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Sobre leoas e filhotes: Rosa e Momo

Por André Venancio

 

Era novembro de 2020 quando, correndo os olhos pela verborragia oceânica do Twitter, parei e ative-me sobre uma reflexão acerca das pessoas com mais de 30 anos que ainda residem com seus pais.

Como é comum naquele e em outros espaços digitais, a discussão dividia os participantes em dois grandes grupos: se de um lado havia a reafirmação romântica de uma independência financeira como símbolo afirmativo de maturidade – em que jovens adultos migram para apartamentos-dormitório cada vez menores e dividem seus espaços e aluguéis com amizades passageiras, compartilhando uma existência vazia de afetos e distante de raízes –, do outro um grupo se propunha a discutir quais as consequências da independência dos filhos frente ao envelhecimento dos pais.

Como em uma inversão de papéis, no qual o cuidador passaria a ser o sujeito a ser cuidado, qual seria a contribuição do filho, independente e sozinho, para a qualidade de vida da mãe e do pai, que passam a vivenciar as velhices também sozinhos em um Brasil carente de políticas públicas para a população idosa?

O que o segundo grupo procurava evidenciar, nos poucos caracteres disponíveis naquela rede social, era: a jovem de 30 e poucos anos que divide um apartamento com a mãe e, com ela, mantém uma relação de amizade, parceria e apoio, é menos madura ou preparada que o jovem morador de uma quitinete no centro de São Paulo, que deixou o pai no interior do estado e, por conta da pandemia, não consegue vê-lo há um ano e nem oferecer, ou pedir, alguma assistência, seja ela financeira ou emocional?

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Também em novembro, pelas mãos e olhar de seu filho – o diretor Edoardo Ponti – a italiana Sophia Loren faz seu retorno às telas no longa-metragem Rosa e Momo (La vita davanti a sé), uma produção da Netflix e primeira incursão da veterana e premiada atriz de 86 anos para o streaming. Baseado no romance La vie devant soi, de Romain Gary, o drama acompanha a relação de madame Rosa (Loren) e Momo, uma criança de 12 anos, refugiada do Senegal e vivida pelo estreante e promissor Ibrahima Gueye, que é, também, o narrador da história.

Já tive a oportunidade de acompanhar muitos dramas cinematográficos que evidenciam a relação entre crianças e velhos. No entanto, os 74 anos que separam os protagonistas de Rosa e Momo são apenas coadjuvantes: o que nos guia nesta jornada é uma espécie de dança, em que a velha e o jovem revezam entre si os papéis de quem oferece cuidado e de quem precisa dele para sobreviver.

Se Sophia Loren impressiona ao evidenciar os traumas de Rosa por meios de olhares e gestos, sem para isso recorrer a uma só palavra, os olhares de Momo, embebidos pela fúria, parecem nos contar as mesmas dores. Aliás, é justamente no silêncio, insistente entre os protagonistas, que o diretor desvela a cumplicidade de dois corpos que, cada um com as suas bagagens e cicatrizes, se reconhecem e se protegem.

Se Momo é entregue à Rosa por um médico que se considera “velho demais” para cuidar do menino, é a força de uma figura feminina como Rosa que, mesmo velha, se equipara a uma leoa nos doces delírios do garoto, que se assemelham a sonhos confortáveis e seguros. “Ela lambe a minha cara e cuida de mim.”

Por outro lado, se Momo se mostra por vezes impulsivo e violento, é nele que Rosa encontra o conforto e a segurança de abrir suas memórias de infância, revelar seus medos e pedir ajuda. Momo é jovem, mas carrega a força em seus gestos. Ainda assim, não contém as lágrimas quando se percebe perdido no vazio das memórias desbotadas de Rosa. Rosa é velha, mas carrega a força em seu olhar cada vez mais vacilante. Nem por isso deixa de se aninhar no esconderijo de uma leoa quando a finitude da vida a acua.

Rosa e Momo é um filme sutil. Não há eventos grandiosos, gatilhos explícitos ou um clímax estarrecedor. O que há é a vida e só: um pequeno trecho no cotidiano de duas pessoas que, invisíveis em suas dores, se reconhecem em suas jornadas e decidem se unir e apoiar.

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Eu tenho 34 anos e moro com minha mãe. Ou é minha mãe que mora comigo? Nunca

penso nessa ordem ou no peso que cada termo ocupa nessa frase. Entre Rosas, Momos, leões e filhotes vejo que a dinâmica da vida não nos permite rótulos ou papéis definidos e lineares – que vão nos acompanhar do plano inicial à subida dos créditos. Talvez por isso, ao digerir a história de Rosa e Momo, me veio à mente a reflexão do Twitter que questionava a minha maturidade como filho e a de tantos outros filhotes, que por vezes são, também, leões e leoas.

Enquanto a Laura Pausini entoa a canção-tema do filme, Lo si – uma composição de Diane Warren, pronta para arrebatar lágrimas premiações afora –, concluo tranquilamente que o melhor abrigo é manter a condição, o privilégio e a liberdade de poder dizer, mas também de poder ouvir: “Quando você fica sem palavras, talvez te sirvam apenas duas: estou aqui” (quando tu finisce le parole, forse a te ne servono due sole: sto qui).