Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Marçal Aquino

Ilustração: Paulo Sayeg
Ilustração: Paulo Sayeg

Covil

 

O Covil do Samba ocupava um galpão sem janelas onde, no passado, quando ainda havia gente que apostava que o bairro escaparia de sua vocação de subúrbio pobre e violento, funcionou uma revenda de tratores. Faliu a loja e o galpão, depois de um tempo fechado, passou a abrigar uma roda de música que todo fim de semana reunia a fina flor da malandragem local. Um balcão improvisado vendia cachaça e cerveja – e, com os contatos certos, podia se conseguir um pouco de maconha, uma erva ordinária, que dava mais dor de cabeça do que barato.

Vivia lotado o Covil nas noites de sexta a domingo. Sambistas vinham de pontos distantes da cidade para mostrar suas composições. Predominava o público masculino, negro, mas também havia pardos, mulatos, desbotados. Um branco sempre chamaria a atenção por ali. Armas eram vistas com frequência no ambiente.

Acabava sendo uma alternativa de lazer considerável numa quebrada em que a grande diversão consistia em tentar adivinhar em qual rua entraria pela manhã o rabecão do Instituto Médico Legal, a fim de recolher os presuntos resultantes das contendas noturnas.

Um lugar sem predicados. Ninguém escolhia viver ali. Parecia que, se pudessem, até as árvores das ruas, poucas e enfermiças, se mudariam para outro bairro.

Moacyr aportou na área a contragosto, num momento em que andava perdendo a maioria das batalhas com a vida. Perdendo por pontos, é bom que se diga, porque ele sempre lutava até o fim, sem se deixar abater. A fé absoluta de que, de uma hora para outra, as coisas mudariam. Não era uma crença de fundo religioso nem nada parecido com isso. Ele apenas acreditava que as fases boas e as ruins se alternavam, cabendo ao sujeito ficar atento para aproveitar quando a maré favorecia e ter paciência e não desanimar na etapa dos revezes.

Enquanto não arrumava coisa melhor, andava ganhando a vida como vigia noturno de um cemitério que existia na região, uma ocupação da qual não se orgulhava e que estava durando mais do que deveria. Quando alguém perguntava, ele dizia que trabalhava no “ramo da segurança”, sem fornecer maiores detalhes.

Estava consciente de que atravessava um período de baixa. Do contrário, não teria vindo morar de aluguel com a mãe velha e adoentada, em seus anos derradeiros, numa casa de fundos numa rua estreita e sem calçamento. O dono do imóvel fizera planos para um sobrado, mas a falta de dinheiro limitou a construção ao térreo.

Moacyr ficou com o “quarto de empregada”, como se alguém naquele bairro pudesse dar-se ao luxo de ter uma empregada. Uma escada nesse quarto conduzia a um alçapão, que dava acesso à laje sobre a casa, um excelente posto de observação da vida na comunidade, que a mãe usava para estender roupa num quaradouro improvisado.

Nas noites de calor, Moacyr se deitava ali no cimento, só de bermuda, em companhia de um violão, no qual dedilhava suas criações mais recentes – ele era compositor de sambas. Instantes de devaneio, puro sonho, em que se via artista consagrado, deixando para trás a vida precária que levava. Só não dá para dizer que se inspirava nas estrelas porque a poluição naquela parte da cidade não deixava ver o céu. 

Às vezes, Moacyr tinha plateia: Carvão, um gato vira-lata inteiramente negro, que pertencia, por assim dizer, a todos os moradores da rua. Em sua vadiagem pelos telhados contíguos, o animal saltava para a laje e se postava nas patas traseiras, a curta distância. Parecia apreciar a música, pois permanecia imóvel por um bom tempo, hipnotizado nos sons que o sambista extraía das cordas do violão.

No fim de semana, se o vento estivesse a favor, chegavam à laje fiapos do batuque do Covil, as risadas, os gritos e os assobios. O batuque e, sobretudo, as risadas deixavam Moacyr com vontade de conhecer o lugar.

Até que, numa noite abafada de sábado, depois que a mãe tomou seus remédios e se recolheu ao quarto, ele vestiu a camisa e a calça em melhor estado que possuía, calçou seu mocassim branco e saiu de casa com a intenção de descobrir por que o Covil do Samba atraía tanta gente.

