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Poeta Federico García Lorca é homenageado

Há 67 anos, o escritor e poeta espanhol Federico García Lorca montava a trupe ambulante de atores/estudantes "La Barraca" e saía saltimbanco pelo interior do país a divulgar arte, incomodar cabeças mofadas e desvelar mistérios. Na bagagem, Miguel de Cervantes, Calderón de La Barca e Lope de Vega, ilustres filhos da terra, giravam em palcos, provavelmente improvisados, para o deslumbre de uma população rural e intimidada por um regime franquista.

Hoje, Lorca está no panteão da literatura junto aos nomes que disseminava e é de lá que vê sua arte sendo levada, de maneira poética e itinerante, como ele mesmo fez um dia, às mais pequenas cidades do interior. Só que deste lado do oceano, no interior de São Paulo, Brasil. Seu nome, sua obra e sua personalidade inquieta e constrangedora para os padrões da época viajaram milhas até chegar ao Novo Mundo. E é aqui, país de povo com "sangue quente", como se costuma dizer dos latinos, que Lorca encontra um jardim de louros para receber seu corpo, sua alma e sua glória.

Imitando a jornada original, setenta e duas cidades do interior paulista receberam três comboios artísticos movidos pelo Sesc São Paulo em homenagem ao centenário de Lorca. A boléia via-se carregada de instalações artísticas e de quase trezentas pessoas, entre artistas e técnicos envolvidos no projeto Lorca na Rua, que representaram peças baseadas em sua obras e em sua própria figura.

A idéia é de turnê mesmo. Sobre rodas, foi possível que muito mais pessoas vissem os espetáculos do que se fossem apresentados em apenas um único local, mesmo que em vários dias. Assim, cada cidade recebeu um dos três caminhões/teatro com tudo o que ele carregava. E, de novo e de novo, eles partiam de um lugar a outro, numa expressão máxima de ludicidade e democracia artística. "O Sesc sempre encarou a democratização das artes como um dos seus principais objetivos", disse o diretor regional da instituição em São Paulo, Danilo Santos de Miranda.

Marco zero

Foi da Praça da Sé, em São Paulo - e o fato de ser o marco zero da cidade não foi mera coincidência - que partiram os caminhões. Essa iniciativa possibilitou ao apressado público paulistano ter os dias 5, 6 e 7 de agosto para conferir o que o interior já ansiava, uma vez que as unidades do Sesc nessas localidades já vinham comunicando a seus frequentadores e moradores de cidades vizinhas com cartazes e panfletos de divulgação. "A grande importância desse evento é a renovação feita pelo Sesc ao divulgar o trabalho de artes cênicas e levá-lo também ao interior, onde a comunidade teve a chance de ver o trabalho de todos os artistas envolvidos", continua Miranda.

De fato, tanto os moradores da capital quanto das comunidades modestas do interior conheceram o que há de mais dramático e profissional em matéria de conglomerado artístico. Muito embora não faça mais sentido diferenciar esse ou aquele público num mundo onde a globalização nos faz denominadores comuns - como ressaltou Gerald Thomas, diretor teatral envolvido no projeto, criou-se uma certa curiosidade em saber de que maneira cidades como Motuca, Cedral ou Birigui receberam os artistas.

Não que pudesse haver problemas, mas estranhamentos parecem inevitáveis e imprevisíveis. "Nós não queremos aterrizar nas cidades como ETs, tumultuando o dia-a-dia das comunidades, e simplesmente ir embora depois", salientou o diretor regional na entrevista coletiva que marcou a abertura do evento. "Queremos a colaboração dessas pessoas, a mobilização dessas comunidades, incitar discussões e - por que não? - causar polêmica". A "polêmica" à qual se referiu Miranda é aquela saudável e bem-vinda, típica em platéias instigadas, uma vez que o próprio Sesc "afastou qualquer hipótese de ligação política e ressaltou o caráter essencialmente cultural do projeto", como definiu o diretor.

