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Saídas para o sufoco

 


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São Paulo procura alternativas para melhorar a qualidade do ar

ROBERTO HOMEM DE MELLO

Em março, São Paulo assumiu a presidência temporária da seção latino-americana da Iniciativa do Ar Limpo, um programa que envolve o Banco Mundial e as autoridades das maiores áreas urbanas do planeta que enfrentam problemas com a qualidade do ar. A seção latino-americana do programa é uma das mais importantes, pois abrange, entre outras, três das metrópoles mais poluídas do mundo: São Paulo, Santiago do Chile e Cidade do México. Na presidência, a capital paulista terá de dar exemplo. Em termos de conhecimento, a cidade não faz feio. Há muitos anos coleta dados diários sobre a qualidade do ar e conta com um laboratório especializado no assunto e estudiosos com reputação internacional. São eles mesmos que alertam: é preciso agir com urgência para oferecer um ar mais limpo à população, pois a poluição é muito mais prejudicial à saúde do que se imagina.

Quem entra no Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) não pode deixar de notar, ao lado das bancadas com poderosos microscópios e computadores de última geração, uma bicicleta encostada à parede. Pendurado no guidão, um capacete com o distintivo do Corinthians. Seu dono é um típico paulistano: sotaque carregado, gestos vivos e linguagem enfática, chama a todos de "professor".

Coordenador do laboratório, Paulo Saldiva recebeu seu nome em homenagem à cidade que completava, no ano de seu nascimento, 400 anos. Hoje, se dedica a estudar – e combater – um dos maiores problemas da metrópole que ele ama incondicionalmente: a poluição do ar. "Não dizem que todo psiquiatra é louco? Pois bem, eu sou asmático e cismei de pesquisar poluição", brinca.

Se um pesquisador que há mais de 20 anos estuda os efeitos da poluição na saúde humana resolve enfrentar diariamente algumas das vias mais movimentadas de São Paulo com uma bicicleta, é difícil não tomar esse gesto como um recado bem claro: a cidade precisa urgentemente de menos fumaça.

De fato, o laboratório coordenado por Saldiva tem produzido cada vez mais evidências científicas dos riscos presentes no ar que os paulistanos inalam. E, com isso, tem trazido contribuições importantes para o conhecimento internacional sobre a questão. Se hoje é senso comum que o álcool (etanol) polui menos que a gasolina, essa constatação surgiu de experiências realizadas na instituição, nos anos 80. Depois desse trabalho, um dos primeiros realizados pelo laboratório, o foco passou a ser os efeitos dos poluentes na saúde humana. "Fomos o grupo pioneiro no mundo a mostrar que a poluição mata crianças e causa abortamentos, e um dos primeiros a comprovar que é fatal para idosos", diz Saldiva.

Marronzinhos

Outro estudo, realizado por Ubiratan de Paula Santos com a participação do laboratório, demonstrou que também os adultos saudáveis sofrem alterações cardiovasculares associadas à poluição. Durante meses, funcionários da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), conhecidos como "marronzinhos", que monitoram o trânsito da cidade, foram periodicamente examinados durante o horário de trabalho. Conclusão: os períodos de maior poluição causam arritmia, aumento da pressão arterial e alterações na coagulabilidade do sangue.

Saldiva observa que os "marronzinhos" são pessoas que, pela natureza do seu trabalho, precisam ter um condicionamento físico acima da média. Se a poluição também os afeta de modo tão identificável, "então isso está acontecendo com todos", diz ele.

O pesquisador cita ainda um estudo da arquiteta Maria Cristina Haddad Martins, que mostrou que a pobreza é mais um fator de risco. Comparando regiões paulistanas com perfil socioeconômico bem distinto, ela comprovou que, para a mesma elevação do nível de determinado poluente, havia um crescimento maior do número de internações de idosos nas regiões mais pobres. Se isso ocorre devido à dificuldade de acesso a serviços de saúde, a carências nutricionais ou a outros motivos, é uma questão para investigações futuras. O que ficou demonstrado é que as classes menos favorecidas estão mais sujeitas a sofrer os efeitos da poluição.

