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Lente para mudanças

O cineasta mineiro Helvécio Ratton, de 72 anos. Foto: Bianca Aun
O cineasta mineiro Helvécio Ratton, de 72 anos. Foto: Bianca Aun

AUTOR DE FILMES QUE REPERCUTEM QUESTÕES SOCIAIS,

COMO A SAÚDE MENTAL E A POLÍTICA, CINEASTA MINEIRO VIVENCIA PAUSA

PARA PENSAR EM FUTUROS PROJETOS

 

“Até hoje, sinto os cheiros de lá. Cheiros de suor, de sofrimento, de sujeira… Algo que nunca mais saiu de mim”, conta Helvécio Ratton sobre o período em que registrou o modo como sobreviviam milhares de homens e mulheres internados no Hospital Colônia de Barbacena (MG). O ano era 1979, e o cineasta, recém-formado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, havia conseguido a permissão da Secretaria de Saúde do estado para entrar e registrar as atrocidades que depois o Brasil e outros países iriam assistir no média-metragem Em Nome da Razão (1979), obra que teve um importante papel na luta antimanicomial e que estreia neste mês na programação do SescTV.

 

Curiosamente, o mais recente filme de Ratton também trata de um estado que beira a loucura, mas sob a ótica da ficção. Baseado no conto homônimo do escritor mineiro Murilo Rubião (1916-1991), o longa-metragem O Lodo (2020) foi exibido na programação online da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, entre outubro e novembro do ano passado. Mesmo que debruçado sobre temas densos, como as produções já mencionadas e Batismo de Sangue (2007), baseado no livro de Frei Betto sobre a participação de frades dominicanos na luta contra a ditadura militar, Ratton também ajusta a lente para a beleza da infância vivida por ele no quintal de casa, subindo em árvores, brincando com amigos e jogando futebol na rua. Lembranças que acompanham longas como Menino Maluquinho – O Filme (1995), inspirado na obra de Ziraldo, e Uma Onda no Ar (2002), que evidencia a criatividade e iniciativa de jovens em uma grande favela de Belo Horizonte. “Sempre quis fazer filmes que tivessem, de alguma forma, uma repercussão social”, conta o cineasta, que, ao lado da produtora e parceira Simone Magalhães Matos, criou e coordena a Quimera Filmes.

 

LUTA ANTIMANICOMIAL

Tinha começado a trabalhar com cinema no Chile [onde viveu exilado por quase quatro anos, de 1970 a 1973], mas, depois de retornar ao Brasil, não tinha conseguido retomar minha atividade nessa área. Trabalhava numa agência de publicidade, na época, para ganhar a vida. Tinha decidido fazer Psicologia e, em 1979, estava terminando esse curso. Foi nesse momento que tivemos a possibilidade de visitar o manicômio de Barbacena. A gente estava em plena ditadura, quando a Secretaria de Saúde de Minas permitiu que um grupo de pessoas visitasse o local. Eram alguns estudantes, como eu, e profissionais de saúde que estavam participando da luta antimanicomial naquele momento. Foi perto da visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia ao Brasil, um ícone mundial na luta contra o encarceramento de pessoas com doenças psiquiátricas. Então, fui com esse grupo a Barbacena e fiquei chocado com o que vimos lá. O filme Em Nome da Razão nasceu dessa minha indignação. Voltei com a sensação de que eu tinha que, urgentemente, mostrar para a sociedade o que tínhamos visto. Eu precisava mostrar o que acontecia por trás do muro alto daquele hospício, uma realidade que se reproduzia em muitos outros lugares Brasil afora, e quem eram aquelas pessoas que a sociedade abandonava. Quando voltei do Hospital Colônia, fiz uma proposta à Secretaria de Saúde para que me permitisse filmar lá dentro. Eles permitiram e montamos, rapidamente, uma equipe de guerrilha, muito pequena. Éramos quatro pessoas e financiamos o filme com dinheiro do próprio bolso – era difícil buscar um patrocinador, naquela época, para isso. Foi assim que o filme nasceu. Depois eu tive, quando já estava montando o filme, um sentimento de que precisava fazer aquilo rapidamente, antes que baixasse a censura em cima da gente, e ela já havia demonstrado sinais. Nessa época, foi realizado o Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Minas Gerais, com a presença de Basaglia, ou seja, era um momento ótimo para estrear o filme, e foi assim que fizemos. Em Nome da Razão repercutiu naquele congresso, teve uma recepção impressionante e foi aí que o filme começou a circular.