Passou uma vez em frente ao galpão, lançando de soslaio um olhar tímido na direção dos homens e mulheres que se amontoavam na entrada, todos vestidos com apuro, como se estivessem numa festa. Parou na esquina, acendeu um cigarro, deu informação para um taxista perdido na complexa teia de vielas que compunham o bairro, onde Sua Excelência, o atual prefeito, não obteve um mísero voto em eleição recente. Duas negras montadas sobre saltos altíssimos, enfiadas sabe-Deus-como em vestidos curtos e muito justos, desceram a rua rumo ao Covil. Olharam de modo franco para Moacyr. Depois, cochicharam e riram. Recendiam de longe a éter.

Dizer que Moacyr era desprovido de atrativos físicos seria faltar com a verdade. Ele não tinha uma beleza ostensiva, é certo, mas estava a milhares de milhas de ser feio. Atrapalhava bastante o rosto vincado, a maior parte do tempo, por uma expressão séria, coisa de gente que não sorri com frequência, nem tem motivo para isso.

Parecia-se com a mãe, tinham o mesmo tom retinto de pele. Do pai, nenhum traço – nem notícia, já que nunca soube sua identidade. A mãe não aceitava tocar no assunto. Moacyr esperava que a proximidade do fim, como acontece em alguns filmes e livros ruins, fizesse a velha mudar de ideia. Até aquele momento, porém, ela permanecia num silêncio obstinado, e ficava mal-humorada se o filho insistia. Era uma mulher de opiniões severas, endurecida pelas circunstâncias de sua vida.

Ele jogou fora o cigarro e retornou pela rua e, desta vez, ao se aproximar do galpão, criou coragem, respirou fundo e entrou – direto para o bar improvisado, o que o obrigou a espremer-se em meio a homens e mulheres que, agitando notas de dinheiro, tentavam atrair a atenção do balconista para seus pedidos. Odores diversos flutuavam no ar abafado, com larga vantagem para os perfumes e o suor, igualmente baratos. Moacyr aguardou, teve paciência. E foi recompensado: conseguiu uma cerveja não muito gelada e um lugar junto a uma das colunas que sustentavam o galpão, próximo de um ventilador, de onde podia enxergar o palco.

Apresentava-se naquela hora um negro gordo, acompanhado por um trio de mulheres percussionistas. Ele cantava bem, na avaliação de Moacyr, um samba de linhagem antiga, falando de um incêndio numa favela que tinha destruído todas as lembranças da mulher amada. Usava a camisa aberta no peito para mostrar as enormes correntes de ouro que levava presas ao pescoço e também o quanto estava transpirando.

Moacyr bebeu um gole de cerveja e examinou o público que dançava de um jeito frenético nas proximidades do palco. Uma grande euforia dominava a todos. Pareciam torcedores de futebol.

Foi aí que reparou na mulher.

Com as costas apoiadas no balcão, ela bebia algo num copo de plástico – usando um canudinho. Talvez vestisse a roupa mais modesta entre as mulheres daquele lugar, um vestido simples, estampado, e no entanto irradiava mais elegância do que qualquer uma delas. Até nos gestos mais banais, como quando levava o canudo aos lábios, sem tirar os olhos do palco. Moacyr ficou magnetizado.

Houve um momento em que, sentindo-se observada, a mulher dedicou um segundo e meio de sua atenção a ele. Olhou-o com uma altivez de rainha.

Levou algum tempo para Moacyr absorver o impacto. Por isso, quando levantou a cerveja num brinde, ela já havia voltado a se interessar pelo que acontecia no palco – o gordo das correntes douradas terminava seu número, sob gritos e aplausos e até alguns urros.

Um concurso de sambas estava em andamento no Covil naquela noite. E Moacyr não tinha se equivocado ao associar a euforia do público a torcedores de futebol. Havia de fato uma torcida no local, que foi à loucura quando o sujeito que fazia as funções de apresentador anunciou que o samba defendido pelo gordo das correntes estava classificado para a grande final.

Moacyr continuava atento à mulher, e apenas a ela. Por isso não compreendeu de imediato o que acontecia: em meio à balbúrdia, ela terminou sua bebida, pôs o copo sobre o balcão e depois caminhou, pelo espaço que as pessoas iam abrindo à sua frente, com uma graça que há muito tempo Moacyr não via nas coisas em movimento no mundo. Vinha diretamente em sua direção, com um princípio de sorriso que punha no seu rosto um ar moleque. Ele sentiu o coração acelerar. A dois passos dele, a mulher girou à direita e entrou no corredor que conduzia ao palco, onde fora chamada pelo apresentador. O homem lhe entregou o microfone e depois juntou-se ao grupo que celebrava o sambista gordo.

