dois grandes mestres. Jorge sempre me dizia que o documentário tem que ter um personagem principal. Se você quer falar de democracia, você não faz uma tese a respeito. Você fala de um democrata. Foi o que eu fiz com JK. A partir dele eu conto as lutas políticas brasileiras não como uma abstração coletiva, mas uma história conduzida por um personagem, e isso cria uma empatia com o espectador. Na época, as pessoas faziam filmes temáticos – a luta dos operários, a luta dos democratas –, mas eram filmes abstratos. Fui acusado de só falar das elites políticas, mas ao falar delas eu também falo do povo. Fiz isso com JK, com Jango e depois com Tancredo. Ao falar do personagem, estou falando dos movimentos sociais. Essa é uma pegada cinematográfica.  

 

O DOCUMENTÁRIO HOJE TEM

UM PROTAGONISMO INTERNACIONAL

 

Tanto JK quanto Jango foram lançados ainda sob a ditadura. Poderia falar dessa coragem de colocar dois protagonistas inimigos do regime da época na tela?

As reações começaram durante a feitura do filme. O Hélio, produtor, era um grande construtor de navios. Ele tinha o estaleiro de Mauá, era o administrador do estaleiro. É normal que num estaleiro você tenha um corpo de almirantes na diretoria, era a política da época. O Hélio começou a sofrer pressões para parar o filme. Até que um dia ele me chamou para uma conversa, eu e o Antonio Paulo Ferraz. A gente o convenceu que não dava para fazer um filme chapa branca e não podia parar o filme porque ia chamar muita atenção. Seria problemático. No final, o filme aconteceu e deu certo. Lançamos JK em 1980 e ele foi um fracasso absoluto de bilheteria no começo. Ele ia sair de cartaz com uma semana até que loucos explodiram uma bomba na sala do presidente da OAB do Rio de Janeiro e assassinaram a secretária dele. O Brasil ficou calado, perplexo e com medo do retrocesso. Aí o JB deu uma chamada no jornal falando para verem JK, que o filme era uma lição de democracia. O cinema lotou no final de semana e fez aquilo que chamamos de “renda média”, uma bilheteria que garante a sobrevivência de um filme em cartaz. Só que a bilheteria dobrou em quatro semanas. No cinema Caruso, tivemos mais público que Mulher Nota 10 (Blake Edwards, EUA, 1979), protagonizado por Bo Derek. Meus alunos começaram a me chamar de Silvio Derek (risos).

 

E a pressão sobre o filme Jango (1984), como foi?

Quando eu lancei JK, o diretor-geral da Embrafilme era o Celso Amorim, que era um diplomata. Ele assumiu a Embrafilme já no meio de uma crítica porque a imprensa que não gostava do cinema brasileiro começou a esculhambar a Embrafilme por produzir “pornô chique”, referindo-se aos filmes do (Arnaldo) Jabor. Aí o Celso Amorim pegou para distribuir Os Anos JK e ainda tinha Gaijin – Os Caminhos da Liberdade (1980), da Tizuka Yamasaki. Esses dois filmes viraram a vitrine da Embrafilme para falar que também passavam filmes políticos e de história. Quando já não era mais o Celso Amorim, mas o Roberto Parreiras, que era um militar liberal que me tratou superbem, ele me disse que o JK tudo bem, só que o Jango seria complicado. E me botou sentado no Jango. Nós montamos uma cooperativa. Os artistas e técnicos que trabalharam não cobraram nada. Fizemos o filme pelo nosso trabalho, tivemos uma cota do filme, a filha do Jango botou dinheiro, o Hélio botou e um amigo oculto do Jango também. Com esse dinheiro fizemos o filme e ele ficou pronto em 1984. Deveria ir ao Festival de Gramado. Só que, para colocar um filme no festival, você faz uma censura pro forma, aprova para ir ao festival e daí se faz a censura com faixa etária e tal. O filme passou por dois censores que no meio da projeção falaram que o filme não tinha condições de ser aprovado: “Esse filme, só Brasília”. Aí nós paramos, fiquei sem saber o que fazer, tinha um assistente que estava na sessão com os censores e, em vez de brigar, ofereceu uma carona para a censora que morava na Tijuca. Ela lhe falou: “Ou vocês botam a boca no trombone ou nunca vão liberar esse filme”. Aí, nós convidamos a imprensa para uma sessão e correu o boato de que o filme ia ser censurado. A sala de cinema encheu com todos os capas-pretas do jornalismo, todo mundo lá, dos jornais e da tevê, assistiu ao filme na sala trancada para a censura não invadir. O filme foi liberado antes de chegar a Brasília. Ele foi lançado por conta do bochicho e da repercussão, mesmo sem cartaz e sem trailer. Ele enchia as salas, e os exibidores me ligavam pedindo cópias. Eu fiz 17 cópias desse filme. O JK, que teve 800 mil espectadores, foi lançado com seis cópias. O público do Jango foi de um milhão e foi considerado o filme das Diretas Já.