Lorca na rua, Lorca na estrada

Após um dia de apresentação na Praça da Sé, cada caminhão partiu rumo a uma cidade do interior que possui unidade do Sesc, de onde seguiu em uma pequena turnê, de uma semana, finalizando a festa novamente na cidade de onde partiu. Todas as onze unidades do interior e mais a unidade litorânea de Santos funcionaram como pontos de paradas para a mega trupe de artistas que percorreu dezenas cidades. Mauá, São Bernardo do Campo e São Caetano, na grande São Paulo, e, claro, a capital do estado, participaram do pacote de atrações, que reuniu um público espectador de aproximadamente oitenta mil pessoas. É público para superstar nenhum reclamar, nem mesmo Lorca.

Cidades como São Carlos, Rio Preto e Bauru foram as primeiras a receber os caminhões e o clima era de pura festa. "Gosto de toda essa agitação!", exclamou uma empolgada moradora. "Modifica o dia-a-dia da gente". Dinael Zanin de Freitas, gerente do Sesc Rio Preto, conta que nas cidades vizinhas a recepção e o interesse do público não podiam ter sido maiores: "Já tinha sido divulgado o que iria acontecer, então estavam todos na expectativa", explica. Mirassol e Badi Bassit, cidades com 60 e 10 mil habitantes respectivamente, receberam o caminhão de atrações na praça da matriz, onde, mesmo com a chuva que caía no primeiro dia, um público de quase duas mil pessoas prestigiou os artistas e a obra de Lorca, uma verdadeira manifestação de arte para todos. "São cidades que quase nunca têm acesso a esse tipo de manifestação artística", analisa Dinael. "Mas elas sentem falta disso, dá para perceber pela atenção e pelo respeito com os quais as pessoas assistiam às peças. Eles nunca tinha visto nada igual, ficaram encantados", comenta.

Em Agudo e Pederneiras, duas das cidades próximas a Bauru, o entusiasmo foi o mesmo. "O que aconteceu nessas cidades é uma boa mostra do trabalho que o Sesc já desenvolve habitualmente como fomentador cultural", conta Francisco Martins, gerente na unidade de Bauru. Ele ressalta ainda um ponto muito importante e que foi atingido com sucesso pelo projeto. Lorca na Rua promoveu uma integração definitiva entre a cidade que possui unidade do Sesc e suas vizinhas e mostrou que a unidade está lá para atender a comerciários e usuários de toda a região. "Isso amplia o trabalho do Sesc para além da cidade sede", diz. Francisco confessa que o que mais lhe impressionou foi a compenetração da platéia nas apresentações: "Eram quase mil pessoas por período de espetáculos, e o silêncio era impressionante. Todos preocupados em acompanhar com detalhes o enredo das peças", finaliza.

Três vezes Lorca

Em cada um dos três caminhões, bonecos dividiam espaço com atores e obras de arte e todos interagiam com o público, que, por sua vez, teve a chance de "conversar" com cada espetáculo. Isso contribuiu para a popularização dos trabalhos de Lorca, um dos principais objetivos desse projeto do Sesc.

Todos os espetáculos eram inteligíveis e convidavam a platéia de uma maneira ou de outra a participar. Encabeçando a lista de atrações do Caminhão 1, a peça Yerma, adaptada pelo diretor Romero Andrade Lima e realizada pela Companhia Circo Branco, tem início durante a finalização da montagem do cenário, quando uma parte do elenco "mexe" com a platéia e mistura música espanhola com sonidos nordestinos. Ao longo da história, os personagens movimentam-se no palco e mesmo fora dele, na rua, em volta do caminhão. Não se trata simplesmente de atores interagindo com a platéia, mas sim de personagens saltando da história para a realidade. "Nós seguimos as sugestões de montagem do próprio Lorca: desenhos e anotações de pé de página, e até mesmo as músicas", explica Romero.

Desenhos de Lorca foram a base para os figurinos e cenários, e dividiram espaço com elementos visuais dos também espanhóis Goya e Picasso, artistas que, na concepção do diretor, "têm um trabalho semelhante ao de Lorca, principalmente na sua visão em relação à guerra". As artes plásticas invadiram o teatro nesse trabalho da Companhia Circo Branco feito especialmente para o projeto do Sesc, que uniu também a linguagem literária e até cinematográfica, resultando no que Romero definiu ser "um ritual bárbaro de antagonismo ao cristianismo".

