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A vida em película

O cineasta Jorge Bodanzky. Crédito: Marcia Bodanzky
O cineasta Jorge Bodanzky. Crédito: Marcia Bodanzky

UM DOS GRANDES NOMES DO CINEMA NACIONAL TESTEMUNHA HÁ MAIS DE CINCO DÉCADAS

AS TRANSFORMAÇÕES DA NATUREZA E DA SOCIEDADE BRASILEIRAS

 

Desde o premiado longa-metragem Iracema, Uma Transa Amazônica, realizado em 1974 e proibido no país até os anos 1980, o cineasta e fotógrafo Jorge Bodanzky testemunha a vida na Amazônia. Recentemente, a região voltou a ser o foco de suas lentes em dois projetos. Um deles, o documentário Amazônia, a Nova Minamata? (2020), aborda as consequências devastadoras, para a população indígena e os povos ribeirinhos, do mercúrio usado no garimpo. O outro é a série Transamazônica – Uma Estrada para o Passado, com o diretor Fabiano Maciel, exibida no canal de streaming on demand HBO, que revê a história da rodovia e sua situação atual. Mas, até se tornar o cineasta que mais registrou as mudanças na parte brasileira do território amazônico, Bodanzky estudou arquitetura na UnB, apaixonou-se pela fotografia, foi professor na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de  São Paulo (ECA-USP) e foi cinegrafista de correspondentes de TV da Alemanha no Brasil. Além disso, cobriu a revolução estudantil na Europa, que eclodiria no Maio de 1968, e, de volta às terras brasileiras, pegou muita estrada de terra acompanhado de sua Super-8. Neste Encontros, Bodanzky conta essas e outras aventuras.

 

SONHOS NO PLANALTO

A experiência que vivi na Universidade de Brasília (em 1964) foi determinante na minha vida. A UnB foi criada por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira ainda no governo de João Goulart a partir de uma ideia que até hoje é bastante inovadora. A gente deveria cursar matérias de todas as áreas, não só daquela que escolheu. Então, eu cursava arquitetura, mas antes fiz dois anos no Instituto Central de Artes, uma espécie de básico para depois estudar arquitetura, desenho gráfico, cinema, pintura, desenho industrial e outros cursos que iriam surgir daí. Foi essa liberdade de escolha e de vivência com professores de diferentes áreas que me levou inicialmente à fotografia e, depois, ao cinema. Foi uma experiência única e rápida porque entrei na UnB no ano de 1964 e em seguida veio o golpe. A universidade resistiu apesar das prisões e invasões que sofreu. Em outubro de 1965, a situação ficou tão insuportável que os professores assinaram uma demissão coletiva imaginando que isso ia chamar a atenção, principalmente no meio internacional, o que acabou não acontecendo. O governo aceitou a demissão e no ano seguinte a universidade reabriu, mas com um currículo tradicional. Quer dizer, aquela experiência se perdeu completamente.

 

NA ESTRADA

Achei que tinha que dar um testemunho daquela época (na UnB). Por isso, fiz esse filme autobiográfico — Utopia Distopia (2020) —, que conta a minha história naquele momento, com as pessoas com quem convivi e quais as ideias que eram discutidas naquele momento, apesar de toda a repressão. Pude estudar com cabeças incríveis, como Athos Bulcão, Amélia Toledo, Claudio Santoro e, no cinema, com Paulo Emilio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet, Maurice Capovilla e uma pessoa que me influenciou muito, Heinz Forthmann, o cinegrafista do Darcy Ribeiro e primeiro a filmar o Kuarup [ritual de povos indígenas da região do Xingu em homenagem aos mortos]. Enfim, olha só que privilégio. Esse filme foi feito com pouquíssimos recursos. Um produtor de Brasília, Bruno Caldas, comprou essa ideia e conseguiu um recurso da Secretaria de Cultura [do Governo do Distrito Federal] para exibição. Praticamente nada, mas fiz com meu celular, com arquivo pessoal e depoimento de pessoas da época que eu ainda consegui entrevistar. Queria ter esse registro do início da minha história. Outra coisa muito importante que aconteceu naquele momento: a gente era incentivado a conhecer o Brasil. Principalmente porque chegavam colegas do país inteiro [para a UnB] e eu, paulista, conhecia São Paulo e a Europa, mas não o Brasil. Nas primeiras férias, a gente resolveu pegar um barco no Rio São Francisco, descer até Juazeiro (BA), com um grupo de estudantes, e entrar pelo Nordeste até Salvador. Esse desejo de conhecer o Brasil não parou nunca mais a partir daí.

