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Pescador de sons

Compositor, violonista e produtor Roberto Menescal. Crédito: Washington Possato
Compositor, violonista e produtor Roberto Menescal. Crédito: Washington Possato

AFEITO ÀS COISAS DO MAR, O COMPOSITOR,

VIOLONISTA, PRODUTOR E EXPOENTE DA BOSSA NOVA

RELEMBRA MOMENTOS E DISCOS MARCANTES DESSA TRAVESSIA

 

Sem dúvida, Roberto Menescal é um desses personagens da história da música brasileira que sempre estiveram no lugar certo, na hora exata. Nascido no Espírito Santo em 1937, mas carioca de vivência – mudou-se, aos três anos, para a capital fluminense –, o músico tem no mar sua grande fonte de inspiração e reduto de amizades. Era na praia de Copacabana que ele nadava, jogava vôlei e futebol depois das aulas, ia tocar violão com amigos e foi também onde pescou um dos grandes parceiros musicais de sua carreira: o jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli (1928-1994). Diferentemente de outros músicos da patota que criou a bossa nova, num Rio de Janeiro de 1960, Menescal era do tipo que dormia e acordava bem cedo.

 

E a pescaria – nesse caso não a metáfora, mas a prática – também lhe rendeu canções como O Barquinho, uma das mais famosas composições feitas com Bôscoli. Outra faceta de Menescal – a de produtor e diretor artístico da PolyGram/Philips de 1970 a 1985 – lhe rendeu reconhecimento internacional, lançando álbuns de Nara Leão, Raul Seixas, Maria Bethânia, Gal Costa, Fagner e muitos outros. Deu continuidade a esse trabalho no final dos anos 1980, quando fundou seu próprio selo, que não por acaso tem no nome outra referência marinha: Albatroz Discos. Paralelamente, continuou compondo e gravando música, fez lives na pandemia e teve sua trajetória documentada pela prima e escritora Claudia Menescal no recém-lançado Roberto Menescal: Um Arquiteto Musical (Futurama, 2020). Nesta Entrevista, o contador de histórias entra em cena e compartilha bastidores da gravação de discos históricos, como Construção, de Chico Buarque (1971), Elis, de Elis Regina (1972), além de, claro, relembrar desde os primeiros momentos da bossa nova até o movimento singrar oceanos e ganhar o mundo.

 

Suas canções têm cheiro de mar. De onde vem essa conexão?

Desde que nasci, sou muito ligado ao mar. Na verdade, sou do Espírito Santo e moro aqui [no Rio de Janeiro] desde os três anos de idade. Eu passava todas as férias em Vitória, à beira do mar. Tudo rolava ali, a casa dava para o mar. De manhã, a turma toda ia nadar até uma ilha, depois jogar bola. Era tudo no mar. De noite, quando comecei a tocar violão, a gente fazia serenata ali na praia. No Rio de Janeiro, eu morei em Copacabana, que era aquele espaço democrático. Você ia para o colégio, voltava e ia tomar um banho de mar, jogar um voleizinho. Ia para casa, almoçava e depois ia jogar futebol. De noite, era tocar violão na praia. Depois, comecei a fazer mergulho, caça submarina, fui um tremendo predador, confesso. Não sei o que era e não me compreendo fazendo isso. Mas fiz.

 

Então, dessa relação é que nascem suas composições.

Eu era o contrário do [Dorival] Caymmi, que tinha pavor de mar, mas fazia canções de mar. Acho que ele fazia aquilo para pedir desculpas ao mar, porque tinha muito medo. Como disse Danilo Caymmi [filho de Dorival], ele nunca botou um pé na água de tanto medo.

 

DESDE QUE NASCI,

SOU MUITO LIGADO AO MAR

 

Além disso, você tinha essa fama de ser esportista, de nadar, de jogar vôlei, de pescar. Curioso porque a mística da bossa nova é composta pelos boêmios, que preferem a noite ao dia. Você era uma exceção?