 

Seus filmes mostram personagens cujas trajetórias foram interrompidas. O que une esses personagens além dessa questão?

Eu nunca tinha conseguido dar uma explicação para o meu trabalho. Aí, o embaixador Arnaldo Carrilho, que era um apaixonado por cinema e amicíssimo do Glauber (Rocha) – tanto que o diário lisérgico do Glauber quem herdou foi ele, e na contracapa do diário o Glauber escreveu que o diário só poderia ser publicado pelo cônsul Arnaldo Carrilho –, virou um grande amigo meu. Ele viu o que tem a ver JK, Jango, Tancredo, Marighella, Milton Santos, Castro Alves, Josué Castro, João Cândido, Glauber Rocha. Ele sacou que todos tinham em comum o sonho interrompido. Nenhuma dessas pessoas morreu de velhinho com uma obra consagrada. O Milton Santos estava no auge da carreira dele, teve um câncer fulminante e preferiu parar o tratamento a continuar sofrendo; o Glauber morreu com 42 anos; o  Marighella morreu jovem também; o Josué de Castro morreu no exílio; o JK não voltou à presidência como sonhava em 1965; e o Jango foi deposto jovem e foi o único presidente brasileiro a morrer no exílio; o Tancredo passa 20 anos de ditadura na oposição e, quando consegue fazer a composição para fazer a transição política, morre de uma doença mal tratada. O Carrilho teve essa sacada e ele tem razão: todos os meus personagens tiveram sonhos interrompidos.

 

E como está sua produção nessa pandemia? Quais os desafios?

Acho que a última coisa que a gente pode fazer é parar de lutar. Quando veio essa pandemia, eu estava fazendo vários trabalhos. Consegui alguns projetos para a televisão e ainda tinha projetos em andamento. Eu fiz minha comemoração de 70 anos no dia 12 de março. Uma grande festa no MAM [Museu de Arte Moderna], onde lancei um filme autobiográfico: Nas Asas da PanAm (2020), e depois tudo fechou. Ninguém mais saiu de casa. Minha produtora continua trabalhando home office, tocando as entrevistas por videoconferência. Me falaram que cairia a qualidade das entrevistas porque antes estávamos gravando em estúdio. Mas o filme é fruto da ética e da tecnologia existente. A técnica é fruto disso. Então, não tem como filmar presencialmente, vamos filmar por videoconferência. Vai cair a qualidade? Vai. E as pessoas vão entender porque aquela foi a qualidade possível. Estamos fazendo filmes importantes: um sobre o SUS (Sistema Único de Saúde), outro sobre o sindicalismo brasileiro, e outro, O Bolso ou a Vida, sobre se o futuro vai ser do ser humano e da natureza ou do cassino financeiro. Esses três filmes montam um quebra-cabeça chamado Brasil. Qual é o nosso futuro? Isso é no que estou trabalhando hoje.

 

TODOS OS MEUS PERSONAGENS

TIVERAM SONHOS INTERROMPIDOS

 

Você acha que haverá uma resistência do público aos novos formatos resultantes da restrição social e, portanto, de filmagens que poderiam ser feitas antes da pandemia?

