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Teste de solidariedade

 


Jaqueline com a mãe e o irmão:
boas recordações
Foto: Carlos Juliano Barros


ONG tenta aproximar estudantes da realidade e miséria do país

CARLOS JULIANO BARROS

Em frente à porta de sua casa, Jaqueline exibe um tesouro: uma sacolinha plástica decorada com a figura de um simpático coelho, da qual retira um pequeno tubo de creme dental, praticamente vazio. Ela pergunta insistentemente por uma das alunas do grupo da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul), localizada na Grande São Paulo, que esteve em Santa Luzia do Norte (AL), em janeiro passado. Os olhos da menina brilham ao relembrar os estudantes que, além de distribuir kits do "Dr. Dentuço", ensinaram a ela a escovar os dentes. Também não consegue esconder o sorriso quando recorda as brincadeiras com bambolês que os universitários, fantasiados de palhaços, fizeram com as crianças do seu humilde bairro.

A poucos metros do precário conjunto habitacional onde mora a família de Jaqueline, Maria Cristina dos Santos conversa com uma adolescente, mãe de dois filhos vivos e um morto. Ela trabalha como agente de saúde da família (ASF), e sua área de atuação compreende o Porto do Peixe – uma das localidades mais pobres de Santa Luzia do Norte. Cristina já perdeu a conta do número de vezes que explicou à garota de 17 anos como tomar anticoncepcionais, distribuídos gratuitamente à população de baixa renda do município. "Aqui o pessoal tem vergonha de conversar sobre sexo, mas de fazer...", brinca. No final de fevereiro, por exigência do governo federal, ela e outros colegas prestaram um concurso público e, se aprovados, serão efetivados na função que já desempenham. Todos contaram com uma ajuda preciosa para enfrentar os testes. Durante uma semana, estudantes da Unicsul ofereceram uma oficina de capacitação para os agentes do município. "Hoje me sinto mais preparada para responder a algumas dúvidas da população", garante Cristina.

Em 1995, o Conselho da Comunidade Solidária – uma organização da sociedade civil presidida pela ex-primeira-dama Ruth Cardoso – criou o programa Universidade Solidária (Unisol), com o objetivo de transpor os muros que separam o elitizado meio acadêmico da maioria excluída no Brasil. Desde então, quase duas centenas de instituições de ensino superior (IES) de todo o país, públicas e privadas, já desenvolveram projetos sociais em diversas cidades brasileiras com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). O programa deu origem a uma ONG, que manteve o nome Unisol e tem por missão costurar parcerias a fim de capacitar estudantes e docentes para trabalhos de campo, além de buscar apoio de empresas para bancar as despesas.

No início, todos os projetos eram realizados pelo Módulo Nacional. Equipes compostas por dez alunos e um professor embarcam para alguma cidade do norte ou nordeste e ficam por lá durante três semanas. Durante esse curto período, o grupo procura promover o "desenvolvimento em várias áreas, sem uma preocupação específica", explica a professora Vivian Fiori, que orientou os estudantes da Unicsul em Santa Luzia do Norte. O coordenador da equipe faz uma viagem inicial para levantar com a prefeitura quais os principais problemas locais. As universidades têm liberdade para formular sua linha de atuação, sem a interferência da Unisol.

Atualmente, existem outros dois módulos: Regional e Especial. No primeiro, as IES tocam projetos comunitários em regiões próximas aos seus campi, o que possibilita um acompanhamento mais freqüente. Já o Módulo Especial envolve intervenções em comunidades com características peculiares, como terras remanescentes de quilombos, por exemplo.

"Os projetos regionais continuam sendo ampliados, até porque são mais baratos", afirma Elisabeth Vargas, coordenadora nacional da Unisol. Segundo ela, o Módulo Nacional precisa ser mantido, uma vez que alguns professores o encaram como uma experiência interessante, já que a universidade realiza uma intervenção pontual e não sabe se vai ter chance de dar continuidade às atividades. Outros acreditam que ele deva ser um prêmio para IES que desenvolvam um bom trabalho local. "Estamos discutindo isso com os professores", conclui Elisabeth.

