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Correção de rumo

 


Morador do Serra Dourada / Divulgação

Como transformar assentamentos em espaços produtivos e pacíficos?

HERBERT CARVALHO

A cidade de Goiás, a 130 quilômetros de Goiânia, também conhecida como Goiás Velho, não é apenas a antiga capital do estado de Goiás, declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, em virtude de suas igrejas e monumentos setecentistas, que remontam à descoberta de ouro na região pelos bandeirantes na década de 1720.

Em sua zona rural, às margens do rio Vermelho, cantado pela poetisa Cora Coralina, e no sopé da serra Dourada, abriga-se o maior número de projetos de reforma agrária (21) em um único município.

Estão também entre esses projetos os mais antigos do país, que datam da época em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) – hoje com 20 anos – apenas engatinhava, embora a luta pela terra já existisse, encampada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Consideradas o braço agrário da Igreja Católica, as CPTs encontraram seu grande incentivador em dom Tomás Balduíno, que no início dos anos 1980 era o bispo da prelazia de Goiás.

Ignorada durante as duas décadas da ditadura militar, em que pese a vigência do Estatuto da Terra, a questão da reforma agrária chegou a ser uma das causas da deposição do presidente João Goulart, em 1964. Emergiu com força no período de redemocratização do país, levando o presidente José Sarney, em 1985, a criar o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário. Desde então, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) passou a ser o órgão incumbido de encontrar áreas públicas ou privadas em que possam ser assentadas as famílias acampadas por todo o país, à espera de um pedaço de terra.

Para fazer um balanço da situação dos assentamentos no município de Goiás, a reportagem de Problemas Brasileiros visitou o mais antigo deles, o Projeto de Assentamento (PA) Mosquito, de 1986. E também o mais recente, o PA Serra Dourada, de 2000.

A comparação entre os dois mostra que o êxito da reforma agrária no Brasil depende de fatores técnicos (assessoria qualificada, implementos, qualidade da terra e das sementes) e econômicos (principalmente crédito), que se colocam objetivamente como obstáculos entre o sonho do acampado e a dura vida do trabalhador assentado.

Terra à venda

O PA Mosquito chegou a seus 18 anos em estado de decrepitude precoce. Perdeu nove das 41 famílias que inicialmente dividiram os quase 1,8 mil hectares de terra, quando coube a cada uma lotes que variavam entre 5 e 11 alqueires goianos (1 alqueire goiano equivale a 4,84 hectares). Os lotes menores são formados pelas melhores terras, e as piores áreas compõem os maiores, como forma de compensação.

Há três casos comprovados de venda de lotes, embora essa prática seja expressamente proibida pelas regras da reforma agrária. Esses terrenos foram transformados em sítios e casas de campo para moradores das cidades próximas.

Eliel Nunes Pinto, de 26 anos, auxiliar técnico em agropecuária e responsável pela contabilidade da cooperativa que gere as atividades do PA Mosquito, era apenas uma criança quando seu pai veio de Patos de Minas em busca de um pedaço de terra. Ele conta: "No início plantávamos arroz, feijão e milho. Mas o solo era ruim e não tínhamos nenhum tipo de orientação técnica. Tentamos até criar algumas cabeças de gado. O crédito era difícil e, quando saía, acabava desviado para as necessidades mais prementes das famílias, em vez de ser aplicado na compra de sementes, fertilizantes ou implementos agrícolas. O desânimo começou a tomar conta da gente e não havia mais aquela união, aqueles ideais dos tempos da luta".

As mulheres, entretanto, não desanimaram. Formaram uma associação, que evoluiu para se transformar em cooperativa de leite, que comercializa o produto obtido das poucas vacas que cada família cria e, com o resultado, mantém um mercadinho para atender às necessidades básicas dos assentados. O empreendimento emprega apenas cinco pessoas. Uma tentativa de fabricar queijo não vingou, pois a qualidade e o preço do produto não permitiam enfrentar a concorrência do agronegócio, estabelecido nas propriedades privadas produtivas.

"Hoje só continuam no assentamento as pessoas idosas e aposentadas, além dos cinco funcionários da cooperativa", continua Eliel. "Muitos jovens foram trabalhar nas cidades, e outros, como dois irmãos meus, estão acampados à espera de outras terras."

