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Sociólogo e pesquisador Bernardo Sorj. Crédito: Arquivo pessoal
Sociólogo e pesquisador Bernardo Sorj. Crédito: Arquivo pessoal

SOCIÓLOGO E PESQUISADOR FALA SOBRE OS EFEITOS DA INTERNET NAS RELAÇÕES HUMANAS

E A NECESSIDADE DE PENSAMENTO CRÍTICO PARA AGIR NA ERA DIGITAL

 

Não vivemos duas vidas paralelas: uma no ambiente offline e outra no online. Nas últimas duas décadas, trabalhamos, estudamos, nos informamos, nos comunicamos e executamos tarefas nos dois ambientes. Com apenas um clique, temos acesso ao conhecimento, mas também a fake news. Como saber, então, discernir esses conteúdos? De que forma interagir com outras pessoas nas redes? E qual o papel dos educadores nesse cenário? No recém-lançado – e disponível gratuitamente – Corações e Mentes – Pensando de Forma Autônoma Fora e Dentro da Internet, o sociólogo e professor uruguaio Bernardo Sorj, radicado no Brasil há mais de 40 anos, levanta esses e outros questionamentos, mostrando a importância de não tratar o mundo virtual e as relações face a face como espaços estanques. Com texto e coordenação geral de Sorj e Alice Noujaim, além de atividades de Maura Marzocchi e Bruno Ferreira, o livro é orientado a professores como uma ferramenta para desenvolver habilidades que fortaleçam a autonomia e o pensamento crítico, fundamentos da convivência democrática. Diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática, que em parceria com o Instituto Palavra Aberta lança Corações e Mentes, Bernardo Sorj fala sobre os desafios da educação diante da atual cena de polarização e de manifestações de ódio e preconceito na internet.

 

O livro Corações e Mentes nasce de quais questões?

Já faz quase duas décadas que venho trabalhando sobre o tema do impacto da internet na vida social. Na época do referendo das armas [sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, que ocorreu no Brasil em 2005 e não aprovou o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, que tornava proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º do estatuto], fiz uma pesquisa para a ONG Viva Rio. Pensávamos que a proposta ia ser aprovada e foi derrotada. Descobrimos na nossa pesquisa que uma das razões para isso acontecer foi a campanha contra a proibição, muito bem-feita, via e-mails. Eles começavam assim: “Eu também sou como você. Não sou a favor das armas de fogo. Então, vamos pensar juntos (...)”. O argumento ia levando o leitor a ser contra a proibição. Descobrimos que esse e-mail circulava do Ceará até o Rio Grande do Sul e que muitos dos materiais (enviados) eram uma tradução para o português da National Rifle Association. Então, a campanha levava o leitor do e-mail a sentir, primeiro, que o autor era alguém como você, ele continha dúvidas; havia erros de ortografia feitos intencionalmente, e trazia uma longa lista de outros nomes de pessoas para quem havia sido enviado o e-mail. Então, dava a impressão de que era alguém “gente como a gente”. Aí, percebi que o novo mundo da internet, que muitos sociólogos achavam que seria o mundo da liberdade e da comunicação horizontal, era um sistema de comunicação diferente dos meios tradicionais, um espaço de participação de todos os cidadãos, mas que na realidade tinha um potencial enorme de manipulação. Inclusive com aspectos mais perigosos que os meios tradicionais. Porque, nos jornais ou na TV, você sabe quem é responsável pela matéria e conhece a linha editorial do veículo, inclusive você pode entrar na justiça se for caluniado. O novo sistema de comunicação online é muito mais sofisticado, leva a pensar que quem está se comunicando é alguém igual a você, mas não é. É um especialista em comunicação que manipula emoções, sentimentos e inseguranças, se escudando em figuras inexistentes, no anonimato.

 

O MUNDO ONLINE, QUE APARECE SÓ NA TELA,

TEM GRUPOS ECONÔMICOS, POLÍTICOS, OUTROS INTERESSES

QUE ESTÃO POR TRÁS E QUE VOCÊ NÃO ENXERGA

 

Já naquela época, havia observado esse tipo de ação na internet?

