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Erica Mizutani e o mural Deságua

Fachada do mural Deságua feito por Erica Mizutani | Foto: André Yamamoto
Fachada do mural Deságua feito por Erica Mizutani | Foto: André Yamamoto

O Sesc São José dos Campos convidou a artista Erica Mizutani para criar uma ilustração no espaço expositivo da unidade.

Nesta entrevista, a artista fala sobre seu processo criativo, sobre a escolha da ilustração para as paredes do Sesc, sobre o início de sua carreira e o impacto da pandemia em seu trabalho.

Erica traz na memória referências estéticas vividas de dentro da casa do pai, artista e publicitário, e fazia da sala seu estúdio de criação. Nascida na cidade de São Paulo, Mizú, como é conhecida pelos amigos, traça seu caminho profissional sempre atrelado ao envolvimento criativo. Iniciou sua carreira em editoras e agências de publicidade, cenários importantes para a sua formação atual estética. Hoje, atuando em um campo totalmente autoral, a artista permeia por várias vertentes, ilustrando e pintando em plataformas variadas. Papel, desenho digital, estampas, paredes e telas.

Já levou sua arte para lugares distantes, como Bélgica, Estados Unidos, França e Japão. No Brasil, suas pinturas e murais estampam desde produtos, embalagens, roupas de grandes marcas, até um mural de 250 metros de extensão na zona portuária no Rio de Janeiro. Empresas como Facebook, Suzano Celulose e Senac também têm as cores da artista em suas paredes. Seu estilo possui formas naturais e orgânicas, passando em alguns momentos pelo abstrato, criando um universo onírico cheio de transparências e combinações únicas de cores. Destaque especial para os seus desenhos e personagens, que trazem gestos confortantes, um pouco melancólicos e quase sempre divertidos. Uma tradução leve de sua infância.

Assim é a Mizú, artista, mulher, mãe de 3 filhos e que deseja confortar, espalhar amor e acolhimento com a sua arte.
 

Em qual o momento da sua vida você percebeu que seria uma artista plástica?

Sempre quis ser artista plástica. Quando criança, eu usava o nome de desenhista e queria trabalhar com desenho quando crescesse, mas a trajetória vai mudando. Já adulta, fui trabalhar com publicidade e depois com editoração e diagramação de livros e revistas. Em um momento do meu trabalho como diagramadora e editora de arte, comecei a ilustrar para as publicações que eu diagramava. Trabalhei em várias editoras diferentes; no começo da minha carreira trabalhei em algumas que tinham um borderô baixo, que é a grana que a gente tem para poder investir em fotógrafos e ilustradores. Como o borderô era baixo, em algumas revistas, eu tinha que fazer as ilustrações, o que foi muito rico para mim, porque aprendi muito e acabei descobrindo, ou redescobrindo, que queria trabalhar com desenhos e ilustrações. Depois disso, comecei a fazer ilustrações separadas das edições, coisas mais autorais, e acho que esse foi o começo do começo. Quando eu comecei a me encantar com os meus desenhos, foi aquela ansiedade de querer começar a me desvincular das editoras. Eu queria mais independência criativa e comecei a investir mais no meu trabalho autoral. Quando coloquei na cabeça que precisava me sustentar com esses desenhos, foi quando percebi que eu era uma artista plástica.

 

Como é o seu processo criativo?

Depende muito de onde eu vou pintar. Existem as questões estéticas que eu já tenho, que eu carrego, que eu busco e tem também as ansiedades do cliente. É sempre diferente dependendo do lugar que eu vou pintar e o ritmo criativo que vou escolher...

Aqui no Sesc, por exemplo, no processo criativo específico deste mural, tive muita liberdade para criar e colocar a minha identidade. Trouxe um pouco de tudo do que tenho, das cores que eu gosto, dos desenhos das mulheres que eu acho superimportante. Ele fala da minha história, desde a escolha das cores até o peso das massas. Acho que nesse caso a arquitetura me permitiu construir um diálogo muito mais rico. Tem uma parte da parede que forma um “u", eu senti que pude explorar isso e colocar as montanhas de pedras nos dois lados para causar a sensação de acolhimento.

 

Fotos: André Yamamoto
 

A partir do seu ponto de vista, seu trabalho tem uma identidade visual?

Eu buscava muito isso no começo da minha carreira, sentia que tinha que ter uma identidade para todo mundo me reconhecer. Vejo que muitos artistas têm essa ansiedade também. Acho que a publicidade me ajudou muito a ter esse ritmo estético no que faço. Quando trabalhei na área, tinha que montar várias peças com as cores e com a marca do cliente.

Falando para quem está começando, acho legal valorizar muito todo tipo de profissão, porque percebo que tudo que fiz antes de trabalhar com arte, hoje me ajuda muito: desde a visão estética, que me dá essa unidade visual e que traz isso para quem está vendo - esse lance de ver e saber que é meu. E a minha experiência com editoração me trouxe um equilíbrio. Uma página de revista precisa ter equilíbrio de texto e fotografia, esta é uma característica que ficou em mim e que eu trago também no meu trabalho como artista.

