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Teonília de Jesus: solução por consenso /
Foto: Leonardo Sakamoto

Projetos comunitários tornam soluções de conflitos e decisões judiciais mais acessíveis à população carente

LEONARDO SAKAMOTO

Apesar de o acesso universal à Justiça estar garantido na Constituição, na prática grande parte dos brasileiros não recorre ao Poder Judiciário para resolver seus problemas. Isso acontece porque há um descrédito quanto à capacidade da instituição de dar uma solução satisfatória e rápida à demanda da população, ou ainda porque o acesso a ela é considerado muito complicado para os leigos. O povo acaba empurrando para debaixo do tapete o problema junto com sua cidadania ou, em casos extremos, tenta resolvê-lo por conta própria, algumas vezes utilizando-se até de violência. Dessa forma, passa-se a imagem de que o direito à Justiça institucional está restrito às parcelas mais ricas da população – impressão que também se manifesta em relação ao direito à saúde, à educação, à habitação, à qualidade de vida.

Além disso, quando o Estado está ausente de uma área, abre-se espaço para outros atores preencherem o vazio deixado. Em locais da periferia da cidade de São Paulo ou das favelas e subúrbios cariocas, organizações criminosas como o Comando Vermelho se autoproclamaram juízes das comunidades e resolvem conflitos – é claro, tudo regido por um código de ética do marginal.

Para tentar mudar esse quadro, projetos de justiça comunitária têm sido implantados em todo o Brasil, com bons resultados, por organizações não-governamentais, instituições de ensino e Tribunais de Justiça, entre outros. Muitos têm o apoio financeiro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), órgão com status de ministério ligado à presidência da República.

A idéia principal é simples: estimular a comunidade a buscar os melhores caminhos para resolver seus conflitos por meio do diálogo, conduzido por "agentes de cidadania" – normalmente lideranças locais e moradores respeitados ou engajados em projetos sociais e previamente formados para exercer esse papel. O trabalho deles é parecido com o dos agentes de saúde, e sua atuação se dá tanto no campo da prevenção – com um serviço de orientação jurídica para conscientizar a população de seus direitos e deveres – quanto na solução de conflitos. Os mediadores não proferem sentenças nem dizem quem está certo ou errado. O objetivo não é reproduzir uma situação de julgamento, mas, sim, proporcionar um espaço para que as partes envolvidas encontrem por si mesmas um acordo mutuamente aceitável, através de perguntas, pedidos de explicação e muita conversa.

Em Salvador (BA), a organização não-governamental Juspopulis é responsável por quatro escritórios de mediação em Calabar, Engenho Velho da Federação, Fazenda Grande do Retiro e Palestina, comunidades carentes da cidade, que registraram 1.757 atendimentos em 2003. "Alguns bairros não tinham acesso à Justiça nem a nenhum outro tipo de serviço estatal", lembra Vera Leonelli, coordenadora do projeto. Ela também é responsável por 14 unidades do Balcão de Justiça e Cidadania, que oferece mediação popular, implantado pelo Tribunal de Justiça do estado em parceria com as Faculdades Jorge Amado.

No Rio Grande do Sul, há a atuação das Promotoras Legais Populares – projeto precursor no campo da mediação popular. A organização Viva Rio, nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, o Centro Popular de Mediação, em Olinda (PE), e o Tribunal de Justiça do Acre também desenvolvem projetos com o mesmo propósito.

Outro trabalho que vem colhendo bons frutos é o Projeto Justiça Comunitária, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), em convênio com a SEDH, e em parceria com órgãos como o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil. De acordo com Marcelo Girade Corrêa, secretário executivo do programa, foram atendidos cerca de 900 casos, além de mais de 4 mil pedidos de orientação, desde o início de seu funcionamento em 2001. Há escritórios nas cidades-satélite de Ceilândia e Taguatinga.

Clientes da Justiça

Durante cinco meses, a família de uma freguesa utilizou os serviços do modesto salão de beleza de Teonília de Jesus, em Taguatinga, sempre pendurando a conta. Em pequenos negócios espalhados por regiões carentes, a prática de vender fiado é fundamental para a sobrevivência – uma vez que o salário dos trabalhadores nunca dura todo o mês. A desculpa para o não pagamento da dívida – que já somava mais de R$ 800 – era sempre a mesma, que o marido não tinha dinheiro. Cansada e sem muitas perspectivas de receber, a cabeleireira procurou o escritório do Projeto Justiça Comunitária de sua cidade e apresentou o caso. Um agente de cidadania entrou em contato com a devedora, explicou como funcionava a mediação e foi marcada uma data para a reunião entre as partes.

