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Por que saímos da rota?

 

 
Foto: Gabriel Cabral

Problemas e perspectivas da economia brasileira

YOSHIAKI NAKANO

O professor Yoshiaki Nakano, ex-secretário da Fazenda do Estado de São Paulo e atual diretor da Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV), esteve presente no dia 13 de novembro de 2003 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra com o tema "Economia Brasileira: Problemas e Perspectivas".
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.

A primeira constatação que nos leva a pensar, e que nos deixa de certa forma perplexos, é que, quando pesquisamos a história econômica do Brasil, vemos um desempenho surpreendente. Lá pelo ano de 1860 aconteceu alguma coisa neste país que fez com que entrássemos numa trajetória de crescimento. Desde aquela época e até 1980 nunca deixamos de crescer pelo menos 4% ao ano, na média calculada por década. No pós-guerra a taxa foi de 7%. Quando comparamos o Brasil com os demais países, nas primeiras sete décadas do século passado fomos a nação que mais cresceu no mundo. Mas a partir dos anos 1980 ficamos quase no centésimo lugar em termos de desenvolvimento. Depois de mais de um século de transformação, de constituição de uma sociedade moderna, processo que se iniciou em meados do século 19, o que aconteceu para de repente sairmos da rota? E o que fazer para voltar a ela?

As pessoas muitas vezes não se lembram, mas temos um setor industrial poderoso. Já em 1980, quando acabamos de construir o parque fabril, a indústria brasileira era semelhante à do Canadá em tamanho. Era mais diversificada, integrada e forte que a da maioria dos países europeus. Nos últimos 30 anos, porém, nossa indústria cresceu menos que a população.

Alguma coisa está errada. A abertura, mais tarde, foi feita sem o suporte adequado, por parte do governo, para pelo menos fornecer às empresas daqui as mesmas condições que as concorrentes têm lá fora. Ainda assim a indústria brasileira sobreviveu. E quando o câmbio melhora um pouco temos até desempenhos espetaculares nas exportações.

Paralelamente a isso, ocorreu outro milagre, a constituição de uma agricultura extremamente competitiva. Hoje temos um empresariado muito ativo e plantamos 28 milhões de hectares com tecnologia avançada. Mas apesar disso o país não está crescendo. Nos últimos cinco anos, a média ficou em torno de 1,5%, e de 2% nos últimos 20 anos. Na década passada, enquanto nosso Produto Interno Bruto (PIB) cresceu em torno de 27%, o da China aumentou 118%. Então a grande indagação é esta: o que aconteceu?

Quando se estuda o desenvolvimento sustentado dos países, não se encontra muita coisa em comum entre eles. Não há estratégias que sirvam para todos, não há fórmulas genéricas que possam seguir, não há um modelo. A única coisa comum que se pode ver nessas nações é que todas as que alcançaram o sucesso tinham aquilo que se chama de projeto nacional. Que é, em primeiro lugar, o compromisso de todas as elites, políticas, empresariais, sindicalistas e intelectuais, com o desenvolvimento. Ele é priorizado. E todas essas lideranças partilham de uma visão comum sobre o futuro.

Até 1980 tínhamos um projeto nacional. Nos discursos de políticos e sindicalistas e nos textos de intelectuais dessa época está muito clara a idéia que foi se fortalecendo de que o Brasil para se desenvolver precisava se industrializar. No século passado, tivemos grandes debates em que se questionava se nossa vocação seria puramente agrícola ou não. Depois disso houve convergência de opinião das lideranças em torno da noção de que o país, para crescer, necessitava criar indústrias. Isso se tornou a prioridade. Eu diria que essa idéia formava uma identidade nacional. Além do futebol, foi algo com que provavelmente todos os brasileiros concordavam: crescer, gerar empregos através da industrialização era a prioridade. E todos os governos, de direita, de esquerda, civis ou militares, seguiam esse plano. Em certos momentos, alguns governantes preferiram remover os pontos de estrangulamento no caminho do crescimento. Outros, mais intervencionistas, definiram os investimentos por setor. Criaram-se mecanismos através de subsídios, estímulos e a tradicional transferência de renda do setor agrícola para o industrial, com a sobrevalorização do câmbio.

É lógico que o modelo apresentava também outras características. Dada nossa experiência, tínhamos certo pessimismo em relação às exportações, por conta de todas as flutuações e problemas enfrentados historicamente nas vendas de produtos primários. Assim, adotou-se a estratégia de crescer olhando para dentro, com nossos próprios recursos. E criamos um viés antiexportador, mantendo permanentemente sobrevalorizada a taxa de câmbio. Por outro lado, mais na fase recente do pós-guerra, recorremos também a uma fortíssima intervenção do Estado, de caráter desenvolvimentista. Também nessa fase não ligamos muito para a estabilidade, pois a prioridade absoluta era o crescimento. O resultado é que convivemos com um longo período de inflação.