Eu acho que existe um equilíbrio bem legal nas minhas obras. As pessoas olham e reconhecem, porque tem uma característica minha ali. Mas depois de um tempo fui esquecendo um pouco, estou me forçando a esquecer essa ansiedade de querer ser notada pela personalidade do meu trabalho, porque eu acho que você acaba se fechando, sem perceber. Por exemplo, eu gosto de fazer uma personagem, mas isso não quer dizer que em todos os meus trabalhos ela precisa estar presente. Gosto de cores frias, mas não necessariamente preciso trabalhar com isso por anos e anos, né? Eu senti essa vontade de quebrar a ansiedade de ter que ter uma personalidade, porque acontece naturalmente. Você vai fazer coisas que tenham a ver umas com as outras. Se você faz uma ilustração, uma tela, um mural, você vai de alguma maneira ter uma conversa entre eles, porque você é você, entende? É importante ser reconhecida quando uma pessoa vê, mas é muito mais importante agora ser reconhecida sabendo que eu não estou seguindo essa regra.

 

Você tem referências no mundo da arte?

Tem vários artistas que eu adimiro. Matisse, por exemplo, é um cara do qual gosto muito. Ele tem umas colagens muito interessantes com uma paleta de cores superintensas. Nas outras técnicas, como óleo sobre tela e ilustração, ele também apresenta um minimalismo orgânico, não necessariamente um minimalismo estético supergeométrico, e ele faz uma coisa. Também sou fã dos mais contemporâneos, como Anish Kapoor, artista indiano, que vive há muitos anos na Inglaterra. Ele tem uma arte imponente, esculturas enormes e bem arredondadas. Acho intrigante o fato de ele não usa pontas, busco no meu trabalho ser superconfortável, o arredondado, e a arte dele além de ser arredondada, é gigantesca. Uma determinada proporção que te faz se sentir pequeno, isso me dá uma sensação de proteção sabe, é algo que busco/esta presente nos meus trabalhos.

Tenho ainda as referências dos amigos. Gosto muito da Ju Violetta e Pri Barbosa, que são mais urbanas e que têm um diálogo com meu trabalho. Como referências de artistas japoneses, por exemplo, gosto do Takashi Murakami, que tem um trabalho alegre e consegue colocar a arte dele em produtos. Acredito que o artista quando atinge esse patamar, com essa abrangência de ter sua arte impressa em um brinco, bolsa ou um boneco, por exemplo, pode cair numa coisa ruim, mas quando se alcança uma estética legal é surpreendente e ele chega nesse nível.
 


 

Você acredita que é um mito a ideia do artista triste produzir melhor?

Acho que depende da pessoa. Tenho várias coisas que produzi quando estava triste, mas percebo que produzo mais quando estou melhor, quando estou bem. Tem artista que produz mais quando está triste e tem artista que produz mais quando está feliz. É que existem ondas, sigo o que eu sou. Tenho que estar bem, tenho que estar confortável, com prazer e tal.

Não acredito que seja um mito. Acho que cada um tem um jeito e o meu jeito é esse, eu preciso estar sentindo prazer, conforto, mas as coisas que produzi quando estava triste, gosto muito também, aliás, as coisas que enquadrei para colocar na minha casa (tem pouca coisas minha), são os desenhos de tristeza, acho que é pra eu olhar e falar: ainda bem que foi só aquela vez.
 

Fora do campo da arte, o que te inspira no dia a dia?

O próprio dia a dia me inspira muito. Às vezes um vento quente, um facho de sol, principalmente agora, isolada na quarentena. Um cheirinho bom, um sabonete gostoso, me inspiram. Mas se eu for colocar numa caixa essas coisas, acho que é na caixa do conforto, na caixa da vontade de ficar deitada, de passar a mão na pele. Eu acho muito legal essa sensação de você estar tão concentrada em si mesmo, você consegue ter a sensação de que a sua pele é o conforto. Quando se tem uma referência que está em você, pode estar em qualquer lugar. E é sempre voltada para isso, referências que me trazem uma sensação de prazer, de conforto e não de dor. Não me inspira muito as coisas ruins, apesar de a gente ter lados ruins e melancólicos, eu gosto para o meu trabalho das sensações confortáveis, tanto que você pode observar que tem muita coisa mole, fofinha, redonda, cores que têm sabor. Quando mexo com as tintas, elas parecem que são comestíveis e é meio para esse lado que eu gosto, tanto que sempre peço muita dica de comida para os amigos, porque a sensação do cheiro e do gosto da comida também são coisas boas e, para mim, são inspirações. Quando a gente tem esse tipo de inspiração, precisa estar bem pra poder buscar.
 

Como você enxerga o impacto da arte na sociedade?