Chegou-se, por fim, a um consenso: como a freguesa não tinha como dispor de toda a quantia à vista, a conta foi parcelada em 25 vezes de R$ 51 – já aplicada uma tabela de correção de valor. "Desde então, ela tem feito o pagamento todo dia 12 e já usou o salão novamente. Mas, agora, paga à vista." A relação entre as duas é considerada boa pela cabeleireira.

Pode parecer de pouca importância para quem vê de fora, mas uma solução como essa faz grande diferença numa comunidade. Não só pelos valores financeiros envolvidos, mas porque, em muitos casos, as partes do conflito são pessoas vizinhas, que vivem perto umas das outras e, por isso, vão se encontrar no dia-a-dia.

Teonília gostou tanto do serviço de mediação que já o utilizou mais duas vezes. Em uma delas, o caso era semelhante ao primeiro – a cliente devia mais de R$ 1 mil. No outro, seu ex-marido não estava pagando a ajuda financeira para o filho, de 11 anos. "Eu falava com ele, mas ficava na promessa." Com a intermediação do escritório, foi feito um acordo para o repasse de R$ 42 por mês. Isso aconteceu há um ano, e ele tem cumprido o combinado.

O serviço de mediação do Distrito Federal atende casos de direito da família (principalmente pagamento de pensão e guarda dos filhos), direito do consumidor, problemas relacionados a moradia e orientação previdenciária. Desde que não englobem a esfera criminal, eles podem ser resolvidos através da mediação – do contrário, os escritórios apenas orientam e encaminham para o órgão competente. Quando há descumprimento do acordo, o agente de cidadania indica o procedimento jurídico que deve ser adotado e envia o caso à Defensoria Pública.

Embora haja usuários desses serviços que têm nível superior e boa renda, os clientes mais usuais são aqueles que freqüentemente vêem seus direitos serem desrespeitados. Em Taguatinga, 80,9% dos casos foram trazidos por mulheres, enquanto nos escritórios da Juspopulis esse número é de 74,6%. Quase 35% dos solicitantes de mediação na cidade-satélite do Distrito Federal têm renda individual mensal de até dois salários mínimos, e 24,3% declararam não ter renda alguma. No projeto de Salvador, os números são de 33,5% e 54,5%, respectivamente.

Agentes de cidadania

A fase mais importante na montagem de um projeto de mediação é a seleção e a formação dos agentes de cidadania, que vão prestar os serviços, oferecer esclarecimentos e orientação à população. No Distrito Federal, eles foram recrutados nas comunidades, através de divulgação em locais públicos, como escolas, hospitais, associações de bairros e igrejas. Os requisitos básicos: ter no mínimo 18 anos, o ensino fundamental completo, ser atuante e conhecer a sua comunidade.

O interesse em participar é grande, tanto que, neste ano, quando foram abertas quatro novas vagas para o atendimento em Ceilândia, 106 pessoas se inscreveram para a seleção, que vai da análise de currículo à pesquisa na própria comunidade sobre a atuação prévia do candidato.

A capacitação dos agentes das duas cidades-satélite – realizada por profissionais do Tribunal de Justiça de forma voluntária – inicia-se com cursos de sensibilização nas áreas do direito onde há atendimento. Mas a formação é continuada e multidisciplinar, respondendo assim às demandas que surgem com o acúmulo de experiência dos projetos. Eles ainda contam com o apoio de assessores jurídicos que acompanham os casos. No Distrito Federal, funcionários do Tribunal de Justiça prestam esse serviço; na Juspopulis, são consultores da organização e estudantes de direito, principalmente da Universidade Federal da Bahia.

Vale aqui uma comparação com outros projetos que prestam atendimento jurídico a comunidades carentes. Há os que utilizam estagiários, advogados e outros profissionais da área de direito em vez de membros treinados da população. A tendência, nesses casos, é que a atuação não vise prioritariamente facilitar a via do diálogo entre as partes – como na mediação –, mas busque um caminho que leve a um acordo – o que é chamado de conciliação. Com um operador do direito na posição de intermediário, acaba-se seguindo uma lógica mais próxima do que acontece no Poder Judiciário, em vez de construir uma solução a partir da concordância das partes envolvidas.