As pessoas estão começando a entender que essa estética é possível e tem muita gente filmando por videoconferência. E a minha sacada agora é mais radical: é fazer o “cinezap”. O cinezap é recolher pelo WhatsApp todo o material que recebo das pessoas todos os dias: um dia uma música romântica, outro dia uma paródia (aliás nunca vi tanta paródia circulando), no outro, artistas se juntando para cantar juntos, como foi na homenagem ao aniversário do Gil. Vou juntar todo esse material, criar e colar em blocos de 10 minutos e fazer circular pelo WhatsApp. Não vou ganhar nada com isso; também não vou pagar nada. É um filme que derruba o capitalismo porque é a circulação daquilo que eu mando de graça e recebo de graça. O espectador vê na hora que quiser. Vai se chamar O Último Tsunami.

 

 

Fabiana Fersasi

 

 

Os documentários de hoje têm um grande público. O que explica essa escolha? Os espectadores estão se cansando da ficção?

Fiz a curadoria do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. E essa curadoria saiu a toque de caixa porque o festival tinha sido cancelado. Aí o secretário de Cultura e Economia Criativa, Bartolomeu Rodrigues, falou que não dava para cancelar o festival mais antigo do país, que só foi cancelado durante a ditadura. Ele me chamou para fazer a curadoria e em um mês a gente botou o festival de pé. Tínhamos medo de não ter filmes para apresentar: inscreveram-se 700 filmes e a enorme maioria de documentários. Tanto é que esse foi o primeiro festival na história do Brasil em que, dos seis filmes concorrendo, cinco são documentários e apenas um, ficção. Ou seja, inverte tudo o que você conhece de festival de cinema, de cinco ficções e um documentário, o patinho feio escalado para ganhar o prêmio especial do júri. Nesse festival, além dos cinco documentários, a ficção tinha um approach documental. Então, a partir desse festival de Brasília estamos fazendo essa reflexão de que há um protagonismo hoje do documentário no cinema. O filme brasileiro escalado para representar o país no Oscar é um documentário sobre o Babenco [Babenco – Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou, de Bárbara Paz, 2019]. O Chile e a Romênia fizeram o mesmo. Ou seja, não dá para dizer que esse é um fenômeno local. Essa é uma realidade do cinema hoje: o documentário hoje tem um protagonismo internacional. Acho que está ligado à curiosidade das pessoas, que estão um pouco cansadas do dramalhão. O cinema cabeça está no documentário, que é o que as pessoas querem ver. Ele não está muito mais na ficção. Mas essa é uma suposição.

 

HOJE BASTA TER UM CELULAR E

TALENTO QUE VOCÊ FAZ CINEMA

 

Acredita, então, que há uma espécie de cansaço da fórmula do cinema de ficção, de maneira geral?

Quando você se imaginou fazendo a assinatura de um canal de streaming para ver um documentário? É isso que está acontecendo. A política setorial do audiovisual, entre as coisas positivas que fizeram, foi financiar filmes independentes para canais de televisão, e aí, nos últimos anos, você tem uma produção de documentários incrível na televisão, que fazem um mapeamento do Brasil. Os que foram produzidos até aqui – porque acabou o financiamento – são primorosos. Houve produção de documentários para cidades com até 20 mil habitantes. Os cineastas tiveram que morar nessas cidades. O filme que ganhou o festival de Brasília, Por Onde Anda Makunaíma?, de Rodrigo Séllos, que é a história do Macunaíma, e o personagem é lá de Roraima, nasceu nesse programa de cidades de até 20 mil habitantes. O filme é maravilhoso, uma pesquisa genial. Acho que a arte não tem formulário padrão. Cada filme é uma realidade num momento histórico. Hoje estamos vivendo a era do documentário, amanhã viveremos uma coisa completamente diferente, e acho que o grande luxo da arte é essa capacidade que ela tem de se reinventar a cada momento. Você tem as transformações tecnológicas que geram as estéticas. Então, no começo, o cinema era necessariamente silencioso, quando pinta o som, você pode fazer silencioso ou sonoro, depois pinta a cor, e você pode fazer silencioso, sonoro, colorido ou preto-e-branco. Então, hoje temos uma profusão de tecnologias que nos permitem fazer o que quisermos, mas a gente vai mudando isso a cada momento. Você tem um momento da ficção científica, um momento do musical, um momento do melodrama. Aquela coisa do cinema também: para cada carcará você tem dez mangangás. E, pelas circunstâncias do mundo, o documentário hoje é um protagonista do cinema.