Ainda no primeiro caminhão, a artista plástica Shirley Paes Leme faz uma leitura da mesma Yerma com uma instalação artística. A soprano Ilda Sergi, o violinista Pedro Martelli e o poeta Edson Vargas dramatizam canções de Lorca, editadas por ele sob o título de Canciones Españolas Antiguas, no espetáculo Canto Profundo. O artista plástico Luis Duva mostra sua versão "eletrônica" do poema Pranto por Ignácio Sánchez Mejías na videoinstalação Pranto por Ignácios, e o grupo de teatro Ventoforte homenageia o autor com o espetáculo infanto-juvenil Sete Corações - Poesia Rasgada. O diretor do grupo, Ilo Krugli, explica como é se envolver com Lorca: "Ele tem muito a ver com o teatro do Ventoforte", diz, referindo-se ao caráter democrático que o autor conferia a seu trabalho. "Trata-se de um espetáculo aberto à participação da comunidade, e não é só para crianças, mas para todo o público". Krugli se empolga ao dizer que há um momento em que o espetáculo "se fecha" e abre para o público, uma apresentação essencialmente popular e colorida que conta a história de um poeta fuzilado a mando de pessoas que temiam a força de seus poemas, mas eles não morrem e é o próprio público, junto com os atores, que faz brotar novos poemas dos bolsos do artista morto.

Canções para Lorca

O Caminhão 2 tem o espetáculo principal assinado pelo diretor Gerald Thomas. O dramaturgo substituiu o título de sua obra original pelo simples e emblemático Cão Andaluz. No roteiro, o poeta lidera anjos, duendes e musas. Mesmo em meio a uma crise interior, o Lorca de Thomas caminha olhando para frente e conta com a participação de um personagem que fica na platéia para concordar com ele em alguns momentos e divergir completamente, em outros. "A realização desse trabalho sobre Lorca junto ao Sesc me deu a oportunidade de entrar em contato com o mundo desse poeta e escritor, cujos elementos eu pouco conhecia até então", diz o diretor, que se guiou na figura do escritor para elaboração do espetáculo. Segundo Thomas, "o universo de Lorca como pessoa é tão, ou mais, importante que sua própria obra. Agora que eu o descobri, estou adorando Lorca".

Entre as obras mais famosas do espanhol está a prosa Bodas de Sangue, de 1933. Na história, amor e morte flertam entre si a partir de campos opostos da alma. Os sentimentos dos personagens inspiraram a artista plástica Sandra Tucci na confecção da instalação Paixão Suspensa, um dramático painel composto por três mil rosas vermelhas, simbolizando a dor e a transcendência da paixão pela morte física. Os temas densos, característicos da obra de Lorca voltam à cena na voz de José Mauro Brant, famoso contador de histórias, que poeticamente ressuscita o autor, cantando para ele. Canção Para Lorca é um espetáculo que revela um olhar sensível às dores do povo, lamenta a inocência perdida e celebra a cultura popular.

Um pouco mais leve na forma, mas igualmente questionador no conteúdo, o texto que a Cia. Cínica de Belo Horizonte montou para o projeto Lorca na Rua é maquiado e bufante. Um aristocrata com um quoeficiente emocional do tamanho de uma ervilha apaixona-se por uma ardilosa donzela com a sutileza de uma serpente. O resultado é uma surpresa! Dom Perlimplim com Belisa em seu Jardim é o fruto de um ano e meio de ensaios e assopra humoradamente as cem velinhas de Lorca.

O terceiro e último caminhão traz, sob a direção de William Pereira, a peça A Casa de Bernarda Alba, em que a elitista e preconceituosa personagem título guia as filhas por um labirinto de isolamento e frustração. "Uma caixa de perversões", como definiu William.

A peça é encenada em um único cenário, representando a própria casa de Bernarda, e o diretor explica que fez questão de um teatro centrado, mesmo sendo encenado em espaços abertos, e que cada canto do palco fosse uma peça dentro da peça. "O que mais me fascinou nesse trabalho foi a beleza da obra de Lorca , o maior poeta dos últimos tempos, e também a possibilidade de levar a arte às pequenas cidades. Foi uma experiência incrível", conclui William.