Mortes evitáveis

O estudo de Haddad Martins foi publicado no periódico especializado "Journal of Epidemiology and Community Health" em janeiro deste ano. Mais que isso, foi destacado no editorial da publicação, juntamente com outro trabalho brasileiro, que mostra a relação entre a poluição e o baixo peso ao nascer: quanto mais exposta a altas concentrações de poluentes durante os três primeiros meses de gestação, prova a pesquisa, maiores as chances de a mãe dar à luz um bebê com peso abaixo do que seria esperado. Um dos autores é o epidemiologista Nélson Gouveia, pesquisador do departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina da USP.

Em 2001, outro estudo com participação de Gouveia já havia sido publicado na respeitada revista "Science". A partir do cruzamento de dados de internações com os da qualidade do ar, os autores faziam uma projeção impressionante: com medidas que reduzissem a poluição em apenas 10%, seriam evitadas 64 mil mortes prematuras (incluindo óbitos infantis), 65 mil casos de bronquite crônica e 37 milhões de dias/pessoa de atividade prejudicada ou faltas no trabalho em São Paulo, Santiago do Chile, Cidade do México e Nova York de 2001 até 2020. "Quisemos mostrar que, além dos benefícios de longo prazo obtidos, por exemplo, com a redução do efeito estufa, a diminuição da poluição traz um ganho imediato para a saúde pública", diz Gouveia. A conclusão do estudo não poderia ser mais direta: "A cada dia que políticas de redução das emissões de combustíveis fósseis são adiadas, aumenta o número de mortes e de doenças relacionadas à poluição do ar".

E que políticas seriam essas? Gouveia as entende como algo necessariamente bem abrangente. "Não há uma solução única." Um fator que ele faz questão de destacar é a conscientização individual. "É importante pensar que estamos poluindo e, por exemplo, usar menos o carro", afirma o pesquisador. Mas a receita principal é a que todos já conhecem: investimento maciço em transporte público.

Menos ruim

O que nem todo mundo sabe é que São Paulo já foi muito mais poluída. Graças a uma série de medidas e à elogiada atuação da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), que diariamente monitora a qualidade do ar e fiscaliza o cumprimento da legislação sobre o assunto, a maioria dos poluentes tem apresentado curvas declinantes ao longo dos anos.

Mas não há motivo para relaxar. "O poluente em pior situação é que determina a qualidade do ar", explica o químico Jesuíno Romano, gerente da divisão de tecnologia de avaliação da qualidade do ar do órgão ambiental estadual. Ou seja, se em determinado lugar há apenas uma substância em quantidade imprópria, isso já é suficiente para considerar aquele local poluído.

Norteados por critérios rígidos como esse, os técnicos da Cetesb visitam indústrias e examinam nas ruas a fumaça dos caminhões e ônibus, com poder de multar. Segundo Jesuíno, esses trabalhos se refletem nos níveis de poluição – como a multa é cara, de 1995 a 2002 o índice de veículos pesados desregulados caiu de 45% para 5,8%. "O ano de 2002 foi o primeiro em que não houve nenhuma ultrapassagem do padrão diário da fumaça preta", ressalta ele.

A Cetesb também presta assessoria técnica ao desenvolvimento de tecnologias menos poluidoras. Foi assim com o Programa de Controle da Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve), iniciativa federal que levou à produção de carros que, hoje, poluem até 98% menos que os fabricados em 1985, com reflexos claros na qualidade do ar.

Motos

O problema é que esse efeito já parece estar esgotado. A cada dia, aumenta a proporção de carros menos poluidores, mas, como a frota não pára de crescer, um fator anula o outro. Para prosseguir melhorando o ar, é preciso tocar em outras variáveis. O relatório de qualidade ambiental no estado de São Paulo de 2002 trouxe uma novidade preocupante: as motocicletas, mesmo em número bem mais reduzido, já têm participação expressiva na poluição da cidade, menor que a dos veículos pesados e dos carros a gasolina, mas maior que a dos movidos a álcool. Isso porque, individualmente, uma moto polui muito mais que um automóvel. Como a frota de motocicletas é a que mais cresce – aumentou 60% de 1998 a 2002 –, o efeito geral já é significativo.