O pessoal até me pedia para mostrar alguns lugares aonde eu ia, fazia foto e tal. Eu não ia levá-los porque eles sempre dormiam e acordavam muito tarde. Minha pescaria era muito séria. Até que um dia, eu cedi e levei. Foi no dia em que levei a turma toda: Bôscoli, Nara Leão, sua namorada na época, o Tamba Trio e mais um rapaz que mora há anos na França, o Normando Santos. Eram umas oito ou nove pessoas no barco. Eu tinha alugado uma baleeira. Já começou mal porque eu falei para todo mundo estar às sete horas no cais. Foi chegando um a um com aquela cara de sono e pedi para comprarem algum lanche, enquanto eu estava checando o barco. Aí falei: “Nada de piquenique, só um guaraná e sanduíche”. Só depois é que vi que estavam levando rum dentro das garrafas de guaraná de rolha. Começou assim. Até que a gente enguiçou por volta da Ilha do Cabo e fomos sendo levados pelo vento leste de Cabo Frio, que era fortíssimo. Eu ia cantarolando, brincando para desanuviar. Já tinha acabado a bateria do motor e o último recurso era a manivela. Comecei a brincar com o som da manivela. Até que veio uma embarcação para amarrar uma corda em nosso barco, dar uma carona pra gente, eu e Ronaldo brincando:

“O barquinho vai, a tardinha cai…”, porque já eram seis horas da tarde. E todo mundo cantando junto. No dia seguinte, o Bôscoli perguntou na casa da Nara como era essa história do “Barquinho vai…”. Disse que tinha um suingue aquele som da manivela e eu fiz de novo. Foi de brincadeira que fizemos essa música [O Barquinho, 1960] e ela acabou se tornando nossa música mais gravada até hoje. A gente já tinha feito algumas coisas. Inclusive, tinha feito uma música para o mar também, Nós e o Mar. Aí começou a nascer muita coisa, Ronaldo gostou do negócio da pescaria e começou a ir com a gente. Fazíamos muita música nessas pescarias.

 

Hoje você não pesca mais?

Não. Abandonei quando tinha 50 anos, porque para pescaria de mergulho é preciso um preparo muito bom. Mas abandonei mais por causa da minha filha. Uma vez toquei a campainha de casa, e minha filha abriu a porta e ficou chocada: “Pai, você matou esse peixe”. E eu expliquei que era para a gente comer, mas ela disse: “Pai, a gente vai comer um peixe desse tamanho? Daí eu parei. Essa geração foi chegando e defende a natureza.

 

Crédito: Quinho Mibach
 
 

 

Sobre estrutura musical, quais eram as referências das suas composições no início da bossa nova?

No meu caso, no caso de Carlos Lyra, de Tom Jobim e de vários nossos, eram muito o jazz e os musicais americanos. Tinha um cinema perto da gente, em Copacabana, que sempre exibia um musical. E, no meio do musical, tinha um Nat King Cole cantando, e aqueles grandes orquestradores. Aquilo foi entrando no ouvido da gente. Mas e o samba? O Rio de Janeiro tem essa cadeia de montanhas que corta a cidade. Zona norte e zona sul eram completamente separadas, eram três horas para ir de um lugar a outro. Então, nós não tínhamos o conhecimento dos sambistas, do pessoal do morro. Depois que Nara Leão pulou um pouco da bossa nova para os sambistas do morro, aí que a gente foi tomar conhecimento disso. A importância da Nara foi muito grande nesse pulo que a gente deu. Mas era muita coisa do jazz mesmo.

 

Quais músicos do jazz?