 

O cineasta durante as filmagens do documentário Em Nome da Razão, na cidade de Barbacena (MG), em 1979 | Maria Amélia Palhares

 

 

LEMBRANÇAS DOLORIDAS

Até hoje, sinto os cheiros de lá [do manicômio de Barbacena]. Cheiros de suor, de sofrimento, de sujeira… Algo que nunca mais saiu de mim. São lembranças muito fortes. Como se [aquele lugar] estivesse materializando um campo de concentração, algo que a gente conhecia de relatos de campos nazistas, e de repente você tinha aquilo ali aos seus olhos, ao vivo. Era muito difícil filmar ali dentro, exigia da gente ter certa frieza e um distanciamento que nos permitissem abordar aquela realidade que nos envolvia de uma forma impressionante até fisicamente, porque, quando a gente entrava num daqueles pátios, as pessoas nos cercavam. Acho que nos identificavam como “mensageiros” que poderiam levar para fora alguma mensagem deles. Vinham em cima de nós, nos agarravam, não de maneira agressiva, mas vinham para cima de nós. Foi tudo muito forte.

 

DA REALIDADE À FICÇÃO

O conto O Lodo, de Murilo Rubião, me atraiu muito porque colocava essa questão da saúde mental, da confusão mental num outro campo, e a relação paciente-analista também, claro que de uma forma absurda. Me interessava muito transitar entre o real e o imaginário. Também [tinha interesse em abordar] a materialização desse sofrimento mental, o que, no caso do filme [O Lodo, 2020], sai em cortes [físicos], quase estigmas no peito do protagonista, de onde escorre esse lodo. Tudo isso me atraiu porque o comportamento humano me interessa muito: a nossa cabeça, a forma como a gente se relaciona neste mundo, enfim, tudo isso me provoca muito. O filme acaba tendo um pouco disto: esse lodo que escorre do peito do protagonista é o mesmo que escorre dos massacres que têm acontecido no Brasil, da repressão aos indígenas, desta confusão institucional em que a gente foi lançado, desta pandemia tão mal conduzida, do massacre nas favelas. Todo esse lodo que está escorrendo em várias feridas do Brasil, eu sinto que é semelhante ao que acontece no meu filme, embora não fosse essa a intenção inicial.

 

MEMÓRIAS DE CRIANÇA

A infância é um período que gosto de manter vivo dentro de mim. Até os seis anos, vivi em cidades muito pequenas, meu pai era juiz e eu morei em duas cidades antes de voltar para Belo Horizonte. Foi um período muito gostoso de casa com quintal grande, de brincar com amigos, de muitas árvores, de liberdade para brincar nas ruas; mesmo depois, na capital, onde cresci. Era um momento em que a gente jogava futebol nas ruas e parava quando vinha um carro – estou falando dos anos 1960, quando a gente conseguia fazer isso. Então, tem esse lado da minha infância muito forte nos filmes que faço. Outro lado tem a ver com o que senti na época em que minhas filhas eram pequenas, quando fiz o primeiro filme, A Dança dos Bonecos, e, mais tarde, Menino Maluquinho. Eu ia muito com elas ao cinema e ficava chateado com o que via. Eram produções brasileiras muito mais preocupadas em vender coisas – uma sandalinha, uma bolsinha, por exemplo – do que em apresentar um bom espetáculo para as crianças. Isso me irritava profundamente, e minha vontade era fazer filmes anticonsumismo. Mostrar que, para se divertir e brincar, você não precisa comprar nada: basta juntar os amigos e pronto! A partir daí, você começa a inventar qualquer coisa. Então, meus filmes têm um pouco desse desejo.