Tanto nos escritórios da Juspopulis quanto nos Balcões de Justiça e Cidadania das Faculdades Jorge Amado, a forma mais adotada é a da mediação, vista como mais democrática. Quando as partes conseguem por si mesmas chegar a um consenso por meio do diálogo, são maiores as chances de que o acordo seja cumprido. Na experiência de Taguatinga, em 90% dos casos, chega-se a uma solução. Segundo Marcelo Girade, os acordos conseguidos nos escritórios de mediação do Distrito Federal são encaminhados para o Judiciário para que sejam referendados e passem a ter validade legal. Porém, em muitos casos, isso nem é necessário, pois prevalece o respeito mútuo pela decisão acertada num acordo verbal.

O aspecto democrático também se reflete na facilidade com que as partes se expressam, entre si e com o mediador, sem que seja preciso que qualquer um deles domine os instrumentos jurídicos. "Moro num lugar carente. E falo com meus vizinhos a linguagem deles", lembra Luzia Lopes de Araújo, agente de cidadania em Taguatinga. Além de falar a mesma língua, os mediadores vivem e entendem a realidade das pessoas que procuram o serviço. "O líder da comunidade que está lidando com a disputa de pensão sabe o que R$ 30 significam na vida daquelas pessoas", afirma Vera Leonelli.

Os projetos de mediação popular sofrem críticas, é claro. As mais ouvidas dizem respeito a uma possível "banalização do direito" ou que essas iniciativas criam direito e poder paralelos, desprezando os códigos e a jurisprudência. Girade discorda e diz que, no caso do Distrito Federal, o projeto só nasceu porque o magistrado estava atuando na comunidade. E por causa desse contato com a população é que foram pensados instrumentos jurídicos para melhorar o acesso à Justiça. "O Estado continua lá. Não é a substituição do seu papel, mas sua transformação. Dessa forma, há uma maior aproximação entre o cidadão e o Estado." Vale lembrar que muitos projetos são administrados por Tribunais de Justiça, como no Distrito Federal, no Acre e na Bahia.

Solucionar os pequenos conflitos, que não envolvem crimes, pode ser de grande valia para o Poder Judiciário, pois evita que aumente ainda mais a grande pilha de processos a serem apreciados e julgados. Ao mesmo tempo, isso pode criar na população um sentimento de que os problemas podem ser resolvidos e, o melhor, pelo diálogo. "Não são apenas fórmulas objetivas para a solução de conflitos, mas uma maneira de aproximar da comunidade o pleno exercício da cidadania", explica Vera.

O trabalho de conscientização e de orientação também contribui para impedir o aparecimento de conflitos. "Um dos importantes resultados é mudar a imagem da Justiça, mostrando como a população pode utilizá-la e como se prevenir para nem precisar recorrer a ela", diz Girade.

Nova profissão?

Os agentes de cidadania recebem uma ajuda de custo, cujo montante varia de acordo com o lugar. No Distrito Federal, o valor é de um salário mínimo por mês, com dedicação mínima de quatro horas diárias. O dinheiro é utilizado para gastos com deslocamento (os agentes fazem visitas às partes do conflito), telefone e alimentação. Os escritórios chegaram a ter 30 mediadores em Ceilândia e 25 em Taguatinga, mas hoje contam respectivamente com 18 e 16 (note-se que, destes últimos, 14 são mulheres). De acordo com Girade, houve interrupção no repasse da verba do convênio com a SEDH em 2003, pois o projeto estaria sendo reavaliado. O órgão é responsável por essa ajuda de custo dos agentes, enquanto o TJDF cuida do restante, da infra-estrutura ao material de divulgação. Devido à suspensão nos repasses, o atendimento em Ceilândia chegou a ser interrompido. Segundo Girade, até 2004 os gastos do tribunal foram de R$ 1,4 milhão. Entre 2001 e 2003, a SEDH informa que desembolsou R$ 261,73 mil com esse projeto.

"Para mim, esse dinheiro é fundamental, pois não posso arcar com a despesa de condução para fazer os atendimentos", revela Gilvete Borges, agente do escritório de Taguatinga. Lá, para que o trabalho não fosse interrompido, como em Ceilândia, muitos utilizaram recursos do próprio bolso.