Nat King Cole, para mim, era o cara que eu mais apreciava. Já para o outro pessoal da bossa nova era o [Frank] Sinatra. Mas o que foi definitivo na formação da gente foi o disco Julie Is Her Name (1955), com Julie London cantando, acompanhada por um guitarrista e um baixista. Aí, o que acontece? Naquela época, você ouvia um disco de Ella Fitzgerald, e tinha aquela orquestra de 50 figuras, enquanto baixo, piano e bateria eram um “bloquinho” no meio daquilo tudo. Não dava para distinguir os acordes. Mas quando veio esse disco… Era um canal só de gravação, como todos os outros, mas era uma guitarra na cara. Rapaz… Quando eu ouvi aquilo, disse: “Que acorde é esse?”. Aí, convidei Carlos Lyra, Baden Powell, Oscar Castro-Neves… Convidei uns cinco violonistas, marquei no sábado na casa de um amigo que tinha um som bom. Quando ele deu o play, todo mundo ficou surpreso. Porque, pela primeira vez, a gente ouviu os acordes perfeitos. Daí eu tive a ideia de cada um pegar duas músicas e depois de um mês a gente voltaria a se encontrar. Cada um tentava tirar o máximo que pudesse. A gente conseguiu tirar uns 40% dos acordes do cara, e daí a música brasileira andou rapidamente dez anos. No Brasil, o samba-canção dominava, era muito bonito aquilo, eu adorava, mas a gente tinha uns 18, 19 anos escutando: “Ninguém me ama, ninguém me quer…”. A gente tinha até vergonha de cantar a música. 

 

A temática do mar, no início da bossa nova, era uma certa oposição ao universo do samba-canção, que quase não se referia à geografia, no caso, do Rio de Janeiro?

O que a gente lutava mais era contra a letra, que era “como sou infeliz…”. Que é isso, cara! Que barra-pesada. Aí, olha que loucura, nós tínhamos um clube do Posto 4 em Copacabana e a gente estendia uma lona grande, dava umas 30 pessoas, aí teve uma briga e cada um cortou um pedaço da lona e cada um levou para sua costureira e fez uma bermuda, tudo da mesma cor, tudo azul. Foi o início da bermuda no Brasil. Não combina uma pessoa de bermuda cantando “ninguém me ama…”. Não tinha relação. Você vê o seguinte: todo o pessoal de música trabalhava durante o dia, uma grande parte trabalhava em jornais, eram repórteres, colunistas. Acabava o trabalho, iam para um bar e depois, às dez horas da noite, iam para as boates – Dolores Duran cantava num, Dóris Monteiro em outro. Dormiam muito tarde, de terno e gravata. Então, não podiam abrir o peito. Era um ambiente soturno. Já o nosso, era o do mar. Era o contrário, era um ambiente aberto. A gente sofria um pouco, mas daqui a pouco jogava um futebol e estava tudo legal.

 

ATÉ QUE VEIO UMA EMBARCAÇÃO PARA AMARRAR UMA CORDA

EM NOSSO BARCO, DAR UMA CARONA PRA GENTE,

EU E RONALDO BRINCANDO: “O BARQUINHO VAI, A TARDINHA CAI...”

 

Como era a parceria musical com o Bôscoli, ele era jornalista e repórter e de repente começou a escrever letras.

Eu conheci o Ronaldo numa reunião de violão de gente mais velha. Era muito formal, uma série de cadeiras, o pessoal sentado e o violão passando de mão em mão. Era o que tinha, mas não era o que me agradava mais. Quando fui encher meu copo de cuba libre, em outra salinha, ouvi um som. Fui até a varanda e tinha o Bôscoli e um cara tocando violão. Perguntei se podia chegar mais perto, eles deixaram e ele estava tocando Fim de Noite, do Bôscoli. Perguntei se ele não queria ir lá pra dentro, mas ele disse que não, como quem diz: “A nossa música é mais isso aqui. Disse que ficou um ano trancado num apartamento, que não conseguia sair de lá, e estava começando agora a botar o pé pra fora de casa. Eu olhava aquela história, que estranho. Falei: “Olha, eu namoro uma menina que se chama Nara Leão e a gente vai tocar violão sempre na casa dela, você não quer ir lá?”. Aí passei o endereço, ele não foi, claro. Passou-se um ano, eu estava na praia, ele passou com um amigo. Corri e fui falar com ele: “Oi, se lembra de mim?”. Até que ele lembrou, disse que não deu para ir pra casa da Nara [na outra ocasião], mas disse que ia dar um pulo lá. E ele foi. Estava o Carlinhos Lyra também, o Carlinhos grudou nele, e toda noite a gente ia para a casa da Nara. A não ser que tivesse uma reunião fora, uma festa na casa de outro. Mas era sempre na casa da Nara. E cada dia o Carlinhos e o Bôscoli faziam uma música. Era impressionante. Eu ficava do lado, ouvindo, ficava meio de “gravador”. Até que um dia o Carlinhos deu um bolo no Ronaldo. Ele ficou uma fera, e eu falei: “Tenho uma musiquinha aqui, quer dar uma olhada?”. Aí, fizemos uma música. No dia seguinte, ele: “Não quero saber mais do Carlinhos. Vamos fazer nós”. E aí fizemos mais uma música. As duas primeiras eram ruinzinhas. Foram até gravadas, mas ruinzinhas. E aí a terceira, falei que tinha feito uma música mais legal, Errinho à toa, e ele me disse: “Agora estamos na linha”. Daí em diante, fizemos 200 e poucas músicas. O Ronaldo era um cara muito boêmio, mas ao mesmo tempo gostava da coisa do mar. Ia tarde, chegava ao meio-dia na praia, mas era um cara que ia dormir tarde, gostava da noite.