 

TESTEMUNHA OCULAR

Naquela época, não era o cinema. Fazia fotografia com o professor Luis Humberto, que faleceu no ano passado e era arquiteto também. Ele abriu o primeiro laboratório de fotografia da UnB, fechando um pequeno banheiro. Interessei-me imediatamente pela fotografia. Até hoje continuo fotografando, paralelamente ao meu trabalho com o cinema. Entrei no cinema pela fotografia. Fui por muitos anos câmera para correspondentes de tevês estrangeiras e também fotógrafo de filmes de ficção na época da Boca do Lixo, em São Paulo, final dos anos 1960. Fiz um filme com José Agrippino de Paula, Hitler Terceiro Mundo (1968), que há um ou dois anos ganhou uma nova cópia pelo Sesc, com exibição. Considero esse filme talvez a obra mais emblemática da Boca do Lixo, daquele cinema paulista dos anos 1960. Também tive oportunidade de fazer a câmera para Compasso de Espera (1973), de Antunes Filho, O Profeta da Fome (1970), de Maurice Capovilla, entre outros. Quando saí de Brasília, consegui uma bolsa na Alemanha para estudar numa escola que foi herdeira da Bauhaus, onde tinha um departamento de cinema. E aí começou a revolta dos estudantes do final dos anos 1960 na Europa. O diretor da escola me mandou fazer esse registro. Era um momento fantástico, quando começou a aparecer toda a liderança do Maio de 1968 na França. A polícia não gostou dessa história e fechou a escola. Pela segunda vez, eu participei do fechamento de uma universidade. Voltei para o Brasil e fui ser professor na ECA [Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – USP]. Estavam lá, de novo, Paulo Emilio, Maurice Capovilla, Jean-Claude e outros. Mas a ECA também foi descaracterizada. Rudá de Andrade [cineasta que participou da fundação do curso de Cinema da ECA-USP] foi expulso e, com ele, os professores que ele havia convidado, inclusive eu.

 

EM SUPER-8

Sempre quis ser livre e filmar sem uma estrutura pesada. Sem estar preso a ordens de produtores. Então, trabalhava muito como cinegrafista para uma televisão alemã, para correspondentes da América Latina. Isso me deu uma cancha muito grande para fazer reportagem. Levava comigo uma câmera Super-8 como uma forma de guardar para mim o que via. Porque eu filmava com uma 16 mm e o material era levado para a Alemanha. Eu não via nada. Então, paralelamente, fazia o registro numa Super-8, na maioria das vezes. Acabei guardando esse material do final dos anos 1960, início dos anos 1970. Recentemente, ele foi digitalizado e está no meu arquivo no Instituto Moreira Salles. Descobri coisas incríveis que tinha feito, e faço uma releitura disso hoje. Naquela época, em que trabalhava para correspondentes de tevê, eu também era fotógrafo freelancer da revista Realidade, da Editora Abril. Uma revista muito corajosa, porque naquela época, auge da ditadura, abordava temas arriscados e ousados.

 

O CINEASTA É UM CONTADOR

DE HISTÓRIAS, E EU QUERIA

CONTAR AS MINHAS

 

É TUDO CINEMA

Você lê um livro e não vai se perguntar se é uma reportagem, se é uma ficção. Agora, no cinema tem esse estranhamento. Por que essa divisão? Por que um tem que ser documentário e o outro ficção? Isso aí ficou muito enraizado na estrutura de produção. Por exemplo, quando você vai apresentar um projeto para televisão ou para financiamento de edital, tem que escolher se vai entrar como ficção ou como documentário. Não são gêneros, são cinema. É difícil dizer: esse filme é só documentário ou é só ficção porque não existe “a realidade”. Toda realidade é inventada. A câmera pega aquilo que você aponta com ela. Você pode fazer um documentário sobre um fato que está acontecendo na sua frente, e atrás de você estar acontecendo exatamente o contrário. Então, a realidade é sempre a ficção que você está contando. O cineasta é um contador de histórias, e eu queria contar as minhas.