Sim. Todo um jogo de manipulação muito sofisticado. A partir daí, comecei a acompanhar essas transformações que a internet estava produzindo, até chegarmos às famosas fake news. Na verdade, já naquela época, esses e-mails eram fake. Mas as fake news viraram uma indústria e me senti obrigado a pensar qual a relação entre a internet e o espaço público. Posteriormente, analisando as manifestações de 2013, parecia que as pessoas estavam se organizando espontaneamente, enviando mensagens pelo WhatsApp, mas o WhatsApp tinha centrais. A conclusão a que cheguei na época é que o mundo online tem por trás uma estrutura offline que a gente nunca enxerga. Quando você lê um jornal, sabe onde está a sede daquele jornal, há uma estrutura humana e material explícita. O mundo online, que aparece só na tela, tem grupos econômicos, políticos, e outros interesses que estão por trás e que você não enxerga. Para enfrentar as fake news, partimos para produzir o livro Sobrevivendo nas Redes – Guia do Cidadão (Plataforma Democrática, 2018), que procura explicar o que são as fake news e reúne uma série de conselhos de como se proteger.

 

E quais seriam essas orientações?

O primeiro conselho é: quando se lê uma mensagem sem origem ou origem duvidosa, o autor não se identifica ou o texto se refere a um blog desconhecido e, sobretudo, se você concorda com ele, desconfie. Você não tem que desconfiar daquilo de que discorda, porque você não irá disseminar aquilo de que discorda. O problema do funcionamento do mundo virtual é a disseminação, a tal viralização, na qual somos os soldados de um estado maior que nos manipula. Então, primeiro, proteja-se daquilo com que você concorda. Porque as fake news são produzidas para mobilizar nossos preconceitos, nossos sentimentos e tudo aquilo que, a princípio, tendemos a achar que é verdadeiro, por causa dos nossos preconceitos. Hoje as redes têm capacidade de identificar diferentes grupos de pessoas pelos mais diversos critérios, o que permite orientar a mensagem para um determinado grupo com certas características e preconceitos previsíveis. Então, por exemplo, as redes de extrema direita, para promoverem o machismo, a cada três mensagens de ordem política, enviam seis imagens pornográficas. Isso reforça o machismo, a ideia de que mulher é um objeto. Apesar de o nosso livro (Sobrevivendo nas Redes) ter sido muito bem-aceito – tivemos mais de um milhão de visitas em nosso site –, assim como ocorre com a possibilidade dos cidadãos de contar com as agências de checagem de notícias, a sensação continuou sendo a de que estávamos enxugando gelo.

 

De que forma?

Primeiro, porque a maioria das pessoas não checa as notícias que confirmam seus preconceitos: elas acreditam e disseminam imediatamente, sem refletir. É uma minoria que se dá ao trabalho de checar as informações. Então, a conclusão foi: temos que dar um passo atrás. Temos que pensar na educação de base. É possível que a minha geração, em certa medida, esteja perdida, porque não teve educação para a internet. Então, decidimos entrar na área de educação escolar, trabalhar com uma perspectiva de longo prazo. Foi aí que fiz um levantamento bastante exaustivo, em várias línguas, do que é chamado de alfabetização digital ou educação midiática. Minha conclusão foi que esses trabalhos focam na relação do jovem com a tela, com o computador, e tentam dar instrumentos para quando ele estiver navegando. Como checar, conferir, pesquisar mais. No entanto, o mundo real das pessoas não é “uma relação com a rede” separado do “fora da rede”. As pessoas circulam nos dois ambientes o tempo todo. Então, o mundo de hoje não é “midiático” e “não midiático”. Tem um mundo que é simultaneamente, o tempo todo, interpenetrado, e quando você analisa a biografia sobre o impacto da internet, o que você descobre? Os efeitos da internet na interação social podem levar a uma fragilização e a um empobrecimento moral e intelectual.

 

Quais fatores levam a esse empobrecimento moral e intelectual?

Um deles é a velocidade da comunicação. Você espera respostas rápidas, que serão necessariamente curtas. Respostas não reflexivas, uma comunicação pingue-pongue. A estrutura emocional, reflexiva, não é eletrônica. O ser humano não é um ser eletrônico, ainda que tenha eletricidade no corpo. O processo de reflexão é também um processo emocional, que exige tempo. Como resultado, qualquer discussão entre duas pessoas no Facebook, no WhatsApp, ou em outra plataforma, termina em ofensas. Isso acontece porque, além da velocidade que não permite refletir, a comunicação virtual produz dessensibilização. Quando você está face a face com outra pessoa, você se comunica com o corpo dela, com as expressões faciais, com a sensibilidade e sentimentos. Na rede não vê o rosto da pessoa, não sabe se ela está triste, e a cancela com um clique. Qual a conclusão a que cheguei? Não adianta pensar numa educação midiática que não leva simultaneamente em consideração valores e raciocínios que se formam, fundamentalmente, fora da internet. Os sentimentos humanos associados ao contato físico são fundamentais para formar as emoções, que são a sustentação da convivência, da compreensão e do respeito ao próximo.