 

Como a Nara Leão se tornou uma cantora numa época em que as outras cantoras eram reconhecidas por uma voz grande e potente, enquanto Nara cantava baixinho?

Como eu disse, eu era um “gravador” dos acordes e a Nara era “gravadora” de letra. Ela escrevia muito rápido. Então, ficávamos nós dois ali de apoio. Aí, ela cantava baixinho na casa dela. Até que um dia nós fizemos o que a gente considerou o primeiro show de bossa nova, em 1960, A Noite do Amor, o Sorriso e a Flor. E a gente convenceu a Nara a cantar. E ela: “Mas eu canto baixinho”. E a gente: “Isso, canta baixinho”. João Gilberto apareceu naquela época e também cantava baixinho. E aí, ela cantou. Cantou até de costas para o público.

A inibição dela... Na verdade, na vida dela toda, ela foi muito inibida. Ela falava: “Mas não sou artista, não gosto disso de falar com gente que puxa, segura”. Ela não tinha isso. Então, o som dela sempre foi baixinho, a não ser algumas coisas mais teatrais, quando começou a fazer com os sambistas. Eu adorava. Eu e muita gente.

 

A GENTE FOI ABRINDO A CABEÇA,

SENÃO MORRIA A BOSSA NOVA ALI,  NUM CÍRCULO FECHADO,

ENQUANTO OUTRAS COISAS ESTAVAM ACONTECENDO

 

Como a Nara acabou conhecendo e entrando em contato com o samba?

Antes é preciso explicar como a Nara foi parar ali. Porque ela era da bossa nova, e de repente larga tudo e vai cantar o morro? Foi por problemas de namoro com o Ronaldo Bôscoli. Eles iam ficar noivos e, de repente, nós fomos para a Argentina. Eu produzi um disco da Maysa, o primeiro disco que produzi, e ela falou para a gente lançar lá. E ficamos um mês na Argentina. Claro, no avião, já na ida, Ronaldo e Maysa começaram a namorar, e eu avisei que isso ia dar bode. Quando a gente voltou, ele tinha até comprado umas alianças para Nara. Quando a gente chegou ao aeroporto, e tinha a imprensa recebendo a gente – porque foi um lançamento muito legal na Argentina –, Maysa passou o braço no do Ronaldo e falou: “Quero apresentar meu noivo”. Aí foi foto aqui, foto ali, saiu nos jornais no mesmo dia. E a Nara no dia seguinte falou pra mim: “Eu vou sumir da turma da gente, vou acabar com as reuniões lá de casa. Porque eu não quero ver o Ronaldo mais”. Eu até levei as alianças para a Nara, ela disse: “Que bonitinho”, e jogou no trânsito. Foi isso. Ela sumiu da gente. Nisso, descobre o Cinema Novo, até se casa com o Cacá Diegues, e começa a descobrir os sambistas. Ela trouxe os sambistas pra gente. Só voltou a cantar bossa nova dez anos depois.