O agricultor mora no terreno pertencente ao pai, em um barraco construído por ele mesmo. Tem dois filhos, que junto com outras crianças do assentamento tomam diariamente o ônibus da prefeitura para freqüentar uma escola municipal. Essa melhoria recente e outras, como visitas de agentes de saúde, são grandes avanços para uma comunidade que, até há bem pouco tempo, não tinha mais que um ranchinho de palha como escola. E para conseguir assistência médica a única opção era uma caminhada de 10 quilômetros.

Quem passa pela estrada ao longo do assentamento não pode deixar de notar grandes chiqueiros vazios. É o que sobrou de outro sonho, a suinocultura. Foi assim, de acordo com Eliel: "Contamos com um financiamento do Banco do Brasil e compramos 113 matrizes para dar início ao projeto. A ração deveria ser o milho e a soja que plantávamos aqui mesmo, mas nossa produção não atendia às necessidades de consumo. Tínhamos de adquirir os insumos fora, mas não havia capital de giro para isso, já que o dinheiro tinha sido suficiente apenas para comprar as matrizes, construir os chiqueiros e mais nada. Tivemos de vender leitão com 60 dias para outros engordarem. Conseguimos até nove sócios, com 20 porcos cada um, mas o negócio era deficitário e acabamos nos desfazendo de tudo. Foi um fiasco".

Quanto à venda da terra, Eliel confirma que isso acontece. "Por configurarem uma ilegalidade, a associação dos assentados foi contrária a essas transações, mas elas ocorreram assim mesmo", diz este líder da segunda geração de assentados da reforma agrária. E conclui: "Meu pai, que não tinha um braço, fez um buraco no cabo da enxada para apoiar o coto e lavrar a terra. Mas, hoje, tudo o que os jovens querem é ir embora daqui".

O PA Mosquito não chega a representar a favelização do campo apregoada pelos adversários da reforma agrária, mas está longe de ser uma eficiente forma de organização de trabalho agrícola. Aliás, para o prefeito do município, Boadyr Veloso, os assentamentos são uma grande dor de cabeça: "Não geram um centavo de imposto para o município, mas demandam todo tipo de serviço público", diz o político.

Propriedade coletiva

No mais recente assentamento da reforma agrária em Goiás Velho, entretanto, tudo é diferente. Até o apoio da Igreja é menos retórico e mais objetivo: o PA Serra Dourada, constituído de apenas 15 famílias, espera receber em breve um trator, prometido pelo Vaticano, graças à intermediação do bispo belga dom Eugênio Rixen, substituto de dom Tomás Balduíno.

A principal liderança do PA, o lavrador José Osmar Nunes Marques, de 52 anos, integrante da CPT desde 1975, conta porque esse assentamento vem sendo considerado uma experiência piloto. "Em primeiro lugar, os 237 hectares constituem uma área comum de todos. Cada família só tem a casa em que mora. A terra cultivada e os implementos são de propriedade coletiva. Assim, se alguém quiser nos deixar e vender sua parte, vai vender no máximo a própria casa", explica ele. Na verdade, a propriedade coletiva e a tecnologia estão na base de outro projeto de cooperativa agrícola inicialmente bem-sucedido, os kibutzim, de Israel, hoje em franca decadência.

O apoio técnico é outra característica do Serra Dourada, que se orgulha de não utilizar sementes transgênicas e de colher entre 50 e 70 sacas de grãos por hectare nas lavouras de milho e arroz. "Temos uma boa produtividade, sem pagar nada para a Monsanto", orgulha-se José Osmar. A terra do Serra Dourada, distribuída dos dois lados do rio Vermelho, nas proximidades da Rodovia GO-70, que liga Goiânia a Aruanã, é vermelha, de qualidade superior à dos primeiros assentamentos. Pertencia à União, que a havia cedido em comodato a uma loja maçônica, que ali deveria instalar um asilo para menores. Esse projeto não vingou, e a terra entrou no programa de reforma agrária. O assentamento fica na área em que o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva ergueu, no século 18, o arraial do Ferreiro para o garimpo de ouro, e onde ainda hoje se encontra uma igreja colonial.