 

OS VALORES FUNDAMENTAIS QUE DEVEM NOS ORIENTAR COMO

SERES HUMANOS, COM CAPACIDADE DE REFLEXÃO E CONVIVÊNCIA,

NÃO SÃO DIFERENTES FORA E DENTRO DA INTERNET

 

Seria a solidão necessária para pensar duas, três, quatro vezes no que dizer ou escrever?

Sim. Antes, quando você recebia uma carta, você pensava no que ia responder e, depois de algum tempo, escrevia. Então, a conclusão a que cheguei é que a educação midiática deve desaparecer como tal. Ela deve ser uma nova perspectiva de educação, de formação de valores e de raciocínio que inclua tanto a internet quanto o ambiente fora da internet. Quando a gente se comunica na internet, nunca devemos esquecer a experiência offline que nos leva a pensar: “Deixe-me considerar como o que eu fizer vai afetar os sentimentos do outro”.

 

O sociólogo Bernardo Sorj | Crédito: Fernanda Cunha Rezende | IEA-USP

 

Com isso, quer dizer que a educação midiática precisa mudar?

Eu diria que a educação midiática tem que ser absorvida como parte integral da educação. Não é bom separá-la como um campo. É como falar de “e-cidadania” como sendo a cidadania da internet. Não. Cidadania é uma coisa só. Os valores fundamentais que devem nos orientar como seres humanos, com capacidade de reflexão e convivência, não são diferentes fora e dentro da internet. E esses valores se formam fundamentalmente nas relações face a face e devem estar, portanto, em comunicação constante com o mundo da internet. Então, acho que temos que passar da educação midiática, que teve seu momento de ser, até porque quando surge algo novo você cria uma “caixinha” diferenciada. Mas ela deve desaparecer e ser parte integral da educação em todas as áreas, em particular as que tratam das ciências humanas, sociais e literatura. O que temos visto é que, quando se fala com especialistas da educação midiática, existe uma tendência dos professores a se afastarem desse tema. Você produz trabalhos excelentes e os professores, em geral, não os utilizam.

 

Por quê?

Em diferentes países, pesquisas apontam a uma resposta simples: os professores se sentem inseguros nessa área porque estão lidando com uma geração digital, que entende mais do uso da internet que eles próprios. Dessa forma, os professores tentam se afastar dessa área. Na medida em que você fala para o professor que a experiência offline é fundamental para a educação online, e essa área offline é a base da experiência do professor, uma área em que ele se sente confortável, você está criando uma ponte para que os professores conversem com seus alunos quando se referem ao uso de internet. É isso que a gente tem visto depois de lançarmos o site (www.coracoesementes.org.br). Já tivemos mais de 50 mil visitas e milhares de downloads (do livro Corações e Mentes). Acho que os professores estão reagindo positivamente, porque se sentem reconhecidos nesse tipo de approach.

 

No livro também é destacada a necessidade de empatia, algo que pouco observamos nos usuários da internet. Seria a falta de empatia a razão que leva à polarização e à disseminação de ódio?

A polarização e o ódio são produto de uma variedade de fenômenos. Além dos fatores mencionados, o Facebook, com os “like it”, “not like it”, fortaleceu uma reação emocional binária. Uma das propostas que colocamos no livro, e que considero fundamental, é que devemos enriquecer nosso vocabulário de adjetivos para expressar julgamentos e emoções, para que a vida não se restrinja a “eu amo” e “eu odeio”. O amor é um sentimento profundo e não este a que se referem os jovens, essa geração “amo sorvete de chocolate”, “amo esse sapato”. Tudo é “amo” ou “odeio”. O ódio é um sentimento terrível, que adoece as pessoas. E amor é um sentimento nobre demais para ser utilizado de forma banal. Então, há um empobrecimento de vocabulário de emoções que termina sendo um empobrecimento das pessoas e das relações humanas. É um mundo de imagens, de simplificações, de extremos, de uma produção de informação que gera bolhas, e as fake news as aumentam.

 

UMA PESSOA CAPAZ DE PENSAR CRITICAMENTE

É UMA PESSOA CAPAZ DE PENSAR DE FORMA AUTÔNOMA, DE REFLETIR

 

Soma-se ainda à produção dessa bolha a influência dos algoritmos na sugestão de conteúdos.