 

Crédito: Quinho Mibach

 

 

Em termos de estética musical, como foi o impacto provocado por sambistas como Zé Keti, Cartola e Nelson Cavaquinho nesse núcleo original da bossa nova?

Influenciaram bastante porque, primeiro, eles trouxeram motivos novos, de letra e tudo. E as músicas... A gente achava que samba era algo simples, mas quando você ouve: “Quando eu piso em folhas secas…”. Que é isso, né? A gente botava aquele ritmo da bossa nova, então havia uma identificação da chegada. Falavam: “Chegou a nova turma da bossa nova”. A gente gostava muito principalmente desses três, Nelson Cavaquinho, Cartola e Zé Keti. Antes, a música deles não chegava até a gente ou talvez a gente não chegasse neles. Duas coisas foram importantes para abrir a cabeça da gente: a chegada dos sambistas e a Tropicália. A gente foi abrindo a cabeça, senão morria a bossa nova ali num círculo fechado, enquanto outras coisas estavam acontecendo. Era perigoso. Eu comecei a gostar do Roberto Carlos também, me perguntam por quê, e digo: porque eu gosto. Tanto que depois eu produzi o disco da Nara E Que Tudo Mais Vá para o Inferno (1978). 

 

Um disco completamente diferente do que a Nara Leão já tinha feito...

Foi algo muito da Nara mesmo. Um colunista até falou que a Nara estava se vendendo ao sucesso. E ela: “Não posso gravar uma música do Roberto? Se eu pudesse, gravava um disco inteiro com música dele para calar essas pessoas”. E eu perguntei a ela: “Por que não?” Ela foi e gravou. Esse foi um dos discos da Nara que mais venderam. Acho um disco muito bonito.

 

Voltando à bossa nova, é interessante que até hoje seja o gênero que mais teve repercussão fora do Brasil.

No Japão, então, é bem forte. Já fui 31 vezes ao Japão, calcula: 27 horas de ida, 27 horas de volta. Cheguei a ir três vezes por ano, depois eles (os japoneses) foram aprendendo e hoje tocam tão bem ou melhor que a gente. Mas esse é um fenômeno. Na França e na Itália curtiam muito bossa nova. Quando fiz uma turnê por países nórdicos, achei que não gostassem, mas vi todo mundo cantando “Vai minha tristeza…” em português. Então, a gente não tem notícia da música nossa que toca nos países nórdicos. Na Austrália, nós fizemos um show naquele teatro Sydney Opera House, e lotou. Teve um cara num jantar da embaixada que veio me perguntar se não dava para ele entrar com a gente [os músicos] no show porque os ingressos tinham acabado e o teatro estava lotado. No final, o cara entrou com a minha guitarra. Então, esses sustos que a gente leva com o exterior, que ninguém sabe no Brasil. Pouca gente sabe, por exemplo, da carreira do Ivan Lins lá fora. É impressionante. Tem gente que fala: “Poxa, o Ivan sumiu, né”? E eu: “Sumiu aqui porque lá nos Estados Unidos e Europa…” Como dizia o Tom: “O Brasil não conhece o Brasil”.

 

No caso dos Estados Unidos – onde grandes músicos como Stan Getz, que gravou com João Gilberto, além de Duke Ellington e o próprio Miles Davis flertaram com a bossa nova –, o gênero também reverberou bastante.

