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Entrevista
Paulo Autran

O grande ator do palco brasileiro chega aos 53 anos de carreira consagrado por suas interpretações dramáticas e cômicas

Assim como Pelé é o sinônimo de futebol e Pixinguinha é a própria música brasileira, Paulo Autran tornou-se em mais de meio século de carreira o emblema do teatro brasileiro. Encarnando personagens densos ou figuras leves com humor requintado, Autran construiu uma célebre galeria de tipos que hoje fazem parte da memória da arte brasileira. Nesta entrevista exclusiva à Revista E, o ator fala sobre sua nova montagem, Variações Enigmáticas, dos grandes espetáculos do teatro brasileiro e sobre a arte de construir personagens.

O que você está preparando agora?
No momento, terminei minha temporada de Variações Enigmáticas, uma peça de Eric-Emmanuel Schmitt, que, apesar do nome, é francês; aliás, um dos bons autores modernos franceses. Esteve em cartaz no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro, até o dia 23 de junho. Depois vou fazer o Sul do país e então venho para São Paulo, em setembro, no Teatro Faap. É um espetáculo lindo, com direção de José Possi Netto e no qual trabalho com Cecil Thiré, que está ótimo na peça. Foi um sucesso no Rio, com críticas geniais. Até Bárbara Heliodora, considerada a crítica mais rabugenta do Brasil, gostou muito.

Algum motivo especial para ter escolhido essa peça?
Desde a primeira vez que eu li o texto, fiquei apaixonado. Isso foi antes de fazer Visitando Mr. Green, que foi um sucesso tão grande que eu não podia interromper. Assim, traduzi Variações Enigmáticas e quando terminou a carreira de Mr. Green - que, aliás, terminei um pouco abruptamente porque estava louco para encenar essa nova peça - comecei os ensaios. E estou muito feliz.

Qual é o enredo?
É sobre um escritor Prêmio Nobel que mora sozinho no norte da Noruega, perto do pólo, e que recebe a visita de um repórter. E será repórter ou não será repórter etc. Do relacionamento dos dois surgem coisas inacreditáveis. O interessante na peça, além do suspense, é principalmente o que se discute e a maneira como se discute. É um texto de altíssima qualidade, apaixonante. Ri-se muito no início, depois o texto cativa a platéia... é uma delícia ver a reação do público.

Como é para você, que já fez vários tipos de personagem, escolher um texto com 53 anos de carreira?
Eu gosto muito de variar. Se faço uma tragédia, depois quero fazer uma comédia, depois um drama... Apesar de não cantar, fiz os dois musicais de maior sucesso no Brasil: My Fair Lady, de 1962 a 1964; e O Homem de La Mancha, dez anos depois. Ambos com Bibi Ferreira. Não tenho preferência por uma história ou um gênero, o que importa é que o texto seja bom.

Já houve vezes em que você gostou de um texto, sentiu por ele uma simpatia especial, mas o resultado não ficou bom?
Acontece. Um exemplo foi a peça Para Sempre, de Maria Adelaide Amaral. Li, gostei, a Karen Rodrigues leu e também gostou. O espetáculo ficou muito bonito, mas não agradou os paulistanos. Em várias cidades, o espetáculo foi um sucesso. Então resolvemos voltar para São Paulo e foi um fracasso maior ainda.

E sobre as peças de Shakespeare? Se fizermos uma lista de autores montados no Brasil, ele sempre aparecerá entre os primeiros?
Tenho o prazer de dizer que quando fiz Otelo ninguém pensava em montar Shakespeare no Brasil. Montei Otelo, Coriolano, Macbeth, A Tempestade (com um grupo de Londrina) e Rei Lear, que resolvi fazer quando fiquei com o cabelo completamente branco. Apesar deste espetáculo não ter agradado a classe teatral, o público adorou; foi a peça na qual eu fui mais ovacionado em toda a minha carreira. Atualmente, a classe teatral foi despertada pelo encanto extraordinário que é montar Shakespeare, um autor de amplitude fantástica. Ele abrangeu todas as paixões humanas, tanto as positivas quanto as negativas; pode-se encontrar nele todas as tendências do ser humano. Acabei de ver A Tragédia de Hamlet (Teatro Sesc Anchieta), feita por Peter Brook. Há muitos anos, quando fui para a Europa pela primeira vez, vi Irma La Dulce, uma peça francesa de Brook. Depois disso, ele fez um sucesso extraordinário como diretor, até meio místico. Mas na época, pensei "essa peça não pode ser dele... tão comercial". Mas, anos depois, avaliando o conjunto da sua obra, li que ele havia dirigido Irma La Dulce na juventude. Ele é um grande diretor. Às vezes erra, como qualquer pessoa. Esse elenco que ele trouxe ao Brasil na montagem de A Tragédia de Hamlet tinha atores fantásticos, como o rapaz que fez Hamlet, e outros fracos, como a que fez a mãe de Hamlet.
Em termos de textos brasileiros, o que você tem visto de interessante na dramaturgia?
Temos vários autores interessantes. O maior de todos é Nelson Rodrigues, que eu nunca montei e nem posso mais porque ele não tem nenhum personagem nem perto da minha idade, o que é uma pena, porque gosto muito dele como autor. Além dele, temos Naum Alves de Souza, Maria Adelaide Amaral, Flávio de Souza, Bosco Brasil... Sempre surgem autores interessantes. Mas não temos nenhum Molière e nenhum Shakespeare, o que é raro de acontecer no mundo inteiro.

A explosão de Nelson Rodrigues se deu paralelamente à sua carreira de ator. Como é observar o surgimento de um autor como esse sem nunca ter feito nada dele?
Eu tinha uma certa antipatia pelo Nelson por causa das idéias políticas dele. Agora que já passou tudo isso, nós estamos em plena democracia, graças a Deus, e eu gostaria de montar alguma peça dele, não posso mais. O personagem mais velho que ele tem é um pai, de Beijo no Asfalto, um homem de 50 anos no máximo.

O ator Robert De Niro engordou para fazer o papel de um boxeador decadente em Touro Indomável. Sobre isso você comentou como seria se ele tivesse de fazer o papel de um cego. Tudo depende de o público acreditar na caracterização do ator?
Era só usar um pequeno enchimento, não precisava engordar... Mas essa é uma maneira de encarar as coisas. Lembro-me de alguns professores de teatro que diziam que o ator só pode fazer personagens que estão dentro do seu âmbito cultural e do seu referencial. Acho que não. Se fosse assim, o ator brasileiro jamais poderia fazer um rei ou uma tragédia grega, coisas completamente fora do nosso referencial. O material do ator é a imaginação. É claro que inteligência, sensibilidade e cultura ampliam a imaginação, mas o ator é capaz de fazer um rei, um mendigo ou seja lá o que for.

Nesse sentido, como você vê um ator que, por exemplo, engorda vários quilos para fazer um personagem?
O que sinto? Pena. Coitado, teve de comer tanto e agora vai ter de fazer regime para emagrecer. Às vezes, vou ver o resultado e digo "olha, que bela interpretação". De Niro, que você citou, estava maravilhoso naquele filme.

Você presenciou vários momentos do teatro brasileiro, na verdade, a sua afirmação como indústria cultural. O que você acha dessa evolução, caminhamos para o quê?
Acho que o teatro brasileiro só evoluiu. Muitas pessoas dizem que não vão mais ao teatro depois do TBC, em geral, pessoas velhas e retrógradas. Temos feito e visto espetáculos do melhor nível possível; alguns vão ao exterior, fazem um sucesso incrível e ganham prêmios de todos os tipos. Eu não diria que a média do teatro brasileiro é tão alta quanto a do europeu ou norte-americano, mas temos capacidade para fazer um teatro igual ao melhor do mundo. Agora, qual será o caminho eu não sei. Quantas vezes vi grupos novos pesquisando a maneira brasileira de representar. Eu me lembro que na sua juventude, Augusto Boal dizia que só havia uma maneira de representar: a de Oscarito e a de Grande Otelo. Ou seja, ele estava condenando o ator brasileiro a ser cômico. Queria dizer que ele não poderia jamais fazer um drama ou uma tragédia porque a única maneira brasileira era a de Oscarito ou de Grande Otelo? Acredito que ele já não pense mais assim. Não adianta pesquisar qual é a maneira brasileira de representar, pois ela surgirá aos poucos. Quando o teatro brasileiro tiver uma tradição de muitos e muitos anos, uma prática constante, então poderemos falar em um estilo brasileiro como falamos em um estilo inglês ou francês. Por enquanto, não existe um estilo brasileiro.

Em nenhum sentido?
O próprio Arena, que começou com uma pesquisa sobre a dramaturgia e a maneira de representar brasileiras, acabou fazendo Molière. Eles procuraram ampliar sua capacidade com textos de outros países e, evidentemente, com novas formas de interpretação. A maneira brasileira de representar, digamos, peças caipiras, seria a maneira paulista interiorana; se for Suassuna, seria a maneira nordestina. Todas são absolutamente legítimas, mas não constituem um ideal a ser conquistado por toda a classe teatral brasileira. Acho que a nossa ambição deve ser maior. Deve ser, ao poucos e com qualidade, criar um estilo brasileiro. Só se poderá falar em estilo brasileiro de teatro daqui a 50 ou 100 anos.

E quanto às montagens? Nesse universo de tempo que você faz e freqüenta teatro, o que achou memorável?
Eu vou sempre ao teatro. Acho que dentre os atores profissionais do Brasil sou o que mais assiste teatro. Conversando com Sábato Magaldi, ele disse algo que eu também sinto. Ele disse: "Paulo, gosto até de ver mau teatro; mesmo quando sei que o espetáculo não é muito bom, gosto de ir e de ver". Eu sou assim também. Eu gosto de ver tudo. Agora, os que mais gostei? Chapeuzinho Vermelho, de Antunes Filho, é um espetáculo absolutamente inesquecível, lindo; As Lágrimas Amargas, de Petra Von Kant, com Fernanda Montenegro; Macunaíma, também de Antunes; muitos, muitos...

Há alguma coisa que você tenha deixado de fazer em teatro e que se arrependa, além de Nelson? Algo como "eu deveria ter feito Hamlet há dez anos"...
Nunca chegou a hora de eu fazer Hamlet, isso é engraçado. Quando comecei a me apaixonar totalmente por Shakespeare, já não tinha mais idade para fazer Hamlet. Eu me lembro de uma declaração de Lawrence Olivier, que fez Hamlet no cinema quando tinha mais de 40 anos. Ele disse que aprendemos como são os papéis dos jovens em Shakespeare apenas quando não temos mais idade para fazê-los. Na carreira de teatro, assim como na vida de qualquer pessoa, temos momentos de decisão. Quando temos sorte, escolhemos certo; quando não, escolhemos errado. A questão da escolha é muito importante. Numa ocasião, estava em minha casa e Cacilda Becker e Maurice Vaneau foram me procurar com um texto que queriam fazer comigo. Era Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?, um texto maravilhoso de Edward Albee. Eu disse a ela: "Por que você não faz com Walmor Chagas, que é seu marido?". Ela respondeu: "Paulo, é uma peça de briga de casal, é tanta briga que eu não quero brigar com ele". Eu tinha sido convidado por Flavio Rangel para fazer Liberdade, Liberdade, um texto que ele escreveu para mim - pelo menos foi o que ele me disse - e pelo qual eu estava apaixonado. Foi uma escolha. Liberdade, Liberdade, na minha carreira, foi um marco muito importante. Acho que escolhi certo.

Durante a ditadura cobrava-se muito dos atores, e artistas em geral, um engajamento político. Hoje, que vivemos em uma democracia, isso ficou em segundo plano. Contudo, você não acha que o teatro brasileiro atual está apenas comercial?
Não. Há vários grupos interessados em linguagens e textos novos, em pesquisas. Há de tudo no teatro brasileiro, o que mostra uma certa maturidade. Você abre as páginas de anúncios de teatro e vê espetáculos de todos os gêneros, de todos os tipos. Do mais comercial até o mais experimental possível. Sempre gostei muito de novas experiências.

Você acha que algum dos seus trabalhos em televisão superou ou se igualou em qualidade com os de teatro?
Eu só fiz três novelas, deixando um espaço de quatro anos entre uma e outra. Fiz Baldaracci, em Pai Herói; Bimbo, em Guerra dos Sexos; e Cissinho, em Sassaricando. Três débeis mentais. Cansei um pouco de fazer débeis mentais. Dez anos depois, aceitei uma participação numa minissérie porque me disseram que era um papel pequeno e que levaria no máximo três meses. A gravação durou seis meses, meio ano de Hilda Furacão. Foi uma minissérie de grande sucesso popular, e tive o prazer enorme de contracenar com Rodrigo Santoro, que é um ator maravilhoso. Vi Abril Despedaçado e fiquei deslumbrado com a interpretação dele. Vi também Bicho de Sete Cabeças. Aliás, eu havia indicado o Rodrigo para a Laís Bodanzky, a diretora. Ela me deu o script e perguntei quem faria o rapaz, o personagem principal. Ela disse que ia fazer testes. Eu falei para procurar o Rodrigo, que era bom e poderia fazer bem. Em todas as entrevistas, ela tem agradecido a indicação, deu muito prazer saber disso.