 

Talvez essa popularidade do documentário se deva também à facilidade de filmar com celulares, por exemplo?

Acho que a tecnologia transformou o documentário e a ficção. Ela facilitou a narração com elementos mais leves e mais baratos. Antigamente você tinha uma traquitana caríssima, pesadíssima e complicada chamada steadycam. Um negócio que fazia a câmera na mão, a linguagem do público. Hoje em dia, qual menino não tem acesso a um drone? Filme que não tem drone não é cinema (risos). Hoje tem o timelapse no teu celular, você inventa uma linguagem agora, além de outros recursos de edição. Eu trabalhei com moviolas de 50 mil dólares, câmeras de 400 mil dólares, mesas de edição de vídeos de 100 mil dólares. Hoje com um celular de dois mil reais, você faz cinema. Claro que isso facilita tanto a ficção quanto o documentário.

 

Ou seja, isso trouxe uma contribuição de temática e narrativa porque se democratiza a possibilidade de produção?

Sim. Acho que antigamente você precisava ser rico para filmar ou ter um amigo rico ou casar bem. Hoje basta ter um celular e talento que você faz cinema. A minha geração começou na base da vaquinha, nos juntávamos para comprar a lata de filme, que era cara, eu conhecia um cara com gravador, outro tinha uma Paillard Bolex [câmera cinematográfica] e assim foi feito João Cândido [filmagens de entrevistas com o Almirante Negro, João Cândido Felisberto (1889-1969), perdidas]. Hoje você faz tudo isso com o celular e tem os mecanismos que você pode acrescentar. Tem um amigo que tem o drone, outro tem uma ilha de edição legal, um tem um estúdio de som e aí você faz o que quiser. Não precisa da robustez que você precisava ter anos atrás. Mas tem que botar o talento como ingrediente.

 

EU FAÇO FILMES PARA APRENDER,

NÃO FAÇO FILMES PARA ENSINAR, EU QUERO CONHECER

 

Como foi filmar João Cândido e ter esse trabalho histórico perdido?

Conheci o João Cândido em 1968. Tinha lido naquela época o livro do Edmar Morel sobre o Almirante Negro e pensei: “Esse cara dá um filme”. Hélio Ferraz e seus irmãos, netos do historiador Hélio Silva, me falaram que o avô havia entrevistado o João Cândido para o Museu da Imagem e do Som (MIS) do Rio de Janeiro. Eu falei com o Ricardo Cravo Albin, que na época era o diretor do MIS, e pedi autorização para ouvir o material. Era 1968, ditadura, mas o Ricardo deixou. Era uma gravação de historiador, sem emoção. Hélio Silva perguntava: “É verdade que o senhor se chama João Cândido Felisberto”? E ele respondia: “Sim”. Pensei, daqui não sai filme. Conversei com o Ricardo e ele me disse que o filho do João Cândido, o Candinho, trabalhava com ele na Sunab [Superintendência Nacional de Abastecimento]. Procurei e o encontrei. Eles estavam ressabiados porque sofreram muito a vida inteira, mas, no final, o pai topou me receber. Tinham medo de fazer alguma coisa porque havia uma proposta de contrato que receberam em 1963. Medo de já terem esse compromisso, mas ninguém tinha assinado nada e o cara que propôs se mandou. Então eu falei: vamos fazer. Fiz uma baita entrevista de duas horas, filmei ele na sacada da casa dele. Ele todo dia saía de ônibus, ia comprar o jornal, trazia o Correio da Manhã, sentava-se na varanda e lia o jornal. Nós conversamos muito. Aí, deu ruim para o grupo da gente. Um amigo nosso sequestrou um avião para Cuba e eu estava na despedida desse amigo, não sabia dessa história, mas, até você explicar que papagaio não é periquito, tive que sumir. Daí, eu dei o filme para um amigo que não tinha implicação em política para guardar em casa. A mulher dele ficou com medo e queimou tudo. Perdemos os negativos do João Cândido. Eu tive um processo por causa desse sequestro, consegui sair e, no dia que saí da auditoria da aeronáutica, li uma notinha na Tribuna da Imprensa: Morreu o Almirante Negro. Me coube chorar e contar essa história. Guardei uma foto disso tudo. Só tenho uma foto do João Cândido. 