Ainda no mesmo caminhão, o Grupo Pia Fraus expôs a inquietação da alma de Lorca por meio da manipulação de seus bonecos. O Malefício da Mariposa, a primeira peça de Lorca, trata da impossibilidade do amor fora de padrão e é dirigida a adolescentes, garantindo o aspecto variado dos projetos do Sesc.

A programação de todos os caminhões terminavam com um misto de festa cigana com celebrações vermelhas. Festa Lorca, Lorca em Movimento e Canções de Lorca funcionaram como um mix da programação de cada caminhão, unindo expressões artísticas andaluzas. Ritmos, música e números flamencos dividiam espaços com a brasilidade dos performers e artistas.

As peças, performances e todas as demais manifestações artísticas desse projeto tiveram a preocupação de revelar, da maneira mais lúdica possível, o trabalho do poeta, escritor e homem a frente de seu tempo que foi Lorca. E mais, reacender a chama de sua intrigante personalidade, deixá-la viva para esta e para futuras gerações. "O projeto tem o caráter de mostrar a obra de Lorca, de defender seus princípios de democratização da arte. Ele realizou um grande trabalho junto à sociedade de sua época, expondo sua verdade ao povo, viajando pelo interior da Espanha", como finaliza Danilo Santos de Miranda.

Novos Rumos

Ni tú ni yo estamos
en disposición
de encontrarmos.
Tú...por lo que ya sabes,
!Yo la he querido tanto!
Sigue esa veredita.
En las manos,
tengo los agujeros
de los clavos.
? No ves como me estoy
desangrando?
No mires nunca atrás,
vate despacio
y reza como yo
a San Cayetano,
que ni tú ni yo estamos
en disposición
de encontrarmos.*

* Nem tu nem eu estamos / dispostos / a nos encontrar. / Tu...pelo que já sabes. / Eu a amava tanto! / Segue essa trilhazinha. / Nas mãos / tenho os furos / dos cravos. / Não vês como me estou / dessangrando? / Não olhes para trás, / vai-te devagar / e reza como eu / a São Caetano, / que nem tu nem eu estamos / dispostos / a nos encontrar.

Os números de Lorca na Rua

3 caminhões cheios de artistas, figurinos e cenários, 75 cidades no roteiro do projeto300 pessoas envolvidas, entre técnicos, artistas e pessoal de apoio, 6 mil quilômetros percorridos, 780 horas de programação ao público, 80 mil espectadores é o público estimado, 6 metros de comprimento por 4,2 de altura é o tamanho de cada caminhão.

Brevíssima biografia

Escritor, poeta e dramaturgo, Federico García Lorca (1898-1936) nasceu em Fuente Vaqueros na Espanha e teve sua poesia influenciada pelo folclore espanhol e pela arte cigana. Estudou piano com Antônio Segura e Francisco Beniteze. Antes de contemplar trinta anos, já colecionava amigos famosos como o pintor Salvador Dalí, o cineasta Luís Buñuel e o também poeta Rafael Alberti.

Em 1928, Lorca conseguiu fama internacional com a publicação do livro de poemas Romancero Gitano. Nos anos seguintes, viajou aos Estados Unidos e Cuba. Nessa época escreveu Poeta em Nova York, publicado postumamente em 1940. Em 1931, tornou-se diretor de teatro e formou o grupo de teatro mambembe de estudantes La Barraca. Suas obras mais famosas são a trilogia de dramas composta por Bodas de Sangue (33), Yerma.(34) e A Casa de Bernarda Alba (36), todas peças incluídas na programação de Lorca na Rua, com montagens exclusivas.

A maioria de seus trabalhos tem como temas o amor, o desejo, a morte, a maternidade e, sobretudo, a crueldade e a violência. Lorca foi fuzilado em 19 de agosto 1936 pelas tropas nacionalistas do general Francisco Franco, na estrada que liga Granada a Viznar.