A mulher aguardou que cessasse a algazarra. Quando entendeu que isso não aconteceria tão cedo, fez um sinal aos músicos que iriam acompanhá-la, foi para a frente do palco e começou a cantar.

Para Moacyr, foi como presenciar um pequeno milagre: aos poucos, a voz da mulher se impôs com a beleza de seu timbre e sua força no galpão abafado. Os ruídos foram diminuindo, as outras vozes se aquietando. Não demorou e estavam todos voltados para o palco, num silêncio que tinha algo de reverência. Um silêncio de súditos.

 

Este texto desta faz parte do conto Batuque, publicado em uma coletânea lançada na Espanha em 2019 e ainda inédito no Brasil.
 

 

Ilustração: Paulo Sayeg
 

 

Reportagem

para Fernando Portela
 

 

Minha primeira impressão foi de que as olheiras dele eram falsas, produto de maquiagem. Vestia um paletó xadrez e usava uma gravata americana, dessas que já vêm com o nó pronto, que fazia sucesso na ocasião entre as pessoas práticas.

Está próximo o dia em que beberemos o sangue dos nossos inimigos, ele declarou, solene, logo de saída.

Liguei o gravador. Ele sorriu e tirou o aparelho da minha mão, com delicadeza.

Não é necessário: você jamais esquecerá o que vai ouvir aqui.

Deu menos trabalho do que eu imaginava chegar até ele. O motorista do jornal tinha me levado a um ponto de encontro no centro, onde um carro passou para me apanhar no horário combinado. Dois sujeitos de cara fechada. Logo entendi que não adiantaria fazer perguntas. Achei que iam me revistar ou pôr uma venda nos meus olhos ou algo do gênero, mas nada disso aconteceu.

Rodamos um longo tempo pela noite, em direção à periferia. Apesar da hora, o trânsito ainda continuava pesado. No trajeto, a dupla trocou meia dúzia de palavras, se tanto. Um deles pediu um cigarro, o outro respondeu que não tinha.

Quando chegamos a um ponto no extremo leste da cidade, adentramos um trecho de casas pobres e ruas sem calçamento e de iluminação precária. O carro sacolejou por vielas estreitas e desertas. Um labirinto. A venda nos olhos não teria sido necessária: eu jamais encontraria de novo a rua em que paramos, nem com a ajuda do carteiro do bairro – supondo-se que alguém naquele lugar recebesse cartas.

O que me impressionou na casa para onde me conduziram foi o número de pessoas que se espremiam na sala e nas outras dependências. Velhos, mulheres, crianças. Gente simples, parda, desconfiada. Me olharam com curiosidade e em silêncio. Pareciam dispostos a protegê-lo com suas vidas, se fosse necessário. Não era permitido fazer fotos. Lembrei da proibição e toquei a pequena câmera que levava oculta no casaco.

O homem com olheiras postiças pediu que eu o acompanhasse até um dos quartos da casa. Um ambiente sóbrio, com uma cama de solteiro, um armário e uma cadeira. Nada mais. Na parede, pôsteres de vales ao pôr do sol e outras imagens igualmente duvidosas. Ele me indicou a cadeira e sentou-se na beirada da cama. Peguei meu bloco de notas e a caneta. Vi que ele me estudava.

Você não acredita em nada disso, não é?

Respondi que meu interesse ali era jornalístico. No fundo, eu sabia que o editor estava me testando ao me incumbir daquela reportagem. Colocava à prova meu ceticismo. E eu precisava ficar bem com meu editor: existia uma vaga para cobrir o conflito nas Malvinas e eu pensava em me candidatar. Juan, o correspondente que seria substituído, estava com pneumonia.

Eu não ganho nada aqui, ele disse. Não quero o dinheiro dos pobres. Dos ricos, se puder, eu tomo.

Perguntei se ele se sentia responsável pelo que tinha acontecido.

O seu jornal acha que eu ordenei a matança, mas vocês estão enganados. Eu apenas transmito as palavras. E cada um age de acordo com a própria cabeça.

Perguntei se ele se julgava um porta-voz de Deus.

Depende. Se você estiver falando dessas igrejas que prometem o paraíso depois da morte, não. São todas uma fraude!