Alguma coisa aconteceu na década de 1980 que fez com que abandonássemos o projeto nacional. Em vez de fazer ajustes e dar continuidade a ele, praticamente o jogamos fora. Foi quando saímos da rota. Houve um conjunto de circunstâncias que levou a isso: de um lado, a excessiva intervenção do Estado, justamente no período militar, que provocou uma reação muito forte da sociedade. Em vez de modernizá-lo, deixando-o mais adequado às novas condições, preferiu-se acreditar que tudo o que fosse estatal era ruim. Esse era o pensamento da sociedade, paralelamente ao movimento para a democratização do país. Por outro lado, erramos também porque a partir daí, em todo aquele período inflacionário, a prioridade absoluta passou a ser a estabilidade. Então começamos de certa forma a constituir outro modelo. Na fase anterior tínhamos uma economia fechada e precisávamos abri-la. E abrir não só o lado comercial mas também a conta de capital e integrar nosso minúsculo mercado financeiro ao internacional.

E aí é lógico que era preciso descobrir como crescer num modelo em que se retira o componente desenvolvimentista do Estado e se deixa aumentar cada vez mais a parte assistencialista. Tiramos a função desenvolvimentista do Estado, de um lado, e do outro apostamos que o mercado resolve tudo. Depois, abrimos a economia, porque não poderia ficar fechada. Assim, acabamos caindo numa armadilha: a idéia de que o país que não tem poupança precisa atrair recursos do exterior. Assim o mercado retiraria o Estado de cena, fazendo as privatizações, etc., e viria o crescimento. Como se ele viesse por geração espontânea. E é lógico que isso não se deu. O fluxo de capital ocorre quando acontece alguma coisa lá fora, quando por exemplo a taxa de juros cai nos Estados Unidos, ou quando os países do G-7 têm superávit em transações correntes. Isso é sistemático. E esse fluxo de capital normalmente ocorre em booms, é como uma manada que vem e que de repente vai embora. Isso está registrado na história econômica com clareza.

No início da década de 1990, quando as taxas de juros nos Estados Unidos estavam lá embaixo, inventaram os mercados emergentes e tivemos um boom de recursos vindo para cá. Acreditamos que isso daria certo, que o mercado financeiro internacional é extremamente eficiente e que esses recursos iriam para a atividade produtiva, e que com isso o país cresceria. Apostamos nisso e não deu certo. De 1990 até hoje, a taxa de investimento no país tem caído e a de poupança evidentemente se reduziu, pois se ampliou o consumo. O mais sério ainda é que historicamente sabemos que essa modalidade de capital tem sido fator desestabilizador na economia mundial. Tanto que, em 1944, quando foi assinado o Acordo de Bretton Woods, um dos artigos do documento dizia que todos os países signatários se comprometiam a controlar o movimento de capital para evitar as crises financeiras, que já tínhamos vivido no passado. E assim partimos para o sistema de câmbio fixo, etc., com mecanismos para evitar flutuações, e todos impuseram controles. Na verdade o único fluxo de capital que contribui para o desenvolvimento é o investimento direto, aquele que vem para aumentar a capacidade produtiva. O fluxo de capital simplesmente financeiro só traz desastres, porque em geral valoriza a taxa de câmbio, estimula o consumo e as importações, desestimula as exportações, resulta em dívida externa e interna e faz cair a taxa de poupança. Pelos dados estatísticos, numa primeira fase a economia se desenvolve um pouquinho, mas logo depois a taxa de crescimento dos receptores desses fluxos de capital fica menor do que a tendência histórica. Isso por uma razão muito simples: o fluxo de capital gera um passivo muito grande, que é dívida, e esta pesa sobre o futuro, porque precisa ser paga. Para isso algum tipo de tributação é imposto à sociedade, inclusive sobre investimentos. Como resultado, a taxa de investimento cai, os juros sobem e assim por diante. Então, se olhássemos para a história, já teríamos previsto isso e feito minimamente algum controle, como os países asiáticos – e observe-se que mesmo assim alguns deles ainda tiveram problemas.