Segundo Rachel Cunha, assessora especial da SEDH, a interrupção no repasse dos recursos é um problema que sempre ocorre por conta da renovação anual dos convênios. Ela lembra, porém, que a idéia é a secretaria apenas contribuir inicialmente para a implantação e a consolidação das atividades e, depois, o parceiro buscar meios de auto-sustentação. No entanto, muitas vezes as entidades, sejam elas governamentais ou não-governamentais, não têm condições de dar continuidade ao projeto na sua plenitude sem a participação da SEDH. De acordo com Rachel, o apoio e a previsão de verbas à mediação popular estão incluídos no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007, que estabelece metas para os investimentos governamentais no período.

Infelizmente, os recursos destinados à Secretaria Especial dos Direitos Humanos são insuficientes, tendo em vista a quantidade de ações desenvolvidas e planejadas. Vale lembrar que o mesmo órgão cuida ainda do combate à tortura, da defesa dos direitos dos portadores de deficiência física, do combate ao trabalho escravo, ao preconceito racial e de gênero, entre outras áreas, todas elas com muito a ser feito no país.

No projeto da Juspopulis, 16 mediadores atuam em quatro comunidades, recebendo uma ajuda de custo que varia de acordo com o tempo que cada um pode dedicar à função. O projeto tem financiamento da SEDH e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). De acordo com Vera Leonelli, um dos maiores desafios é prover uma remuneração fixa aos agentes de cidadania. "Talvez a saída seja a criação de uma categoria como a dos agentes de saúde, cujo trabalho é muito parecido."

Rachel Cunha afirma que um dos objetivos, para 2004, é "interiorizar os projetos dos Balcões de Direitos (ver texto abaixo), em muitos dos quais se insere a mediação para atender populações indígenas, quilombolas, assentamentos rurais e trabalhadores rurais residentes em municípios identificados como focos de aliciamento de mão-de-obra para trabalho escravo".

Os participantes e idealizadores dos projetos esperam, agora, a sensibilização de outros setores da administração pública para a ampliação dos escritórios de mediação popular. Afinal, o país precisa de soluções assim – simples, pacíficas, tomadas em conjunto.

Nei Robson e Ana Cristina são mediadores em Taguatinga. Contam um caso que atenderam sobre o problema causado pela poeira desprendida de uma casa de materiais de construção que era levada pelo vento para um condomínio ao lado. No primeiro encontro de mediação, não houve acordo. O proprietário estava à espera de um terreno para guardar o material e não sairia antes disso. O caso tinha sido levado à Justiça comum. Mas, durante os diálogos entre as partes, alguém sugeriu que o material fosse aguado duas vezes por semana – o que impediu que o pó incomodasse os moradores.


Balcões da cidadania

Criados com o objetivo de ajudar a promover a cidadania e os direitos humanos, os Balcões de Direitos são postos fixos ou itinerantes de serviços que dão orientação jurídica gratuita a um público-alvo constituído pela população historicamente excluída, economicamente carente ou moradora de locais de difícil acesso. Entre suas atividades estão o fornecimento de documentos de identidade, a mediação e a conciliação de conflitos, a assistência jurídica e a formação de agentes de cidadania, cuja atuação contribua para a inclusão social no local onde vivem.

O projeto é tocado por governos estaduais, prefeituras e organizações não-governamentais, entre outros, em parceria com uma série de instituições, públicas e privadas. De acordo com Rachel Cunha, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos celebrou 24 convênios para a criação de projetos de Balcões de Direitos no ano passado. "Alguns deles incluem vários núcleos, como acontece com o desenvolvido pela Comissão Pastoral da Terra, que está presente em sete locais, nos estados do Pará, Maranhão, Piauí e Tocantins." Além desses, há outros que não renovaram convênio com a SEDH mas continuam funcionando.

O Tribunal de Justiça da Bahia possui 50 Balcões de Justiça e Cidadania em todo o estado, em parceria com instituições, como estabelecimentos de ensino superior. Junto com as Faculdades Jorge Amado, por exemplo, foram criadas 14 unidades em bairros distantes e carentes de Salvador, como a Península de Itapagipe e o Jardim Cruzeiro, e nelas implantados escritórios de mediação. Considerado um projeto de extensão da faculdade, atua de forma transversal na formação de alunos de cursos como direito e comunicação social.

 

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