 

DESAFIOS PRESENTES

Estamos vivendo uma situação no Brasil que, a cada dia, se transforma. Parece até que estamos numa série maluca que não tem fim. Também estamos vivendo um momento muito complexo no audiovisual brasileiro. Um momento de paralisação: não há praticamente produção e, ainda que os cinemas estejam abertos, o público não voltou. Além disso, temos o streaming concorrendo com as telas de cinema e mudando a relação do público com os filmes. Então, estou aproveitando este momento para repensar projetos futuros e o que quero fazer de fato. Para [que eu possa] pensar no que está acontecendo no cinema brasileiro e em que mundo nós estamos. Repensar, inclusive, minha proposta como cineasta.

 

O CINEMA É UMA ARTE CAPAZ DE FAZER

AS PESSOAS SE EMOCIONAREM E REFLETIREM

 

 

Os atores Eduardo Moreira (à frente) e Renato Parara em cena do filme O Lodo (2020), inspirado em obra de Murilo Rubião | Bianca Aun

 

 

MODO ALGORITMO

O que acho complicado quanto à questão do streaming brasileiro é uma certa ditadura do algoritmo, que é o que define temas e formas do audiovisual. Então, você vai trabalhar com aquilo que “a média está querendo”. Sinto como se tivesse que fazer algo para agradar todo mundo. Como se tivesse que criar um sanduíche fast food, sabe? Algo que pode servir “a todos os gostos possíveis”. Sinto que o streaming caminha para essa direção. E a forma como as plataformas estão se relacionando com o conteúdo nacional não me atrai. Ainda não há uma definição de cota de filmes brasileiros – o que eu acho fundamental –, como vem acontecendo nos países da Europa, que estabeleceram uma cota de conteúdo local no streaming, algo por volta de 30% [do acervo das plataformas]. No Brasil, pelas circunstâncias políticas que estamos vivendo, não há nenhuma definição de cota de tela para o streaming. Dessa forma, a nossa produção independente fica muito sacrificada, e é nela que você tem uma diversidade de filmes, de olhares, de propostas. Na medida em que você não tem isso e tem que buscar um denominador comum – o que interessa é a comédia ou séries desse tipo etc. –, eu, particularmente, não vejo um caminho que me atraia como artista.

 

REPERCUSSÃO SOCIAL

Sempre quis fazer filmes que tivessem, de alguma forma, uma repercussão social. Sempre pensei no cinema não como se ele fosse capaz de mudar o mundo, pois ele não é capaz. Quem muda o mundo são as pessoas, e o cinema é uma arte capaz de fazer as pessoas se emocionarem e refletirem. Senti isso quando fiz Em Nome da Razão, que é um filme que ajudou, de fato, a mudar a questão manicomial no Brasil. Mais tarde, quando fiz o documentário O Mineiro e o Queijo (2011), ele ajudou, de forma concreta, a mudar a história do queijo artesanal de MG. Encontrei, de repente, uma situação em que você tinha um modo de fazer o queijo minas como um patrimônio imaterial, algo tombado, mas esse mesmo queijo era proibido de circular no Brasil. Então, em torno dessa contradição, comecei a estudá-la, a entender o que acontecia, e nós fizemos um filme que ajudou a mudar a história desse queijo. Ou seja, sempre pensei no cinema como uma forma de você intervir concretamente em um assunto. Como no caso dos meus filmes infantis, mostrar uma abordagem diferente da infância, ou também em trabalhos mais políticos, como Batismo de Sangue, que aborda acontecimentos passados durante a ditadura e que é bom relembrar no atual momento para que as pessoas percebam o que pode significar uma ruptura da democracia.

 

HIBERNAÇÃO E ESCRITA

Às vezes, tenho vontade de escrever. Como escrevo em geral meus roteiros, seja em parceria ou sozinho, isso me atrai. Ou seja, é uma opção à medida que se torna difícil fazer filmes hoje, ou mesmo que eu perca o interesse por eles nesses momentos complicados de produção paralisada. Vivemos numa época em que não está muito claro para onde seguir. Estou, portanto, num momento de hibernação. De certa forma, esse isolamento tem me provocado um olhar para dentro, para repensar o que de fato me interessa.

 

Assista ao documentário Em Nome da Razão (1979) e outras produções audiovisuais que abordam o tema da saúde mental na programação do ciclo Delicadezas da Alma, que vai ao ar no dia 29/10, às 23h, no SescTV. Confira em: sescsp.org.br/sesctv.