No período em que recebemos bilhões de dólares de investimento direto, pesquisas recentes mostram que esse capital não veio para ampliar a capacidade produtiva do ponto de vista macro, porque a taxa de investimento caiu. Grande parte desse dinheiro fluiu para duas coisas: primeiro para as privatizações e, segundo, para fusões e aquisições. O que veio realmente para adicionar capacidade produtiva foi uma parcela mínima. E no nosso caso cometemos a barbaridade de, em vez de atrair o capital produtivo, privilegiar o de curto prazo, o financeiro especulativo. E ainda adotamos a política maluca de raciocinar assim: vamos elevar a taxa de juros acima da dos demais países para atrair recursos. É lógico que, quando isso acontece, o capital que vem é o que quer ganhar na arbitragem das diferenças de taxas. E com o câmbio errado e os juros lá em cima, a atividade produtiva tem índice de retorno baixo. O que fizemos? Em vez de criar condições de lucratividade interna, elevar a taxa de retorno, o lucro dos investimentos produtivos, aumentamos os juros, inviabilizando projetos produtivos, mexemos no câmbio, reduzindo o retorno do setor exportador, criamos tributação em cima de tributação. Fizemos a política de afugentar o capital que precisamos e de atrair o que não precisamos, que é o volátil.

Infelizmente, o Brasil também faz parte de um clube que ao longo da história sistematicamente tem dado calote, apesar do desempenho espetacular que tivemos. De 1824 até hoje, o país já deu sete calotes gerais, fora os pequenos de prefeituras, que no passado emitiam títulos em Londres, captavam recursos e não pagavam. A única nação que deu mais calotes que o Brasil, se não me engano, foi a Venezuela, que o fez nove vezes. Fora da América Latina, que eu me lembre, estão nesse clube as Filipinas, que também é um país problemático, e a Turquia, que deu calote pelo menos cinco vezes. Essas economias têm agido assim por alguma razão e sistematicamente. É lógico que precisamos sair desse clube de caloteiros, que entram nessa onda de receber capital porque o juro está baixo e há sobra de recursos. E voltar a crescer muito mais apoiados por nossos recursos. Foi o que fizemos historicamente.

Outra coisa: não encontro nenhum exemplo de país importante que tenha crescido, de forma sustentada, apoiado em recursos externos. O que normalmente ocorre é que, quando ele entra numa trajetória de crescimento sustentado, ano após ano, o capital se dirige a ele e em alguns momentos pode ajudá-lo a crescer mais rapidamente. Mas o processo sempre se inicia com recursos próprios, internos. Se as exportações crescem em ritmo acelerado, a relação dívida/PIB cai, e aí entramos em outro clube. Para ter transações correntes equilibradas, precisamos estimular fortemente as exportações com uma taxa de câmbio que as favoreça.

Essa tem de ser a meta. Se estabilizarmos a taxa de câmbio comprando e vendendo dólares no mercado, a inflação também desaparecerá, porque nos últimos anos ela foi desencadeada pelo câmbio e por suas decorrências.

Também se estabiliza a economia aberta com câmbio controlado; não há razão para esses choques que tivemos nos últimos anos. Nesse caso se usa a política de juros. E é lógico que temos de trazer os juros para um patamar mais baixo. Precisamos aprender com os países que entraram na trajetória de crescimento equilibrado: eles desvalorizam o câmbio e colocam os juros lá embaixo. Assim, com uma boa estratégia, se cresce. Essa história de que o risco país é alto e que por isso precisamos elevar as taxas de juros não tem fundamento. Vejam se os asiáticos levam em consideração o risco país para fixar a taxa de juros. Não. Inclusive se pode resolver o problema do mercado financeiro, porque, quando se tem uma moeda desvalorizada, a economia está crescendo e a produtividade aumenta, a expectativa de todos é que ela se valorize. E isso é mais do que suficiente para cobrir o risco país. Portanto, pode-se colocar a taxa de juros onde se quiser, de acordo com o interesse interno. É claro que isso não se faz por decreto. Hoje penso que há espaço para derrubar os juros, mas podem ocorrer problemas, porque o Estado é o grande devedor. Então precisamos fazer um ajuste fiscal e zerar o déficit do governo, que deve gastar rigorosamente aquilo que arrecada. Ponto final. Não permitir, enfim, um aumento de dívida.

Zerar o déficit tem de ser por meio de corte de gastos correntes, de modo a abrir espaço para o governo ter poupança para investir em infra-estrutura. Porque a poupança do governo até recentemente era negativa, e todo ajuste feito neste país sempre utilizou aumento de impostos. Outro dia vi os dados do setor petroquímico. A soma de impostos (45%) mais juros (38%) chega praticamente a 80% do valor agregado. Portanto sobram 20% para pagamento de salários e lucro. Então não se pode crescer. Temos um sistema de tributação e de juros que sufoca toda a atividade produtiva, porque o que dá dinamismo à economia capitalista é o fluxo de salários, que vira consumo, e o fluxo de lucros, que vira investimento. A parcela que é paga como juros passa por um circuito que tem pouco a ver com a criação de demanda para a indústria. Está engordando a dívida do governo. Ele se endivida e, como não tem dinheiro para pagar os juros, faz mais empréstimos e aumenta a dívida, e isso continua crescendo. É o que estamos vendo. É lógico que isso acabará em desastre se não se tomarem logo medidas mais duras.

 

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