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Habitar Palavras: Jorge Freitas

Os meses que saíram de férias 

Parte 1 

O despertador tocou. Era 6h15. Um dia sempre começa normal se alguém não te liga de madrugada para dizer o contrário. Escovar os dentes, arrumar a cama, tomar café. Andar com a fé. Mais um dia e o tempo todo disponível não para mim, mas para os outros. 

A caminhada começou. Era 7h15. Não se falava tanto, mas se ouvia muito. Muita buzina, muito barulho. O caminho era sempre longo, dava tempo de refletir. A proposta da mãe, o almoço com o pai, o vizinho de baixo e o problema no banheiro. Restaria tempo para tanta coisa? 

O trabalho começou. Era 8h15. Até quando seria possível aguentar aquele chefe, a sala abafada, o telefone que não parava de tocar. Seria bom ficar em casa, ter um tempo de descanso. Tempo. Existe mesmo essa coisa de tempo? 

Já era hora do almoço. 12h15. A reunião no fim, o negócio fechado, a luta diária para garantir um salário no fim do mês. Olho o celular. Nenhuma mensagem, de ninguém. Pudera, meu tempo vai todo para o trabalho. Queria eu ter tempo para encontrar alguém, fazer amigos. 

Sem tanto tempo para o almoço. 12h30. A tarde seria longa, o almoço mal digerido, as despesas de casa, uma mensagem. Se eu iria ver hoje o vazamento no banheiro. Ah, o vizinho. Não quero saber de banheiro. Veja você. Não posso dizer isso. O vazamento vem de cima. É comigo. O encanador precisa ir em casa. Mas preciso estar lá. E não tenho tempo. 

Hora de ir embora. 17h30. Queria eu sair do trabalho e chegar em casa como num passe de mágica. Mas não é assim. Vou caminhando. A tarde é pior que a manhã. Tem gente cansada. Tem muito mais buzina, muito mais barulho. 

Preciso ver o banheiro. 18h30. Ligo para o encanador. Só amanhã, 15h. Não posso. Trabalho. Moro longe. Não consigo dar um pulo em casa para resolver o problema. Toc toc. É o vizinho. O banheiro. Negociei meu tempo, o encanador vem 9h. 

Ligo para meu chefe. 21h30. Não tem jeito. Terei de faltar no trabalho amanhã pela manhã. Preciso do encanador. Desconto no salário. Sem vale-alimentação. 100, 200 reais. Ninguém faz nada de graça para ninguém. Estou literalmente vendendo meu tempo. 

Vou dormir. 22h30. Tempo. Me faltou tempo. Amanhã vai ser diferente. 



Parte 2 

 

Despertador. 

Trabalho. 

Celular. 

Caminhada 

Escritório 

Barulho. 

Silêncio. 

Casa. 

Lockdown. 

Computador. 

Máscara. 

Teletrabalho. 

Pandemia. 

 

De repente, havia tempo demais e coisas de menos. 

 

Parte 3 

 

E lá se foi um ano. O primeiro mês foi assustador. Depois, mais ainda, mas tivemos que nos acostumar com os absurdos de quem comandava o país. Já se morria muita gente no exterior, mas brasileiro demora para acreditar naquilo que não vê. Conseguiram politizar saúde, vacina, isolamento social. Vem da China, não vem. É de laboratório, não é. Sem consenso, padecíamos. 

Aliás, padecemos. Se uma pessoa já é o suficiente para indicar uma derrota, quem dirá 500 mil. Irrecuperáveis. Tanto quanto o tempo que perdemos. Quem acordou na pandemia com 28, já tem 30. Tem gente que acordou solteiro e está casado. Outros, com pais e estão órfãos. 

Quanto custou? Quanto vai custar? Parece que tiramos de férias mais de 14 meses de nossas vidas sem podermos aproveitar. Trancados em casa, apesar dos que saíram e aglomeraram. 

Trabalho? Alguns puderam de casa, outros não. Desemprego. Economia ou a vida? Nem um, nem outro. O plano é acabar com tudo mesmo. Salve-se quem puder, neste nome a Globo acertou sem querer. 

O tempo. Ah, o tempo. Não há mais. Nem tanto. Não importa quem se cuidou ou deixou de se cuidar. O tempo não volta. Tem tempo que nem chega em tantos casos. O vizinho, o chefe, o banheiro, o escritório, a casa ao lado, o almoço com o pai, a proposta da mãe. Teve coisa que deu tempo. Tem outras que não terão mais tempo. 

E aí, o que a gente pode fazer? Viver com o que sobrou, é claro. Afinal, quem mais se importa conosco quando se pede propina em vacina?  

 

Sobre o autor

Jorge L. P. de Freitas nasceu em Guaraçaí, interior do estado de São Paulo, em 23 de abril de 1993. É mestre em Planejamento e Análise de Políticas Públicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Franca), local em que também se graduou em Relações Internacionais. Freitas é funcionário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e autor do livro de suspense "Katherine", lançado em 2021, que pode ser encontrado em seu instagram @jorgelpdefreitas. Além disso, é apaixonado em ver e debater futebol. Suas centenas de crônicas esportivas podem ser encontradas nos sites ‘No Ângulo’ e ‘Meu Timão’.

 

Habitar Palavras - Biblioteca Sesc Birigui

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