Isso. As redes sociais e as grandes plataformas e sistemas de busca, nos seus bancos de dados que identificam afinidades e gostos, geram perfis pessoais que são usados para vender produtos ou enviar mensagens políticas. Tudo isso leva a um fechamento emocional e cognitivo das pessoas que é simbolizado pelo “amo” ou “odeio”. Temos que lembrar as pessoas sobre a diversidade de sentimentos e os diferentes adjetivos que cada sentimento merece. Inclusive por respeito a nós mesmos e aos outros. E isso é muito difícil nas redes. Um professor dificilmente pode explicar empatia só usando um computador. Ao contrário: esqueça um minuto o computador: que sentimentos você tem em relação a tal pessoa ou objeto? Que adjetivos são os mais adequados? Agora, vamos voltar ao computador, ler essa notícia e ver se simplesmente “amo” ou “odeio” são termos suficientes ou se há coisas ali que são interessantes, outras que você acha erradas, outras de que você discorda parcialmente. Ou seja, voltar sempre à capacidade de reflexão da pessoa, dos sentimentos fora da internet, para, então, retornar ao computador, levando sentimentos e capacidade de julgar que são muito mais plurais, diferenciados e diversos, que não se encaixam na polarização destrutiva. Destrutiva tanto da riqueza pessoal quanto da capacidade pessoal de refletir sobre o mundo e suas relações. É isso que a gente vive hoje no Brasil, e que as fake news só potencializam.

 

Outras duas questões fundamentais destacadas em Corações e Mentes são: o que pensar e como pensar. Como, então, pensar fora da rede, ou seja, não ser pautado tanto pelos sentimentos e direcionamentos?

Novamente voltamos à educação e à capacidade de desenvolver o pensamento crítico. Pensamento crítico não pode ser confundido com pensamento de crítica, aquele que critica não é alguém com pensamento crítico. Uma pessoa capaz de pensar criticamente é uma pessoa capaz de pensar de forma autônoma, de refletir, de procurar concordâncias e discordâncias a partir dos valores e do raciocínio. Esse pensamento crítico é fundamental em particular em tempos de internet por causa dessa velocidade extrema, que dificulta o raciocínio e o contato com os sentimentos dos outros. O foco principal sobre o que nos concentramos no livro são os vieses cognitivos. Eles são mecanismos internos, geralmente inconscientes, que nos levam a limitar, a diminuir nossa capacidade de pensamento autônomo. Um viés cognitivo que a gente já mencionou é o de tender a pensar que seja verdadeiro aquilo que confirma nossos preconceitos. São os ardis que nossa própria mente cria para diminuir nossa capacidade de autonomia e de crítica, facilitando, portanto, a manipulação.

 

Poderia nos dar outros exemplos desse viés cognitivo?

Um caso de viés cognitivo é o viés da normalidade. Nós acreditamos que nossa forma de ser é o normal e, portanto, o certo, já as condutas discordantes da nossa são erradas, patológicas, e, portanto, devem ser desprezadas e combatidas. O que chamamos de normalidade é nossa forma particular de ver o mundo, uma possível entre tantas outras. Ou seja, temos que nos proteger daquilo que é diferente. Outro viés é atribuir defeitos aos que são menos próximos da gente, chamado de viés da atribuição. Por exemplo, quando um político de uma linha que não é a sua rouba, você diz: “Todos os membros desse partido são ladrões”. Agora, quando um político da linha que você apoia rouba, você diz: “É uma exceção, não deveria ter acontecido”. O mesmo vale no plano da convivência cotidiana. Quando alguém próximo faz algo de errado, você considera um ato excepcional, produto das circunstâncias. Quando alguém de que você não gosta faz algo errado, você o atribui a seu “caráter”. No livro mostramos como as fake news se apoiam sobre nossos vieses cognitivos.

 

Como explicar a desumanidade evidente nas redes sociais, como essa questão do ódio e do preconceito?

No ano passado, publiquei o livro Em Que Mundo Vivemos? (disponível para acesso gratuito). Nessa obra tento mostrar que um dos problemas desse mundo polarizado em que vivemos é pensar que existem soluções simples, fáceis e rápidas para temas complexos. Tanto o ser humano individual quanto a sociedade são complexos. Por exemplo, não adianta pensar que o tema da violência se resolve apenas com uma atuação policial mais eficaz. Também não se trata de propor soluções de longo prazo com educação e maior igualdade. Ambas são necessárias. Tendências políticas simplificadoras, preconceituosas ou religiosas fundamentalistas costumam ver a realidade social de forma polar, maniqueísta, os bons de um lado, os ruins do outro. Não há lugar para o pluralismo, a argumentação, o debate de ideias. O que vivemos no Brasil de hoje tem a ver com uma produção intencional de polarização que leva a uma simplificação, a uma transformação da política – que deveria ser convivência e negociação – em guerra. Com o outro não se conversa, ele tem que ser destruído. Então, por trás da polarização tem um projeto político.

 

O que você enxerga além da polarização?

Historicamente tivemos polarizações sem redes sociais. A internet não mudou tão radicalmente o mundo. O mundo sempre foi esse, de seres humanos, mas a internet facilita esse processo de polarização, sem dúvida. E acho que existe outro elemento: uma crise profunda nas sociedades democráticas capitalistas. Esse sentimento de comunidade, de que, apesar de nossas diferenças, estamos construindo algo em comum, tem sido corroído nos últimos anos. Crises econômicas não facilitam, a desigualdade social não facilita, as transformações sociais que levam pessoas mais idosas a se sentirem distanciadas desse mundo que mudou não facilitam.

 

É UM MUNDO DE IMAGENS, DE SIMPLIFICAÇÕES, DE EXTREMOS,

DE UMA PRODUÇÃO DE INFORMAÇÃO QUE

GERA BOLHAS, E AS FAKE NEWS AS AUMENTAM

 

Outro aspecto que você aborda no livro é a falta de atenção e, sem atenção, não há paciência para um raciocínio complexo.

Um grande problema, do ponto de vista escolar, é a chamada epidemia do déficit de atenção. E esse déficit de atenção é simplesmente o cotidiano das crianças. Num almoço familiar, na minha juventude, todos se sentavam e havia momentos de fala e de silêncio. Hoje, cada um está com seu celular, pai, mãe e filho, e de vez em quando alguém fala algo, sem que os outros deixem de olhar o celular. Ninguém se concentra completamente em nada. E a solidão foi banida. Tem dois tipos de solidão, a solidão da época da minha adolescência, que é estar sozinho e não ter o que fazer, mas tem a solidão que é fundamental, que é o tempo que a pessoa está consigo mesma, no qual refletimos, nos damos tempo para digerir uma experiência ou tomar uma decisão. O mundo da internet faz com que as pessoas estejam sempre reagindo e nunca agindo. Agindo no sentido de se dar o tempo de refletir antes de fazer. Vivemos num mundo de reação permanente. Ler um livro por horas, que exige entrar num universo paralelo por horas, passou a ser algo paleolítico. Então, todos esses elementos apresentam desafios enormes. Entendo que temos que aceitar que o mundo mudou. Não adianta cair no saudosismo. Trata-se de criar pontes entre gerações. Levar para os nossos descendentes experiências que são relevantes, importantes e que permaneçam no nosso acervo civilizatório. Experiências que possam enriquecer nossos filhos e netos. Os professores podem fazer essa ponte, porque eles não ensinarão o uso prático da internet para as crianças digitais, mas farão uma ponte de conhecimento, de riqueza cultural, emocional, conceitual, com um mundo construído nas relações face a face.

 

Como esse universo digital tem influenciado a dinâmica familiar?

Começamos a elaborar uma versão de Corações e Mentes para os pais, para o universo da família. Temos que entender que a própria dinâmica familiar mudou com a revolução tecnológica, o que impõe novos desafios. Na minha infância, se tocasse o telefone, era minha mãe quem atendia e perguntava “quem está falando”, alguém respondia “quero falar com o Bernardo”, e minha mãe questionava “quem deseja falar com ele”. Só então me chamava dizendo “fulano quer falar com você”. Havia um controle familiar, de fato, sobre nosso mundo de relações. Uma criança hoje tem celular e passa a trocar mensagens ou ter acesso a qualquer informação sem que os pais tenham o mínimo de conhecimento. Em muitos países da Europa, a ideia de dar um telefone celular para uma criança não é cogitada. Mas hoje, no Brasil, se veem muitas crianças com celular, iPad ou computadores. Da mesma forma que eles eram colocados na frente da televisão para não incomodar.

 

O que é preciso fazer para retomar esse controle?

Temos que enfrentar o problema em múltiplas frentes, desde proteção da informação acumulada pelos bancos de dados, passando pela educação, até a forma em que se organiza o mundo do trabalho. Por exemplo, em alguns países da Europa estão começando a incluir no direito do trabalho a proibição de que sejam enviadas mensagens aos funcionários fora do horário de expediente. O direito a se desligar é um direito básico. Mas você precisa desligar o trabalho para ligar a família. Porque, quando você está numa relação presencial, a relação é olho no olho, não olho no celular. Essa relação é que cria o laço social e os sentimentos pelos outros, que estão sendo colocados em xeque.