Um problema como esse apresenta também uma oportunidade de aperfeiçoar dispositivos que possibilitem diminuir a degradação da qualidade do ar. Para isso, desde 2003 começou a vigorar o Programa de Controle da Poluição do Ar por Motociclos e Veículos Similares (Promot), que segue a trilha do Proconve, com metas graduais de redução dos poluentes emitidos pelas motocicletas novas.

Outra frente que concentra esforços da Cetesb é a tecnologia dos combustíveis. Já houve muitos avanços nesse campo, como a mistura do álcool (menos poluente) à gasolina e a retirada do chumbo da gasolina e do diesel. Agora, a Cetesb propõe à Agência Nacional do Petróleo (ANP) uma redução gradual dos compostos olefínicos, componentes que contribuem para a formação de ozônio, o poluente que hoje em dia causa maiores preocupações no Brasil e no mundo (ver texto abaixo). Em 2002, só na região metropolitana de São Paulo, ele ultrapassou os limites legais em 82 dias, mais de um quinto do ano.

Operação gigantesca

No âmbito da prefeitura, 2005 será o primeiro ano da inspeção veicular de caráter ambiental, prevista no código de trânsito. Para poder licenciar seu carro em 2006, cada proprietário terá de comprovar que ele foi vistoriado. O objetivo é só ter em circulação veículos de acordo com os padrões ambientais da legislação. Com essa iniciativa, a prefeitura espera melhorar a qualidade do ar em até 30%, como ocorreu em outras cidades do mundo.

O problema é que se trata de uma operação de proporções gigantescas, pois há na cidade mais de 5 milhões de veículos, o que tornará muito difícil não ocorrerem grandes filas e transtornos. "Teremos de mostrar à população que a inspeção é importantíssima para a saúde, para a cidadania", diz Adriano Diogo, secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente.

Ele lembra que grande parte da frota é formada por carros antigos, muitos deles "ressuscitados" por famílias que precisavam de uma alternativa para os dias do rodízio municipal. "Metade dos automóveis não tem catalisador", afirma Manoel Paulo de Toledo, gerente do departamento de tecnologia de emissões da Cetesb. Fica a dúvida: o que farão aqueles que não têm dinheiro para tornar o veículo menos poluidor?

Prova dos noves

Adriano Diogo admite que a instituição da inspeção veicular será uma espécie de "prova dos noves" para os planos da secretaria, num momento em que a cidade e seus problemas estão em grande evidência. No ano em que completa 450 anos, São Paulo assumiu a presidência temporária da Iniciativa do Ar Limpo para a América Latina, um programa de troca internacional de experiências apoiado pelo Banco Mundial. A cerimônia de transmissão do posto, que foi ocupado por Santiago do Chile durante os últimos três anos, aconteceu em março, na capital chilena.

O primeiro evento que o município promoverá na condição de presidente será uma conferência internacional na primeira quinzena de julho, que privilegiará o tema dos efeitos da poluição na saúde. Como se viu no início desta reportagem, essa é uma área em que São Paulo dispõe de bastante conhecimento acumulado, que, espera-se, seja colocado em prática para que se consiga uma redução efetiva das emissões de poluentes.

Créditos de carbono

Nesse contexto, as boas iniciativas podem receber um estímulo considerável. Leia-se dólares, euros, enfim, recursos externos, graças ao Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), um dos itens previstos no Protocolo de Kyoto, documento que resultou da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Nesse encontro, realizado em Kyoto, no Japão, em 1997, representantes de países do mundo todo estabeleceram um cronograma de metas de redução na emissão dos gases formadores do efeito estufa, fenômeno que se tornou uma das maiores preocupações ambientais da atualidade.

O nome é quase auto-explicativo: certos gases, sobretudo os compostos de carbono, formam uma espécie de estufa que retém o calor da irradiação solar. O curioso é que, se hoje é tratado como vilão, o efeito estufa foi fundamental para criar condições para o estabelecimento da vida na Terra. Sem ele, o planeta seria frio e inóspito. Mas sua má fama atual não é infundada. A persistir a tendência de intensificação do fenômeno, há o risco do aquecimento global, com conseqüências desastrosas para o ambiente, como epidemias, enchentes e grandes desequilíbrios ecológicos.