Vou te contar um fato interessante: um dia me telefona um cara do Itamaraty falando que estavam preparando um show grande de bossa nova em Nova York, no Carnegie Hall. Eu não sabia o que era o Carnegie Hall. Fiquei calado. Me disseram que seria em novembro e eu disse que não podia ir porque tinha marcado uma pescaria em Cabo Frio, já tinha alugado um barco com um pessoal. Daí, o cara do Itamaraty ficou impressionado. Tom Jobim me telefona uma hora depois: “Menesca, você tá doido, cara? É o Brasil. Você tem que ir, não tem isso de pescaria”. Eu fui, claro! O mestre me chamando assim. E lá fomos… Aquela farra no avião, ninguém ensaiou nada, não sabíamos o que ia ser. Quando chegamos ao aeroporto, fui o primeiro a passar pelo controle de passaporte. Quando olhei pra frente, vi os caras do jazz. Eles tinham ido receber a gente. “Não é possível”, pensei. Daí, veio o Gerry Mulligan: “Oh, Menescal”, me cumprimentando. Fico arrepiado até hoje.

 

Queria falar um pouco sobre seu trabalho como produtor e diretor artístico. Porque você na PolyGram, hoje Universal, fez discos marcantes na música brasileira. Como essa faceta de produtor entra na sua vida?

Primeiro foi com a Maysa, que apareceu na turma da gente e queria gravar coisas nossas. Falei para ela pensar bem, ela estava indo bem no samba-canção, poderia ser perigoso mudar. Mas ela quis e me chamou para produzir. Eu avisei que não tinha produzido ninguém. Produzia nossos showzinhos. Enfim. Aí produzi o disco dela, e pouco depois produzi o disco da Wanda Sá, o Wanda Vagamente, que foi muito bem. Assim começou. Um pede aqui, outro ali. Comecei a tocar com a Elis Regina. Fizemos quatro anos de Europa, idas e vindas, gravando com várias pessoas de lá também, mas chegou um ponto em que falei: “Elis, estou adorando o que estou fazendo, mas acho que de repente não é muito legal para você ficar muito ligada comigo porque tá virando meio duplinha”. A Pimentinha era braba. Porque pra mim estava tudo certo. Tivemos três papos, e eu falei: “Acho que para sua carreira, você tinha que montar uma outra banda, uma banda muito boa”. E ela me perguntou o que eu ia fazer. Eu não sabia. Aí, conversando com o André [Midani], que era presidente da PolyGram, ele me chamou para ser diretor artístico na gravadora. Ele precisava de um diretor artístico que fosse músico. Perguntei se eu tinha que ir todo dia, até então nunca tinha sido empregado. Pedi um dia para pensar e topei. Passei 15 anos lá dentro. Tive sorte na chegada de pegar o disco do Chico, Construção (1971), o da Elis, Elis (1972), que tem Águas de Março... Dei muita sorte. Entrei em 1970 e saí em 1985.

 

Crédito: Washington Possato

 

No caso de Construção, qual foi seu papel?

Deixo claro que Construção não foi por minha causa. O Chico já vinha com aquela música pronta, o que fiz foi dar condição para fazer um disco que foi caro – algumas faixas ali têm 60 músicos –, acompanhar aquilo ali e pirar na mixagem. Eu só dava condições e organizava tudo. Teve até um lance barra-pesada. O Luis Cláudio estava começando na produção, e, enquanto a gente estava mixando o disco, pedimos que ele ligasse a música Construção. Ele apertou o botão que apagou a faixa inteira. Participação de Tom, Vinicius [de Moraes], Toquinho, MPB4. Quando olhei para ele, ele estava branco, quase tendo um infarto. Eu disse: “Calma todo mundo. A PolyGram não pode saber disso”. Porque uma faixa que custou milhares de reais tinha sido apagada e não podia sair dali. Então falei que íamos regravar a faixa. Peguei um pouquinho do disco da Elis, da Gal [Costa], do Egberto [Gismonti], de cada disco que ia fazer. Ficou até melhor. Mas meu coração quase pifou, o do Chico também, o de todo mundo. Mas no final valeu. Só fui falar isso para o André Midani um ano depois. Outra questão foi quando levei o disco para a reunião de produção, e o cara da divulgação falou que a música não ia tocar no rádio porque ela tinha sete minutos, e na rádio só tocavam [composições de] até três minutos. Eu falei que queria trabalhar aquela música, e o Midani concordou. Coloquei a letra na contracapa, e a música estourou com sete minutos. Nós mudamos um conceito brasileiro sobre tocar em rádio.