Seu rosto avermelhou-se, destacando um pouco mais as olheiras suspeitas. Ele passou a falar alto, exaltado.

Nosso negócio é conquistar as coisas aqui e agora.

Um dos velhos abriu a porta do quarto e nos observou. Ele fez um gesto rápido, quase imperceptível. Bastou para o velho baixar a cabeça, numa reverência, e se retirar, puxando a porta.

Nunca prometi nada a ninguém, ele falou. Nenhum milagre.

Perguntei se ele não temia que as pessoas presas se sentissem traídas.

Como você deve saber, toda revolução tem seus mártires.

A idade dele era imprecisa, algo entre os quarenta e os cinquenta. No rosto liso, sem rugas, para além das olheiras, os olhos pareciam bem mais antigos. Não combinavam com o tempo de vida do restante dos traços.

Perguntei como aquilo havia começado, de onde ele tinha vindo. Seu passado.

Isso não é importante. Escreva no seu jornal que sempre estive por aí, esperando a hora chegar.

A polícia dispunha de pouquíssimas informações sobre ele; na realidade, ninguém sabia muito. Uma criatura sem passado. Mencionei as mulheres.

O que que tem? Sou um homem solteiro.

Diziam que ele vivia com várias mulheres. Ele riu.

Isso é bobagem, fantasia das pessoas. Cada um acredita no que quer, não posso fazer nada.

Nesse momento, uma garota entrou no quarto. Era bem jovem e carregava uma bacia e uma jarra com água. Usava um vestido ordinário e um lenço domando os cabelos crespos e estava descalça. Ela agachou-se diante dele, tirou seus sapatos e as meias e, depois de dobrar com cuidado as barras da calça, colocou os pés dele na bacia e começou a lavá-los, como se tivesse entre as mãos pequenas algo de muito valor. Em nenhum momento levantou os olhos para ele.

Perguntei se ele não temia ser preso. Ou que acontecesse alguma coisa pior.

Infeliz do homem sem inimigos, ele respondeu.

Ouvimos o ruído de um helicóptero, que se demorou sobrevoando a casa. Ele levantou as olheiras para o teto sem forro, como se estivéssemos prestes a testemunhar um pouso forçado no telhado. A menina permaneceu cabisbaixa, mas interrompeu o que fazia por um instante.

Achei que era uma boa imagem. E enfiei a mão no bolso do casaco e apalpei a câmera, calculando que chances teria de registrá-la. Ele pareceu captar meu movimento e se voltou. Porém, antes que pudesse dizer alguma coisa, a porta do quarto se abriu e o velho reapareceu para sussurrar no ouvido dele, protegendo, com a mão ao lado da boca, o sigilo do que dizia.

O helicóptero começou a se afastar, lentamente, e só então a menina retomou seu trabalho. O velho cruzou os braços e permaneceu, em guarda, ao lado da cama. Esperamos que o ruído do helicóptero cessasse por completo. Então ele me olhou.

Você deve ir agora.

Tenho mais perguntas pra lhe fazer.

Ele repetiu que eu deveria sair de imediato, explicando que, em pouco tempo, a casa estaria cercada e ele não teria como garantir minha integridade. Depois, fechou os olhos, como se tivesse entrado numa prece. A menina enxugava os pés dele com uma delicadeza que, de repente, se converteu num contraponto à rudeza com que o velho me puxou pelo braço.

Vamos.

Antes de deixar o quarto, ainda consegui perguntar:

Sobre o que vou escrever?

Escreva sobre o que você não viu, ele respondeu, sem abrir os olhos. Não é isso que vocês fazem no seu jornal?

O velho praticamente me arrastou para fora do quarto. Ao passar pela sala, vi que as pessoas continuavam amontoadas ali, agora um tanto alvoroçadas. Ao longe, dava para ouvir as sirenes. Havia um odor pesado no ar da sala, que não me pareceu humano. Um cheiro de bicho acuado, do qual nunca mais me esqueci. Um cheiro que até hoje me volta às narinas toda vez que sinto medo.

 

MARÇAL AQUINO é jornalista, escritor, roteirista de cinema e de televisão. Entre os livros publicados, estão o volume de contos O Amor e Outros Objetos Pontiagudos (Geração Editorial, 1999), vencedor do prêmio Jabuti no ano 2000; as novelas O Invasor (2011) e Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios (2005); e o romance Baixo Esplendor, lançado em abril pela Companhia das Letras, mesma editora das duas novelas mencionadas.