Debates à parte, ela reconhece que as atividades do Módulo Nacional dão mais cartaz às IES do que os projetos regionais. Em tempos de responsabilidade social, trabalhos comunitários em cidades isoladas, com um grau de pobreza muito acentuado, valorizam substancialmente o currículo dos professores e estudantes envolvidos. Porém, como fica a vida de quem recebe a visita de um grupo de universitários sob a coordenação do Módulo Nacional da Unisol? Três semanas em municípios que colecionam histórias de corrupção e clientelismo são suficientes para, pelo menos, atenuar problemas que se arrastam há séculos?

A reportagem de Problemas Brasileiros foi até Santa Luzia do Norte para analisar o impacto da passagem da equipe da Unicsul pela cidade. É importante frisar que a intervenção da universidade nesse modesto município de 7 mil habitantes não serve de modelo para o julgamento de todas as IES que participam do Módulo Nacional. Qualquer generalização é arriscada.

Mas não é necessário ter um faro muito aguçado para perceber a maior ou menor eficácia das atividades desenvolvidas, como capacitação de agentes de saúde ou recreação com crianças de bairros pobres.

Educação x assistencialismo

O retrato de Jaqueline e seus irmãos não é muito animador. Os pés descalços, acostumados a pisar a terra batida misturada a fezes de animais, são um prato cheio para as verminoses. Bolinhas vermelhas espalhadas pelo corpo também incomodam as crianças: a sarna atracou de vez no Porto do Peixe.

Josenilda, a mãe de Jaqueline, não se envergonha de dizer que nenhum dos filhos jamais sentou em uma cadeira de dentista. "A gente precisa falar a verdade. Só dá para comprar pasta de dente quando tem dinheiro", desabafa. O pequeno tubo que Jaqueline ganhou nas recreações educativas organizadas pelos estudantes da Unisol já está quase vazio. Em compensação, as cáries não dão trégua à sua família.

A professora Tereza Pereira, que dirige uma escola pública de educação infantil no bairro, conta que é muito difícil passar noções de higiene às crianças. "O problema é que, quando elas voltam para casa, não são estimuladas a tratar da saúde. E a culpa não é dos pais, porque eles não possuem condições de cuidar de cinco, seis filhos que mal têm o que comer", afirma. Por essa razão, a professora não acredita que algumas tardes de escovação de dentes sejam suficientes para mudar hábitos decorrentes de uma vida inteira de privação.

Hoje em dia, a palavra "assistencialismo" tornou-se um fantasma a ser exorcizado por todos os envolvidos em projetos sociais. Elisabeth Vargas, por exemplo, faz questão de ressaltar que as ações propostas pela Unisol possuem caráter "educativo e não assistencialista". Porém, considerando os problemas que qualquer bairro pobre enfrenta – como a falta de serviço odontológico –, sacolas com escovas e cremes dentais não são suficientes para resgatar a já deteriorada saúde bucal dos moradores do Porto do Peixe.

É claro que a Unisol não tem condições de substituir o poder público e garantir a assistência aos moradores de Santa Luzia, que é dever do Estado. Não é de estranhar, portanto, que uma pessoa que viveu toda a sua vida à margem de qualquer serviço público que a atendesse com regularidade e dignidade, como Josenilda, acabe por descuidar da saúde de toda a sua família. Reverter esse quadro de baixa auto-estima, em que o indivíduo se sente impotente para transformar a própria realidade, é um processo bastante delicado, que não se alcança em três semanas.

Multiplicação

Duas questões fundamentais atormentam os integrantes do Módulo Nacional da Unisol: como promover atividades que não descambem para o assistencialismo e de que maneira gerar um efeito perene, se não existe a certeza de que a universidade vai retornar ao local onde atuou.

Quando se fala em trabalho comunitário, o termo "multiplicador" é um conceito-chave. Lideranças locais, agentes de saúde e professores são exemplos clássicos de pessoas que podem adquirir e disseminar conhecimento, através de uma vasta rede de contatos. Investir na formação de um profissional que lida no dia-a-dia com a comunidade de que faz parte seria uma maneira de garantir que essas informações não se percam. "Às vezes, essas capacitações parecem tão básicas, mas os municípios não possuem pessoas habilitadas para fazer isso", justifica Vivian Fiori.