Diante desse quadro, o protocolo (que para entrar em vigor ainda depende pelo menos da assinatura da Rússia) prevê o MDL. Por esse mecanismo, países por algum motivo impossibilitados de alcançar suas metas poderão compensar essa sua "dívida" financiando programas em outras nações. Sob a condição, óbvia, de que o resultado seja, de fato, a redução da emissão de gases do efeito estufa.

Trocando em miúdos, para cumprir sua parte, países poluidores poderão "comprar" um pouco da despoluição realizada em território alheio. Isso se dará pela aquisição de créditos de carbono, representados por documentos chamados certificados de redução de emissão.

O MDL já está gerando negócios internacionais, mesmo antes de o protocolo ter validade. Estima-se que em 2004 esse mercado já deve fazer circular recursos da ordem de 400 milhões de euros.

A prefeitura de São Paulo está de olho numa fatia desse bolo. Com a consultoria da advogada Flávia Frangetto, especializada no assunto, a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente já prepara a documentação necessária para inscrever algumas de suas iniciativas ambientais no MDL e em outros mecanismos de captação de recursos internacionais.

Energia do lixo

Um dos projetos da prefeitura que podem ser beneficiados pelo MDL é a usina termoelétrica de biogás inaugurada em janeiro no Aterro Sanitário Bandeirantes, na zona noroeste de São Paulo. A cada dia, o aterro recebe 7 mil toneladas de lixo, que se somam aos mais de 30 milhões de toneladas já acumulados. Para dar uma idéia da poluição produzida no local, estima-se que entre 10% e 20% do volume dos gases do efeito estufa do planeta tenham origem na decomposição de lixo. Esse processo gera o metano (CH4), altamente poluente, que, ao entrar em contato com o ar, produz outro gás tóxico, o monóxido de carbono. Com a usina, o gás abundante no aterro será aproveitado para gerar energia elétrica, mediante um processo de combustão que expelirá na atmosfera, em vez do metano, o dióxido de carbono (CO2), cerca de 12 vezes menos poluente.

O projeto é resultado de uma parceria com a iniciativa privada, que arcou com praticamente todos os custos. O Unibanco, principal financiador, com R$ 48 milhões, terá desconto equivalente no consumo elétrico de suas agências. A concessionária Biogás, com investimentos de R$ 12 milhões, explorará a usina durante 15 anos e venderá a energia produzida à distribuidora AES Eletropaulo. Além disso, tem direito, por contrato, a receber metade da futura compensação financeira dos créditos de carbono.

O governo municipal é um dos maiores beneficiados. Se de fato vierem, os créditos de carbono serão puro lucro, pois praticamente nenhum centavo saiu dos cofres municipais. A prefeitura se livra de uma parte considerável da dor de cabeça ambiental representada pelo aterro, melhora a qualidade do ar e ainda ganha dinheiro para investir na cidade.

Por enquanto, a usina ainda não está funcionando a pleno vapor. Se, na prática, vier a produzir todos os benefícios previstos, é uma iniciativa a ser multiplicada no país. Lixo não falta, muito menos o desejo de respirar um ar melhor.


Vilão ou mocinho?

Mais conhecido até hoje por filtrar os nocivos raios ultravioleta da luz solar que penetram na atmosfera, o ozônio, na verdade, só é "mocinho" de longe. De perto, é mais um vilão ambiental, que prejudica a saúde e afeta até mesmo as plantas. Nos Estados Unidos, calcula-se que provoque prejuízos anuais de até US$ 3 bilhões, devido à perda de produtividade de grãos.

O ozônio resulta de uma reação fotoquímica entre dois grupos de poluentes primários, os hidrocarbonetos e o óxido de nitrogênio, na presença da luz solar. Por se formar nessas condições, suas maiores concentrações não ocorrem no inverno, como acontece com os demais poluentes, mas na primavera, quando os dias costumam ser quentes e secos.

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