 

Quanto ao seu filme mais recente, Nas Asas da PanAm, que é autobiográfico, liga de que forma sua história com essa que foi uma importante transportadora aérea internacional de 1927 a 1991?

O link é uma agência de turismo. No auge de uma das muitas crises que a gente viveu nos anos Collor, eu entrei, um dia, numa agência de turismo e vi um cartaz dizendo: “Vá à União Soviética pela PanAm”. Era 1992 e a fotografia [do cartaz] era de uma igrejinha numa cidadezinha do interior da União Soviética. Na hora, eu associei o seguinte: a PanAm foi a nave que levou 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), do [Stanley] Kubrick, para o espaço, não foi a PanAir, foi a PanAm. Da União Soviética só sobrou a igrejinha, porque o regime que veio para durar mil anos e para implantar o socialismo no mundo não passou de 1991. Dali, naquele momento, sobramos eu e a igrejinha. PanAm e a União Soviética, passado. Nessa viagem embarcamos todos e só sobramos nós dois: eu e a igreja. Tenho outros filmes que fiz nesse período, mas que não tiveram tempo de circular por conta da pandemia. Nas Asas da PanAm teve uma sessão no dia 12 de março no MAM [Museu de Arte Moderna, neste caso, do Rio de Janeiro], depois na Mostra São Paulo. Outro filme de que gosto muito é Arqueologia do Poeta (2018), sobre o Ferreira Gullar (1930-2016). Eu documentei muito o Goulart e me dava muito com ele. Consegui entrar na casa dele depois que ele morreu, filmei seus livros, autógrafos e disso tudo faço uma arqueologia, resgato o Gullar militante. Tem Fernanda Montenegro lendo poesias dele também. É muito bom. Está esperando para ser lançado também um filme sobre o Chico Mário, irmão do Betinho e do Henfil, que era músico, pouco conhecido e com um trabalho maravilhoso, Música na Liberdade. E tenho vários trabalhos esperando a chance de acontecerem. Agora estou terminando Arte Urbana, e essa trilogia: O SUS – Saúde Tem Cura, O Futuro É Nosso e Do Bolso à Vida.

 

Outro personagem polêmico sobre o qual você fez um documentário foi Marighella. Qual sua visão sobre ele?

Nunca fui marighellista, mas eu queria conhecer o personagem. Um dia, estou em casa e me telefona a Clara Sharp: “Estou querendo fazer um filme sobre Marighella, falei com o Kotscho e ele me disse que o único que poderia fazer esse filme é você. Aceita?”. Eu faço filmes para aprender, não faço filmes para ensinar, eu quero conhecer. Esse filme foi a chance que eu tive de conhecer o Marighella, aprendi quem ele era. Aprendi um bon vivant, um poeta, aprendi outro cara de quem eu já não tinha medo. Passei a admirar o Marighella pelo filme que fiz por conta dos depoimentos das pessoas que conviveram com ele. Para mim foi um grande aprendizado.

 

Você colocou boa parte da sua obra no YouTube, ou seja, numa plataforma de vídeos onde se pode assistir gratuitamente. Por quê?

Coloquei porque já ganhei dinheiro com cinema e acho que o filme só existe pelo olhar do espectador. Comecei a entender que meus filmes eram muito mais vistos e tinham atualidade graças aos piratas, que reproduziam e vendiam meus filmes na porta do Frei Caneca, na porta dos cinemas, mais do que nas locadoras, que já estavam em extinção. E como quero continuar sendo visto e conhecido como cineasta, disponibilizei [os filmes] no YouTube. Lá, eles continuam tendo vida. Não ficam guardados aqui em casa. E não tem mais cinema para passar, estamos todos trancados na pandemia. Ou eu os coloco para viralizar ou vou ser mais um autor desconhecido. Então eu os disponibilizo na internet e funciona perfeitamente bem.

 

 

 

 

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