O agente Rafael Santos da Silva enxerga a gravidez na adolescência como um dos principais problemas de Santa Luzia. Porém, não foi fácil demolir preconceitos e falar abertamente sobre sexo com os jovens. "O pessoal da Unisol deu dicas de como abordar as pessoas e de como agir com aqueles que não querem conversa", conta. Além de orientações sobre esse tema, os universitários também preparam uma apostila com os assuntos vistos durante a oficina, como prevenção e tratamento de doenças. Rafael garante que está estudando com a ajuda do material e não tem dúvidas de que a contribuição da equipe da Unisol lhe deu segurança para responder às inquietações mais freqüentes dos moradores de Santa Luzia. "Mas seria muito bom se essas capacitações fossem mais freqüentes", afirma.

O ponto nevrálgico do Módulo Nacional é justamente este: solução de continuidade. A inércia política e a falta de verbas do poder público municipal ajudam a sepultar as três semanas de trabalho da Unisol. José Petrúcio dos Santos, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Bairro do Quilombo, o mais populoso de Santa Luzia, diz que a prefeitura não dá prosseguimento às atividades propostas pelos estudantes. "Eles vêm, assanham a comunidade, mas quando vão embora pára tudo", lamenta.

O motivo que restringe a freqüência dos universitários nesses municípios é simples: dinheiro. Não é fácil angariar recursos para bancar o transporte – quase sempre aéreo. As prefeituras contempladas, por sua vez, têm de arcar com o alojamento e o deslocamento local da equipe enquanto durarem as atividades.

Para minimizar o problema da falta de continuidade, o professor Sandro Tonso, que por cinco anos foi interlocutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a Unisol, investia na promoção de assembléias e debates a fim de fortalecer a autonomia da comunidade. Os moradores expunham aos universitários suas principais demandas para, posteriormente, pensar coletivamente em alternativas. "Foram trabalhos que mexeram com as comunidades porque enfocaram a organização política e a imagem que elas tinham de si mesmas. Entretanto, quando a preocupação é, por exemplo, passar noções de escovação dental, não sobra nada, porque se trabalha com as conseqüências, e não com as causas dos problemas", pondera.

Lazer zero

Josenilda se lembra da passagem dos universitários, mas não sabe ao certo quem eram eles nem o que foram fazer em Santa Luzia. Entretanto, ela se recorda com detalhes da sessão de cinema que lotou o pátio em frente à sua casa. Filmes nacionais e imagens de pessoas do próprio bairro foram projetados pelos estudantes. Josenilda nunca entrou em um cinema. Tem apenas uma televisão quebrada.

Acostumada a não sair de casa, ela reclama de forma resignada da falta de opções de lazer na cidade. Também não pode se dar ao luxo de pagar a passagem de ônibus até Maceió e, muito menos, o ingresso num cinema da capital. "Seria bom se tivesse filme toda noite", afirma ela, rindo do próprio sonho. O jeito é esperar pela solidariedade de uma universidade e rezar para que o cinema bata novamente à sua porta. Por conta própria, ela não tem perspectivas de rever uma tela grande tão cedo.

Por outro lado, a coordenadora da Unisol não acha que exibir filmes em um bairro pobre seja uma ação assistencialista. "Essa gente viu um filme pela primeira vez e ficou maravilhada. Ações culturais como essa funcionam, no mínimo, como atrativo para a comunidade e, no máximo, como incentivador da cultura local, seja lá o que for", argumenta.

Infelizmente, Josenilda não desfruta do direito ao lazer, assim como não tem direito a uma alimentação saudável, a um bom sistema de saúde... Seu maior sonho é um emprego para o marido. Dessa forma, sua família poderia contornar o limite da sobrevivência. Porém, a pior das privações é o fato de Josenilda não conseguir tocar sua vida de forma autônoma. Até para comer ela precisa apelar para a generosidade dos amigos um pouco mais afortunados – o que é uma das formas mais básicas de dependência.