O PA Serra Dourada tem financiamento de US$ 25 mil do Programa de Pequenos Projetos (PPP) do Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF – Global Environment Facility) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O PPP é coordenado no Brasil pela ONG socioambientalista Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). O limite de crédito concedido por projeto é de US$ 30 mil dólares. A assistência técnica permanente ao assentamento é dada pela CPT. O governo do estado de Goiás, comandado pelo governador Marconi Perillo (PSDB), financiou o reflorestamento.

O zootecnista Luís Roberto Carrazza, assessor de projetos socioambientais do ISPN no cerrado, é o responsável técnico pela hortipiscicultura ecológica do PA Serra Dourada. Esse projeto constitui "um sistema integrado de produção ecológica de hortaliças e peixes, em que estes são alimentados com ração feita no próprio assentamento, à base de frutos extraídos de áreas preservadas de cerrado, como jatobá, baru, jenipapo e goiaba. A ração tem ainda em sua composição milho, mandioca e abóbora, cultivados no assentamento sem utilização de adubos químicos e defensivos agrícolas", diz Carrazza. Ele explica que nesse sistema a água dos tanques de criação é usada para irrigar uma horta orgânica, evitando-se o desperdício e promovendo o aproveitamento dos resíduos dos peixes como adubo. O projeto prevê ainda a instalação de um miniabatedouro, para processar e defumar peixes, uma forma de agregar valor à produção. Essa derivação agroindustrial, que usará como apelo de marketing o produto ecológico, é outra inovação importante.

Faz também parte do projeto a recuperação da mata ciliar, para prevenir enchentes do rio Vermelho, como a que submergiu o centro histórico da cidade de Goiás em 2001. Em parceria com o governo estadual, realizou-se o plantio de diversas mudas nativas do cerrado ao longo da parte do rio que corta o assentamento.

José Osmar revela que os sonhos, entretanto, não param aí: "A longo prazo pensamos em manter um hotel-fazenda, que teria como atrativo a culinária à base de animais silvestres, como o catetu ou queixada, um porco-do-mato cuja carne, semelhante à do javali, é muito saborosa". Não é só do exterior que vêm os recursos do Serra Dourada. Enquanto o trator doado pelo Vaticano não chega, os assentados alugam um equipamento com verbas obtidas do Banco do Brasil. "Podemos tirar financiamento novo mesmo antes de começar a pagar o antigo, e o Banco do Brasil instituiu um cadastro dos nossos bens, que permite ampliar o limite de crédito", conta o lavrador.

Novos parâmetros

O PA Serra Dourada, apoiado no tripé tecnologia, ecologia e crédito e aliado à nova expressão jurídica da posse da terra – a propriedade coletiva ou comunitária –, representa a transição de uma reforma agrária vista apenas como mecanismo de descompressão social para um modelo mais condizente com a realidade. "Não existe política agrária sem política agrícola", sustentou o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, por ocasião do lançamento do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), em novembro de 2003.

A idéia é ver os assentamentos produzindo alimentos para o mercado interno e contribuindo para assegurar o abastecimento das famílias cadastradas nos programas sociais do governo federal. É também fazer a renda circular no meio rural, ampliar a base de consumidores e fomentar a produção "de baixo para cima", gerando mais empregos na indústria e no comércio. "A agenda que desejamos é a da produção. Sabemos que o plano é um processo e não a repetição de experiências que não deram certo. As metas são ações concretas", assegurou Rossetto.

Paralelamente, o governo pretende promover a titulação conjunta das propriedades e apoiar projetos produtivos protagonizados por mulheres. Serão feitos ainda o reconhecimento, a demarcação e a titulação das áreas de comunidades quilombolas.

Balizados por tais princípios, os responsáveis pelo PNRA prevêem um salto dos 30 mil assentamentos efetuados em 2003 para 115 mil em 2004. Outras 115 mil famílias seriam assentadas em 2005 e 140 mil em 2006, quando então se completariam as 400 mil famílias previstas para o quadriênio.

Haverá dinheiro para isso? O governo garante que sim, mas para cumprir a meta pretende, entre outras providências, mudar também a remuneração dos Títulos da Dívida Agrária (TDAs), atualmente corrigidos pela taxa referencial (TR) mais 6% ao ano, pois, segundo o ministro Rossetto, "não é razoável que uma terra que não cumpra sua função social tenha um ganho inflacionário".

 

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