A arte pode ser procurada, pode impactar para mudar alguma coisa. Eu acho que ela tem vários papéis. Ela pode ter o papel de divertir, de alertar. Ela pode ter o papel de criticar bastante, como a arte de rua. Eu acho que ela tem críticas que acertam bem no alvo, por isso sou fã da arte de rua também, principalmente porque quem tá na rua não escolheu ver aquilo. Quando você vai no museu, escolhe ver uma obra ou paga para ver alguma coisa. Com a arte de rua você pode se surpreender e aquilo pode mexer com você mais do que a obra do museu, então acho que ela tem um impacto social bem legal, bem forte. Vejo algumas artes mais femininas também como uma maneira de levantar algumas bandeiras e fortalecer algumas ideias. Eu não vejo a arte como uma coisa que não movimenta nada. Acho que qualquer tipo de arte sempre vai movimentar.


Qual foi o impacto da pandemia no seu trabalho?

Apesar da pandemia ser um momento ruim, para mim teve um lado foi positivo. Pude ficar um pouco mais dentro da minha casa, um pouco mais próxima de mim, mais próxima das pessoas que eu gosto. Eu estava em um ritmo mais lento, uma coisa que a gente nem teria percebido se não tivesse acontecido a pandemia. Como eu tenho a arte como trabalho, percebi que tinha que ficar atenta aos pedidos, de como estava a ansiedade dos clientes em querer comprar ou não. Como estava baixa a procura por arte, foi importante para eu repensar as coisas que quero pintar e desenhar, porque é muito gostoso criar junto com alguém ou criar para alguém, mas também às vezes é muito legal a gente criar sem ter um pedido ou criar pra gente mesmo. Acabei encontrando esse lugar dentro de mim, que estava vazio, e na pandemia eu visitei esse espaço e encontrei outras coisas. Achei superlegal isso e o mais divertido e mais explosivo foi que alguns clientes começaram a gostar desses novos desenhos, dessa sala nova e, consequentemente tive vários pedidos, e acabei vendendo essas artes. Isso prova que o artista pode dar uma viajada também, não que eu não viaje, todo artista viaja e faz suas criações, mas às vezes a gente fica com medo de ousar um pouco, por mais que já pareça ousado. Então, às vezes a gente pensa "será que eu já fui até onde eu poderia ir? “, e a quarentena me deu essa chance de ir atrás de coisas novas, e como eu trabalho com isso, é importante vender. Alem de eu ter feito, vendi também, então foi importantíssimo pra mim.

 

Poderia falar um pouco sobre o Deságua?

Em primeiro lugar, fiquei feliz da vida porque a gente acabou de falar da minha nova criação, que nasceu na quarentena, daquele espaço que estava vazio. E aqui pude misturar as minhas criações, que eu já estava trazendo há anos, das cores, das montanhas e da natureza, com as minhas ilustrações. Até penso que não vejo como um mural, mas sim como uma ilustração grande, sabe? Ilustração é aquela coisa que você faz no seu caderno, mais intimista, e aqui senti que fiz uma ilustração na parede, era uma conexão minha com a parede, eu com o desenho. E o mais legal é que, por mais que eu já tenha feito murais grandes, senti que esse mural era grande porque eu fiz uma ilustração no mural e foi superdivertido, foi supergostoso de ver isso acontecer

Então, isso é uma experiência muito de poder fazer essa nova série aqui, de poder colocar muito sentimento nela, porque todas elas representam um lado meu, inclusive aquela que tem duas mulheres, é um lado meu e um lado “meuzinha”, ou pode ser uma criação minha ou pode ser minha filha ou pode ser sua mãe com alguém, a interpretação é de quem está vendo, podendo gerar várias histórias. (foto do mural).

O nome Deságua vem primeiro da ideia de que eu queria usar a água, porque ela tem toda aquela história do movimento, do nascimento, do renascimento e pode nascer em um ponto e terminar em outro, mas ela evapora e volta para o mesmo ponto, entende?

A água tem um ciclo, a chuva que veio do vapor, a cachoeira que vem de cima para baixo e que volta em forma de vapor, e sobe e desce e eu coloco isso como um ciclo de vida. O desaguar pode ser um choro, um desabafo também. Ele é em lágrima. Então você está pensativa no primeiro plano, não necessariamente triste, mas pode ser que você esteja, de repente, contemplando como se tivesse passado por aquilo e estivesse em um outro estágio e depois você tem a parte da criação ou da sensação de não estar sozinha, mesmo que as duas mulheres representem uma só. Você pode estar se sentindo completa estando sozinha ou com alguém. Mas é mais ou menos isso, como se ali fosse o fim ou o começo, mas de você estar se sentindo completa. A água percorre tudo, e ela está ali porque é como se fosse um vale. Ela tem as montanhas nas laterais e aí vem o meu nome, Mizutani. O Mizu significa a água, e o Tani, o vale. E dessa brincadeira com o meu nome, que está na ilustração de abertura, surgiram todas as outras histórias. E o legal é que esse chão aqui do Sesc brilha e reflete, então você vê as coisas duplicadas embaixo. Esse reflexo pode representar a água. A minha maior vontade é essa, e eu já percebi que os funcionários e as pessoas que estão aqui, veem e pensam em algumas coisas. A minha vontade é essa: de a pessoa sentir que isso faz parte da vida dela também, é essa sensação que eu quero.
 




 

Assita ao vídeo produzido pela equipe de comunicação do Sesc São José dos Campos do mural Deságua: