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Entrevista
Altamiro Carrilho

O flautista e compositor completa 60 anos de carreira

Aos 77 anos, com 60 de carreira completados em novembro passado, Altamiro Carrilho é mais um verbete e tanto de qualquer enciclopédia de música popular brasileira. Flautista, é um estilista à semelhança de seu mestre e amigo Benedito Lacerda; compositor, é autor de canções que fazem parte do imaginário musical brasileiro; instrumentista, tocou com alguns dos nomes capitais da MPB, de Pixinguinha a Jacob do Bandolim. Incansável, já gravou mais de 130 CDs, entre solos e participações especiais com outros artistas. Artista popular, também consagrou-se no erudito ao registrar vários clássicos em trabalhos de grande sucesso. Em entrevista exclusiva, pouco antes de uma apresentação no Sesc Belenzinho, Altamiro fala das origens do choro, de sua amizade e aprendizado com Benedito Lacerda e da importância do chorinho na música popular brasileira. A seguir, os principais trechos.

O senhor está completando 60 anos de carreira.
Há exatos 60 anos, eu entrei no estúdio da Odeon com Moreira da Silva, o velho Kid Morengueira, para gravar com ele. Fui escolhido pelo próprio. Toquei com o conjunto de Benedito Lacerda que já era meu ídolo e depois se tornou meu amigo. Na época eu trabalhava numa farmácia e estavam precisando de uma flauta para acompanhar o Moreira da Silva, ou um clarinete. E não encontravam nem uma coisa nem outra. Aí o dono do conjunto ouviu falar que numa farmácia ali perto tinha um garoto que tocava flauta. Eu tremi, disse que não era profissional e tal. Eles disseram "não, a gente ouviu dizer que você toca muito bem". Eu fui para o show que iria acontecer, sem ensaio. O Moreira falou "não posso gastar o gogó não, não tem ensaio". Eu ouvia muito rádio e sabia tocar todos os sucessos e o velho ouvido ajudou, toquei tudo. O Moreira olhava para trás e sorria. Quando acabou o show qual não foi minha surpresa quando ele bateu nas minhas costas e disse "meu filho, vais gravar comigo quarta-feira que vem". Era sábado. Eu disse "ah, seu Moreira, isso é demais". Mas ele disse que gostou da maneira que eu tinha tocado e queria que eu gravasse com ele. Eu fui e foi muito bom. A gente tem de ter coragem e apertar o gatilho. Se sair, saiu; se não, pelo menos a gente tentou.

O senhor viu o choro ser tirado da marginalidade e ser colocado no Municipal...
O choro já teve uma fase muito boa, dos anos de 1940 a 1950. Durante 20 anos o choro veio à tona com uma força relativamente boa. Mas não continuou porque veio logo a seguir um gênero de música americana com peso muito forte de dólar em cima, que foi o rock and roll, que ficou até hoje. Não teve jeito, nós lutamos muito, mas não deu. Eu digo nós me referindo também a Abel Ferreira, Lupércio Miranda, Waldir Azevedo, Jacob do Bandolin... Só gente de primeiríssima linha. Eles esmagavam a gente. Compravam os horários das rádios para tocar a música deles. Estão sempre ocupando mais espaço que nós. Agora, aconteceu uma coisa curiosa: a música deles ficou tão ruim a ponto de o próprio jovem brasileiro não querer ouvir mais. E quando eles tomaram conhecimento do chorinho, por meio de alguns abnegados daquela época - eu, Jacob e os demais que acabei de citar - eles viram que tinha coisa boa. Hoje em dia, qualquer show que você vá tem mais de 80% de jovens. É raro ver uma pessoa muito idosa assistindo. Isso mostra que eles já estavam querendo há muito tempo uma coisa melhor e isso não lhes era dado.

Se a gente fizesse uma genealogia do choro, da onde vem a maternidade e a paternidade do gênero?
O choro é uma mistura de músicas eruditas. Das sonatas de Bach, de Mozart, Beethoven, dessa gente toda. Agora, começaram a ensaiar um desenho musical de forma que pudesse ser identificada a música brasileira. Não havia nenhuma popular brasileira na época. Só se tocava música importada. Então se formou um pequeno grupo, liderado por Joaquim Antônio da Silva Calado, grande flautista e professor de música; Henrique Alves de Mesquita, um músico excepcional que aos 14 anos já tocava concerto para trompete com orquestra sinfônica e que teve de ir para a França porque não tinha campo para ele no Brasil; na mesma época surge Chiquinha Gonzaga, a primeira maestrina brasileira; surgiram também Viriato Figueira e outros músicos que estavam todos interessados em criar um ritmo típico brasileiro. O primeiro a se arriscar foi Henrique Alves de Mesquita, que compôs o lundu, um gênero que na linguagem africana chama-se lundum, mas abrasileiraram. Era um ritmo tocado acompanhado de tambores, mas havia ainda uma influência de várias habaneiras, incluindo a mais famosa delas, Carmem, de Bizet. O lundu tinha um acompanhamento rítmico da habaneira. E não era isso que o Calado queria, nem Chiquinha, nem o Mesquita. Assim, começaram a ensaiar outras coisas, outros ritmos, sempre baseados nos tambores dos negros, dos escravos - olha o detalhe. E como se sabe, Calado era mestiço: filho de escrava com senhor. A Chiquinha Gonzaga também, Henrique idem. Quase todos tinham sangue negro na veia e apreciavam muito a percussão. Até que Calado, escrevendo um lundu, resolveu colocar a parte rítmica de quatro semicolcheias para cada tempo. O choro é uma música de compasso binário por excelência. Pode-se escrevê-lo em qualquer outro compasso, mas ele nasceu com dois por quatro. Então, Calado, fazendo o ritmo com a própria mão - reproduzindo oito semicolcheias em dois tempos, no compasso binário -, fez surgir o ritmo do choro. Agora, era preciso encaixar uma melodia dentro dessa matemática. Na verdade, primeiro nasceu o ritmo, a base, depois veio a melodia.

O choro é uma música extremamente sofisticada. Logo, não tem como querer enganar: se o músico não for bom, não toca choro. Esse tipo de requisito ao mesmo tempo, digamos, não atrapalha a sua popularização?
Tem a ver. O choro é o seguinte: em primeiro lugar é uma música que dá oportunidade ao virtuose de mostrar tudo o que ele sabe. Você pode fazer variações sobre o tema do choro, porque existe um encadeamento lógico, bonito, bom e bem-feito. O choro é a música mais elaborada que existe. Mesmo com toda a bossa nova de Tom Jobim, o choro continua único. Ele tem um pouco de sonata, um pouco de sinfonia, um pouco de tudo... Isso para falar só em harmonia. Agora, e a melodia? Essa então favorece uma quantidade enorme de estilos. Nazareth veio com uma mentalidade dentro do choro, que ele chamava de tanguinho brasileiro. Ele nunca quis usar a palavra choro, porque dizia que lembrava coisa triste. Aí vem o poetinha Vinicius de Morais e chama o choro de chorinho, carinhosamente "ai, quem me dera esse chorinho...". Ou seja, já é uma forma carinhosa de tratar o gênero choro que alguns autores achavam muito forte e que determinava tristeza ou uma situação de angústia. Mas a gente chora de alegria também. O choro é isso, o choro é alegria, o choro requer muita virtuosidade. Você não pode tocar choro se não for um bom músico. Ou melhor, pode até tocar, mas mal-tocado. Ele requer muita sensibilidade, criatividade e bom gosto. Se você tocar um choro como Carinhoso e tocar, assim, pura e simplesmente, ah, meu amigo... não diz nada.

Sobre os arranjos. Por exemplo, você pega o chorinho e o compara com coisas mais recentes da música brasileira e percebe que além de ter uma rica melodia e harmonia, ele possui um cuidado grande com os arranjos. Isso o distingue do restante da música brasileira que, na maior parte das vezes, parece vir nua. O senhor sente isso?
Eu vou dar um exemplo que o saudoso Vinicius de Morais nos deixou: "que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental". Ou seja, a música que não é bonita por si, que não é inspirada, que não nasceu bonita dificilmente poderá se tornar mais bonita. Isso pode acontecer à custa de muito esforço, mas ela não te dá subsídios para isso. O problema é esse. Tom Jobim, por exemplo, um dos maiores gênios da composição, ao meu ver, fazia o seguinte: três acordes, primeiro ele buscava uma linha harmônica, para depois buscar a melódica. Garota de Ipanema é assim, ele foi vendo o que dava para embelezar aquela harmonia, depois vinha a melodia. A cama já estava arrumada, era só colocar a melodia em cima, tranqüilamente. E assim é com grandes autores do mundo inteiro. Eles pensavam primeiro na harmonia. Agora, havia também naquela época autores que eram essencialmente melodistas. A própria melodia já era tão bonita que mesmo mal harmonizada a coisa soava bem.

E o Pixinguinha nessa estrutura da qual o senhor está falando?
Ah, fantástico. Pixinguinha foi gênio duas vezes: gênio tocando flauta e gênio compondo. Ele usava uma linguagem diferente de todo o mundo. Ele fazia choro improvisando na roda, ele dava o tom e a coisa saía. Ao terminar a roda de choro é que ele escrevia. Tinha uma memória ótima, ele gravava todas as notas que ele improvisava. Pixinguinha lembrava um pouco Mozart, ele era muito rápido para compor e harmonizar. Certa vez, quando garoto, um professor tocou para ele um trecho de uma sinfonia de Beethoven. Ele ficou com aquilo na cabeça e depois de adulto compôs Ingênuo e Ainda me Recordo - que era o final de uma sinfonia. Ele guardava trechos de músicas na cabeça, mas sem fazer plágio. Ele aproveitava o espírito da frase musical.

Tem umas coisas do Pixinguinha que lembram mesmo Mozart.
Exatamente. Tem um choro do Pixinguinha que se chama Cuidado Colega - eu sei as músicas dele de cor, porque já toquei praticamente todas -, e sabe onde ele foi pegar uma frase bonita para essa música? Em Vivaldi. E é perfeito o intervalo. Aquilo é o inconsciente dele. Talvez ele nem soubesse de onde estaria vindo aquilo, agora ele sabia colocar no lugar certo. Ele era daqueles compositores que sabiam pegar um trechinho de uma música de outro compositor... Alguns fazem isso. Eu sou assim. Eu ouvi um sinal de chamada no aeroporto do Galeão, uma chamada para um vôo internacional, eu peguei as quatro notinhas, anotei num papel e dentro do avião escrevi um chorinho chamado Aeroporto Galeão. Quando cheguei no hotel em Fortaleza, o chorinho estava praticamente pronto. Só faltava o arremate. Na mesma noite eu toquei.

Quais pessoas ensinaram ao senhor alguma coisa?
Foram várias. Entre elas, cito um ao qual devo muito da minha carreira, o maestro Alceu Bochino. Esse homem é fantástico. Vive lá no Rio, está com mais de 80 anos, lúcido, está regendo ainda a orquestra. Ele me deu um incentivo muito grande. Eu tinha medo de tocar música erudita. Eu sabia que podia tocar, mas faltava me convencer disso. Aí ele chegou e disse "por que você não toca música erudita, garoto?". Eu falei para ele que era um flautista de choro, um músico popular. Ele rebateu me dizendo que eu tinha uma maneira de pronunciar a nota como se fosse um flautista erudito. Aí ele me convidou para ir a casa dele ensaiar algumas coisas. Eu nunca iria recusar um convite daqueles e fui. Chegando lá, ele pegou um concerto de Mozart e disse para gente tocar. Eu toquei e ele disse "está perfeito". Aí ele me deu aquela injeção de ânimo. Foi quando eu comecei a tocar sonatas de Bach e alguma coisa de Beethoven, cheguei até a fazer dois CDs de clássicos em choro.

E quem mais o influenciou?
Pixinguinha, Lupércio Miranda - grande bandolinista, Jacob do Bandolim e Benedito Lacerda. Além deles, Dante Santoro e Patápio Silva - embora não tenha convivido com ele, porque quando eu nasci ele tinha morrido. Mas Pixinguinha eu tive o prazer...

Tocou com ele?
Cheguei a gravar com ele. Só que ele não queria gravar de jeito nenhum. Quando chegaram com o instrumento ele disse "só vou tocar porque é com o Carrilho". Mas nessa época quem estava no apogeu era Benedito Lacerda. Ele gravava em todas as partes, acompanhando todos os cantores, fez dupla com o Pixinguinha. Outro que me influenciou muito foi Dante Santoro, um flautista gaúcho que morava no Rio de Janeiro e que tinha um estilo muito particular, muito dele, muito especial. Ele tinha um estilo alemão, assim, digamos, bem matemático. Mas tocava bonito, tinha uma sonoridade muito bela que superava aquela certa falta de balanço.

O que o senhor acha que o Benedito Lacerda tinha de bom?
O estilo que ele criou. Eu adoro estilistas, seja de moda, cabeleireiros... Criou uma coisa nova, para mim, o sujeito tem valor. E o Benedito criou uma maneira de tocar flauta, que todos os flautistas pós-Benedito procuraram se aproximar dele. E eu, talvez, tenha sido o que melhor aproveitou esse ensinamento. Eu convivi com ele, eu ia à casa dele, tocava flauta com ele. Ele criou uma maneira de tocar flauta mais leve que os outros, eram notas mais curtas e com mais graça e brilho. E com Jacob do Bandolim eu também aprendi muito e por que não dizer que o próprio Jacob aprendeu com Benedito também. Waldir Azevedo também me ensinou bastante.