 

PASSARAM-SE DEZ MINUTOS E CHICO ME DEU A LETRA

[DE ATRÁS DA PORTA]. LEVEI PRA CASA DA ELIS,

E ELA CHORAVA COM A MÚSICA

 

Como foi produzir o disco da Elis Regina (Elis, 1972), com Águas de Março, Casa no Campo e tantas outras canções que fizeram história?

Esse disco foi difícil. Queria marcar com ela para escolher as músicas e ela já sabia o que queria – duas do Chico, duas do Milton Nascimento, duas do Caetano [Veloso], duas do [Gilberto] Gil – e queria tudo inédito. Mas ela não tinha esse material. Avisei que todo mundo estava pedindo música para eles, e achava difícil terem duas músicas inéditas para ela. Pedi ao Caetano, ele não tinha. Gil tinha uma, Milton não tinha. Ah… Ela queria uma do Jobim também. Até que começou a achar que ninguém queria dar uma música pra ela. Pedi um mês pra trazer um repertório para ela escolher. Não sabia como, mas fui. Peguei música do Fagner [Mucuripe], Casa no Campo [de Tavito e Zé Rodrix], que estava saindo, Gil fez Ladeira da Preguiça. Aí, fui à casa do Tom, vai que tinha uma coisa lá guardada. O Tom me avisou que estava lá com uma cantora que ia ensaiar uma música que ele preparou para ela. Cheguei um pouquinho antes, me sentei e, quando vejo, ele estava passando com essa menina: “É pau, é pedra, é o fim do caminho...”. Eu, lá quietinho, mas como tinha meu gravadorzinho cassete, gravei tudo. Falei: “Tom, eu não quero saber, a Elis vai gravar essa música”. E ele: “Menesca, não posso fazer isso com a moça”. Eu falei: “Sou eu quem vai fazer”. Daí ele me disse que nem ia me ensinar a música, só que eu disse que tinha gravado. Daí, falei pra Elis que estava com uma música nova do Tom. Ela adorou, nem sabia que era para outra cantora. Pedi outra música para o Francis Hime. Ele disse que tinha três com o Chico. Eram boas, mas não o que a gente queria. A fita tinha acabado e começou outra: “Quando olhaste bem nos olhos meus, e o teu olhar era de adeus...”. E vai indo. E a segunda parte sem letra. Ele me disse que estava fazendo essa música com o Chico havia dois anos e ele não conseguia acabar. Fomos para o estúdio, gravamos tudo e, na segunda parte, sem letra, a Elis cantarola até o final. Passei na casa do Chico e ele colocou a fita no gravador que ficava em cima da geladeira. Quando ouviu a Elis cantarolar, pegou um embrulho na cozinha, cortou o papel e pegou uma caneta do lado da geladeira mesmo. Passaram-se dez minutos e Chico me deu a letra. Levei pra casa da Elis, e ela chorava com a música. Na hora de gravar essa segunda parte, ela chorava, não conseguia cantar. Até ela conseguir gravar, com muita emoção, e a música estourou. Então, você vê: esse era meu papel, conseguir umas coisas que não me seriam impossíveis.

 

Por que você não quis passar um tempo fora do país como Tom Jobim, João Gilberto, Eumir Deodato?

Naquela época, como eu tinha que vir para meu casamento, tinha feito uma casinha perto de Cabo Frio para poder pescar. Falamos de ficar cinco anos por lá. Fazia a pescaria e depois eu e minha mulher íamos vender o peixe, então, entrando dinheiro foi ótimo. Foram os primeiros meses de verão, uma maravilha. Aí, chegou o inverno, a água e o vento frio... Aí eu voltei para o Rio. O Brasil estava muito bom para shows, então fui ficando, e nunca fui de querer morar fora. Mesmo no Japão ou em países da Europa, o máximo que fiquei foram 15 dias. Estados Unidos também. Eu gostava de ir, mas gostava de voltar e ficar no Rio de Janeiro. Os outros se deram bem por lá, mas eu sou muito brasileiro.