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Anti-herói dos quadrinhos

 

Autor da peça O que você foi quando era criança, o desenhista e escritor Lourenço Mutarelli afirma: “Acho mais graça no espelho”

 

O paulista Lourenço Mutarelli é um quadrinista diferente. Seus heróis não têm superpoderes, tampouco voam ou têm traços apolíneos. Aliás, Diomedes, um de seus mais famosos personagens, é um perdedor. “A diferença é que ele sabe disso”, alfineta o desenhista com o habitual sarcasmo. Mutarelli começou a carreira há 14 anos nos estúdios Mauricio de Sousa, em que trabalhou por três anos. Entusiasmado pelo crescimento dos quadrinhos na década de 80, tentou lançar suas histórias, mas elas foram consideradas sombrias demais. Foi então que resolveu publicar de modo independente as revistas Over-12, em 1988, e Solúvel, no ano seguinte – com tiragem de 500 exemplares cada uma. Hoje, são consideradas raridades e encontram-se muito bem conservadas nas mãos de seus fiéis leitores. Publicou nove álbuns de quadrinhos e, em 2002, abraçou a literatura com Cheiro do Ralo, seu primeiro romance. “Creio que foi o início de uma nova fase, pois depois disso escrevi mais dois livros”, conta, citando Natimorto e Jesus Kid, ambos de 2004. No ano passado, Lourenço escreveu também uma peça de teatro, O Que Você Foi Quando Era Criança, em cartaz no Sesc Belenzinho. A programação da unidade traz ainda uma exposição com originais de várias fases do autor.

 

 

Desenho possível

 

Desde muito cedo, eu costumava desenhar e acabava incluindo uma frase ou uma palavra. Talvez porque sentisse que esse mundo imagético era muito subjetivo. É claro que estou me referindo somente às minhas imagens. Não desenho como quero, desenho como consigo. Por outro lado, sempre que escrevia algo, acabava fazendo um rabisco nas margens; talvez nesse momento eu tenha passado a prestar mais atenção nas histórias em quadrinhos. Percebi que, assim, além de me expressar, eu conseguia me comunicar. Acabei esquecendo que um dia eu queria pintar somente quadros. Faço quadrinhos por não conseguir não fazer. Não tenho dogmas e, honestamente, não procuro mostrar nada. Quanto à inspiração, talvez ela não passe de um distúrbio patológico.

 

 

Meu herói

 

Não considero meus heróis atípicos, muitas vezes fico impressionado com a leitura que as pessoas fazem de meu trabalho. Não que eu considere uma leitura equivocada. O que me impressiona é que as pessoas se chocam e acabam achando um tanto desiludida ou pesada a minha obra. Isso me surpreende, porque meu trabalho, obviamente, reflete minha visão de mundo, e há momentos em que não consigo enxergar isso, embora esteja tudo lá. Procuro falar sobre o homem comum e para mim todos os homens são comuns. Não existem heróis. Mas também não sei se é o caso de considerar todos anti-heróis. Acho o ser humano patético e medíocre.

 

 

Influências

 

Tenho admiração especial por Machado de Assis, Augusto dos Anjos e Elomar [Elomar Figueira de Melo, cantador, compositor e violeiro baiano que desenvolve trabalho inspirado no romanceiro medieval e no cancioneiro nordestino], três brasileiros que foram muito importantes para minha formação. Com certeza o livro Eu (1912), de Augusto dos Anjos, me inspirou muito. Quanto a Machado e Elomar, seria mais preciso dizer que encontrei conforto e identidade do que propriamente inspiração. E tudo me influencia – inclusive, talvez, minha maior influência seja o dia-a-dia –, e, quando algo me toca, quando leio um livro que me emociona ou ouço uma música que me sensibiliza, não me importa de onde vem seu criador.

 

 

Cenário

 

O cenário de quadrinhos no Brasil é muito triste. Não há lugar para os novos, e os poucos que dominam o pequeno espaço demonstram cansaço e parecem fazer por obrigação. Quando comecei, existiam inúmeras revistas de banca em que os novos podiam encontrar um pequeno espaço para mostrar seu trabalho. Atualmente, não há nenhuma revista desse tipo em nenhuma banca. A maioria dos quadrinistas acaba migrando para ilustração de livros e revistas, alguns poucos conseguem fazer quadrinhos para as grandes editoras norte-americanas como “quadrinistas-fantasmas”. Eu diria que alguns dos melhores lugares do mundo para trabalhar com quadrinhos são a França e a Bélgica. São o paraíso dos quadrinhos. Na França, acontece a principal feira de quadrinhos do mundo e a qualidade temática das publicações é muito mais adulta e autoral. Isso sem falar no Japão, que é o maior produtor de história em quadrinhos. Lá, os quadrinhos ainda são um produto de massa.

 

 

Dá para mudar?

 

Acho praticamente uma utopia mudar a situação no Brasil. Levaria muito tempo, trata-se de um problema cultural e social. O futuro dos quadrinhos, que um dia foi um produto de massa, está apontando para tiragens cada vez menores e mais caras, na forma de álbuns ou livros a ser vendidos em livrarias. O Brasil, que nunca foi um grande mercado de quadrinhos adultos, chegou a viver um período nos anos 80 em que uma revista vendia mais de 100 mil exemplares por mês. Atualmente um álbum de quadrinhos é um best-seller quando vende 3 mil exemplares em um ano.

 

 

“Não me reconheço no humor”

 

Infelizmente, o Brasil tem uma tradição muito forte que vem do tempo das charges e migrou para os quadrinhos. Diferentemente de outros países, aqui existe uma maior produção de histórias em quadrinhos de humor. E, infelizmente, a nossa tradição humorística é a de rir do outro, é de apontar o dedo e rir daquele que cai, é isso o que me incomoda no humor. Sempre encontrei muito mais graça no espelho.

 

 

Como eles nascem

 

Não sinto a gestação de um personagem porque estou o tempo todo gestando. De vez em quando, surge um que me estimula mais. Diomedes, por exemplo, um de meus personagens mais conhecidos, nasceu do desejo de contar histórias mais próximas do universo dos quadrinhos. Diomedes é minha humilde homenagem a esse universo do qual passei a fazer parte, de tanto admirar. Ele é um perdedor como todos nós. A diferença é que ele sabe isso.

 

 

E agora, o teatro

Em abril estreou no Sesc Belenzinho meu primeiro texto teatral, O Que Você Foi Quando Era Criança, que está sendo encenado pela Companhia da Mentira. A peça fala sobre as pessoas que estão na faixa de 30 a 40 anos e não conseguiram atingir o sonho que projetaram na infância, ou simplesmente se esqueceram dele. O texto fala dos papéis sociais que a sorte acaba nos reservando. Junto com a peça, está em cartaz também no Sesc Belenzinho uma exposição de desenhos meus feitos ao longo dos meus 14 anos de carreira; a seleção do material é minha, em parceria com André Cortez, cenógrafo da peça. Escolhemos, talvez, o que era mais vistoso nesse período. Optei também por colocar esboços e desenhos inacabados, porque é neles que se pode compreender o processo. Talvez eu esteja ainda mais distante do pintor que projetei um dia e é justamente esse o assunto da peça. De quanto nos distanciamos, pelas circunstâncias ou pelos acidentes, do caminho que trilhamos. Hoje eu sei o que fui quando era criança.