Cooperação

Se por um lado a Unisol parece estar ainda em busca de maneiras de dar seqüência a atividades que de fato sejam efetivas – o que se percebe em sua política de não interferência no programa desenvolvido pelas universidades –, por outro existem demandas nas próprias comunidades que poderiam indicar caminhos para alcançar esse objetivo. Entre elas, a que certamente ganha destaque, devido à precária situação socioeconômica da população, é a geração de renda. No caso de Santa Luzia do Norte, por exemplo, muitos moradores tentam ganhar a vida na capital alagoana, que fica a apenas 27 quilômetros. Mas isso nem sempre é o bastante para despistar o desemprego. Assim como o marido de Josenilda, o pescador Germano arranca o sustento da família do fundo da lagoa Mundaú – a única saída para driblar a miséria absoluta. A poluição causada pelas indústrias locais, somada a um processo natural de assoreamento, vem afetando consideravelmente a quantidade de peixes, de camarão e de sururu, um marisco típico da região. Mesmo assim, quando a lagoa se mostra generosa a Germano, o barco fabricado por ele próprio volta repleto de sururu. Sem condições de transportar o produto até o ponto-de-venda, ele é obrigado a aceitar o preço imposto pelos atravessadores – que o revendem para supermercados e restaurantes, pelo dobro do valor, no mínimo. Uma lata de 20 litros cheia desse marisco rende a Germano pouco mais de R$ 1.

Ele pretende concorrer à presidência da colônia de pescadores de Santa Luzia, pois sabe que a organização dos seus colegas é o primeiro passo para tentar melhorar as condições de trabalho de quem depende da lagoa Mundaú. Segundo Germano, a criação de uma cooperativa chegou a ser cogitada pela colônia, mas a idéia não vingou. Mais do que suporte técnico, os pescadores precisam de incentivo. Para constituir uma cooperativa é necessário um cuidadoso processo de capacitação, já que não é fácil administrar negócios e, muito menos, vaidades pessoais. Ciente do trabalho realizado pela Unisol na região, Germano já se apercebeu de que o acompanhamento de uma universidade seria fundamental, até porque existem exigências burocráticas com as quais o mundo acadêmico está acostumado a lidar. "O que faltou, na verdade, foi o apoio de uma escola", explica ele. Com a cooperativa a pleno vapor, um congelador e um carro poderiam ser adquiridos, e a figura do atravessador, eliminada.

Nesse caso, a proximidade da universidade envolvida é um fator essencial para o sucesso da iniciativa. "O campus da Universidade Federal de Alagoas fica a poucos minutos de Santa Luzia. Por que eles não desenvolvem um trabalho aqui?", questiona Kândida Gomes, secretária municipal de Cultura e Turismo.

Equilíbrio

"Sempre digo aos meus alunos que a Unisol não faz milagres, e que não vamos mudar o mundo", reconhece Vivian Fiori. Entretanto, as universidades são as responsáveis pela formação de profissionais competentes para formular estratégias que ajudem a resolver necessidades básicas da maioria dos brasileiros. Vivian acha que o contato de estudantes universitários com uma realidade diferente contribui para uma formação mais humana e menos tecnicista dos futuros profissionais. "Eles perdem o preconceito que tinham em relação ao povo do nordeste, começam a ter uma preocupação social maior", acrescenta.

Assim como Vivian, Elisabeth Vargas admite que "na balança [a contribuição do Módulo Nacional] ainda pesa mais para o aluno do que para a comunidade. Mas queremos equilibrar essa relação. Estamos batalhando para ser bom para os dois lados". De fato, ver com os próprios olhos a miséria nua e crua de famílias como a de Josenilda é uma experiência marcante e pode contribuir na formação de alunos mais sensíveis aos problemas sociais brasileiros.

Enquanto o meio acadêmico procura caminhos para compartilhar seus conhecimentos, a população do Porto do Peixe aguarda pelo retorno de alguma universidade e vai sobrevivendo com o que consegue aproveitar das orientações de Maria Cristina. Como agente de saúde, uma de suas funções básicas é a distribuição de hipoclorito de sódio para o tratamento da água usada para beber. Apesar de tentar convencer os moradores da importância dessa medida, muitos descartam o uso da substância, que deixa a água com gosto amargo. "Então, eles usam o hipoclorito como água sanitária para lavar roupa."

 

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