 

BASTA UM

O filme Ruivaldo, o Homem Que Salvou a Terra (2019), surgiu de um convite do João Farkas [que assina a codireção], que é fotógrafo e há muitos anos registra e documenta o Pantanal. Ele achou esse personagem, o Ruivaldo, e achou que valeria um filme. O Pantanal sofre um problema muito sério de assoreamento dos rios, que vem do Planalto Central, do Cerrado, que está sendo totalmente ocupado pelas lavouras de soja. Elas tiram a cobertura original e, quando vem a época de chuvas, a terra é lavada e essa água com sedimentos escorre para os rios do Pantanal, assoreando-os. Nesses rios, a água não flui, fica estagnada e inunda terras. Assim, o gado não tem como pastar, e as fazendas, que eram extremamente produtivas, foram abandonadas. O Ruivaldo, sozinho, resolveu criar um sistema de canais para desviar o fluxo da água e manter uma parte da fazenda dele seca. É pequena, mas o suficiente para ele ter gado, plantação e manter sua família. A ideia do filme é mostrar que um homem com vontade pode mudar as coisas, pode preservar uma área gigantesca. O filme foi feito com pouquíssimos recursos: usamos um drone e meu celular. O motivo não foi só econômico, mas para simplificar equipe e estrutura. Quando você está numa área indígena ou quilombola, conversando com as pessoas, se você chega com um celular, fica de igual para igual porque essa pessoa também tem um aparelho semelhante. Você não é superior porque tem uma máquina que domina e constrange o outro. Essa igualdade gerada pelo celular, para mim, é muito importante. Claro que as câmeras grandes têm mais recursos. Mas, para o que eu faço, o celular é mais do que o suficiente.

 

RETORNO À AMAZÔNIA

Estou fazendo agora algo que para mim é muito importante. Quando eu fiz a série sobre a Transamazônica, encontrei um médico durante uma reunião de lideranças Mundurukus que estavam festejando o bloqueio de uma construção hidrelétrica – uma pequena vitória entre tantas desgraças por lá. Ele está há alguns anos pesquisando os efeitos do mercúrio nas pessoas, porque elas ingerem os peixes que absorvem o mercúrio do garimpo. E esse dano neurológico irreversível já estava começando a aparecer. Eu não fazia ideia da dimensão disso: todos os rios da Amazônia estão contaminados. E não é um problema só brasileiro. O mesmo acontece na Bolívia, no Peru, no Equador, na Venezuela. Então, os rios entram na Bacia Amazônica brasileira contaminados. E essa degradação tem um efeito lento, leva às vezes 10, 20, 30 anos para aparecer, mas, quando aparece, é irreversível. Ela ataca o cérebro, atividades motoras, principalmente as crianças, que já nascem contaminadas, porque isso passa da mãe para o bebê. Nosso filme chama-se Amazônia, a Nova Minamata? (2020). Minamata é o nome de uma baía no Japão que nos anos 1950 sofreu uma grande contaminação de mercúrio lançado por uma indústria química. Naquela época, não se sabia que o mercúrio causava esse mal, e a população daquela baía, que comia peixes, começou a sofrer problemas neurológicos extremamente graves. Após uma longa batalha, eles conseguiram eliminar essa indústria e despoluir a região. Lá, hoje, você já pode voltar a comer peixe. Mas aquelas pessoas ainda sofrem as consequências da contaminação. A ideia é fazer essa comparação do que aconteceu em Minamata com o que está começando a acontecer na Amazônia. A gente pode antever o futuro se nada for feito nesse sentido.

 

Assista aos vídeos deste Encontros com Jorge Bodanzky no YouTube da Revista E: