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Ficção Inédita

Natureza

 

Reinaldo Moraes

 

Bonito, Mato Grosso do Sul, a uns 250 quilômetros de Campo Grande, lugar pródigo em rios, grutas, cachoeiras e pernilongos gigantes que de perto davam a impressão de pterodáctilos vistos de longe. Nunca vi tão grandes. Um dos mais belos portais de entrada do Pantanal Mato-grossense, segundo o folheto. Os meninos aprendem ecologia na escola e queriam ver um meio ambiente de perto. Eu, de minha parte, me contento com o canal da National Geographic, mas, enfim, a infância clama por experiências reais, fazer o quê.

 

Ficamos numa pousada, um sítio a dez minutos da cidade de Bonito, e a 50 metros do Rio Formoso. Logo que chegamos, eu e a Giza estávamos um bagaço da viagem, mas os garotos foram andar a cavalo em torno da sede. Reclamaram, especialmente o Bernardo, o mais velho, que os cavalos eram uns pangarés. Mas quem eram aqueles dois pivetes? O Buffalo Bill e o Billy the Kid? Pegaram também carrapato andando pelo mato. Estavam de botas de borracha e foram instruídos para ver bem onde pisavam. “Cobra tem no mundo todo”, advertiu a dona da pousada. “Até em São Paulo tem cobra”, ela acrescentou. Ia me lembrar disso da próxima vez que subisse ou descesse a pé a Teodoro Sampaio ou entrasse num shopping dos Jardins, ironizei em silêncio. Em todo caso, os moleques se divertiram arrancando-se eles mesmos os carrapatos com uma pinça da Giza, o Vicente declarando-se campeão absoluto em número de inimigos abatidos.  

 

No dia seguinte, fomos fazer “flutuação” no Rio Sucuri, a uns 20  minutos de carro da pousada. Um instrutor nos acompanharia de perto o tempo todo – uma instrutora, como calhou de ser, loira-mel de pele trigueira e corpo sarado de malhadora profissional. Chamava-se Serena, mas me deixou irrequieto só de olhá-la com seu maiô discreto a moldar-lhe perfeitamente os seios pequenos e a nadegotas de pêra dura. Portava também o que se chama de simpatia contagiante, além de pequenas crateras de antigas espinhas nas faces, mais um narizinho petulante de fadinha e uns beiços gordos e mastigáveis que eu jamais haveria de beijar. Ou mastigar. Dei-lhe uns 20 e poucos anos e me deliciei com seu forte sotaque interiorano, paulista me pareceu. Porque, porta, portêra (passamos por duas até chegar no Sucuri), tarde. Êta nóis!

Mas não tive oportunidade de perguntar de onde ela era. Serena já foi me dando um macacão de neoprene, máscara e snorkel, além de um robusto colete salva-vidas. Quando foi me ajudar com a correia do salva-vidas, tentando encaixar o fecho de plástico sobre a minha pança, comentou: “Carecendo dumas abdominais, hein, tio?” Aquele tio definiu tudo. Realmente, para beijar aquela boca da Serena, tirando algum milagre erótico, só mesmo se eu me afogasse naquele riozinho e ganhasse dela um boca-a-boca reanimador.  Porém, com aquele colete capaz de sustentar à tona a Estátua da Liberdade em meio a um maremoto, qualquer possibilidade de afogamento estava desde logo afastada.

 

E lá fomos nós rio abaixo, eu de lanterninha, todos flutuando sem problemas, caras enfiadas n’água, respirando pelo bocal do snorkel. Respirando e engasgando a cada dois minutos, no meu caso, com a água que insistia em entrar pela extremidade superior do tubo. Às vezes eu engasgava feio. Mas nada que viesse a justificar um boca-a-boca por parte dos lábios serênicos. Melhor mesmo era tirar a moça da cabeça, pra não estragar o passeio.

 

A Giza e os meninos se deslumbravam a céu aberto com as maravilhas que a módica quantia de 35 paus per capita oferecia aos nossos olhares urbanóides. Por esse  preço, pensei, a água poderia estar, senão morninha, pelo menos não tão desgraçadamente fria.

 

Batendo o queixo, eu me esforçava para contemplar a paisagem nipônica à tona e, no fundo do rio, os aguapés e salvínias flutuantes, a vegetação exótica submersa tremulando ao sabor da correnteza, as pedras ornamentais, os troncos caídos com senso decorativo, os liquens fosforescentes, as conchas e caramujos coloridos no leito arenoso, peixinhos ornamentais de todo tamanho e mescla de cores, alguns com formatos caprichosos, outros banais, singelos, anônimos. O melhor item da fauna, entretanto, era o corpinho neoprenizado da nossa sereia fluvial, que eu filava acima e abaixo da linha d’água. Sei que é estúpido dizer isso, mas aqueles lábios beijudos da Serena não me saíam da cabeça.

 

Os meninos e a Giza, em êxtase permanente, não paravam de apontar seres e coisas por toda parte, “Olha! Que incrível! Que legal!” No começo eu abanava a cabeça concordando. Depois, nem isso. Não sei o que acontece comigo, ou com as belezas naturais. O fato é que nós não nos comunicamos com facilidade.

 

E dá-lhe mais peixes, pedras, vegetação aquática etc. Acabei assumindo a vanguarda da expedição, pois nem sempre me detinha para apreciar o décor e ouvir as explicações enlatadas da loirinha, com seus lábios molhados brilhando ao sol. Por que é que esses pacotes ecológicos não incluíam beijar os lábios suculentos da instrutora em plena natureza? – eu arfava em pensamento.

 

Para não me afastar demais, especialmente nos trechos em que a correnteza andava mais rápido, eu tinha de mover braços e pernas com certa energia e coordenação, isto é, nadar, o que não era em si um grande esforço, mas os 25 a 30 cigarros que eu queimo por dia logo apresentaram sua fatura. Meu fôlego estava uma droga. Uma grandíssima droga, para ser mais exato.

 

Foi aí que eu vi: uma cobra imensa nadando a dois palmos da minha cara. Passou sinuosa por mim, sem muita pressa, e não parecia nenhuma cobrinha d’água, não. Tinha mais de 1 metro e era bem robusta, uma força da natureza. Aquilo parecia praga da dona da pousada. Apesar de a serpente me ignorar completamente, o susto que ela me pregou foi tão violento que eu deixei entrar água de novo pelo tubo do snorkel – muita água, dessa vez. O susto virou pânico quando perdi a cobra de vista. Achei que ela podia estar armando um bote pelas minhas costas. Se fosse um filhote de sucuri, iria se enrolar no meu pescoço para me estrangular.

 

Com cobra ou sem cobra, a questão é que eu não conseguia mais respirar. Nem tossir eu conseguia. Alguma coisa impedia a passagem do ar dentro da minha garganta. Me vi espadanando n’água feito um peixe fora dela, à tona, mas sem ar, sem esperança, e sempre arrastado pela correnteza. Tentei enfiar o dedo goela abaixo para forçar uma desobstrução, um laceamento da tubulação interna, qualquer coisa. Em vão. Paniquei: Bonito ia ser o meu portal de saída da vida. Eu sempre soube que não podia confiar na natureza.

 

Aí, mais nada.

 

Quando dei por mim, jazia de costas no chão enlameado da margem. Achei – juro, por todas as cobras e jacarés do Pantanal –, achei que tinha trazido algum sonho comigo desde algum lugar muito profundo e longínquo para vivê-lo na realidade. Só podia ser isso, pois Serena colava sua boca à minha com uma sofreguidão que me pareceu apaixonada. Demorei para me convencer de que aquilo estava me acontecendo de fato, e não era apenas mais uma tola fantasia minha com os lábios da sereia do rio.

 

Ao mesmo tempo que apertava meu nariz e puxava meu queixo para baixo, ela esborrachava seus lábios vigorosos em torno da minha boca aberta, até encobri-la totalmente, insuflando ar quente lá para dentro, como se tentasse inflar um balão murcho e ressecado. A cada instante ela interrompia o beijo arejador para repousar suas mãos superpostas sobre o meu peito, pouco acima do externo, e dar-me uns trancos dolorosos no tórax que me faziam estalar o velho esqueleto.

 

Em pouco tempo eu já conseguia respirar de novo sozinho. A má notícia  é que, com isso, os beijos de Serena cessaram completamente. As caras de Serena, da Giza e dos meninos avultavam aflitas sobre mim. “Já passou, já passou”, tranqüilizava  minha salvadora, tomando meu pulso, de olho em seu relógio cebolão. “Os batimentos cardíacos do senhor tão normais agora.” Fiz um gesto na direção do rosto daquela sereia loira recortada contra o azul absoluto do céu, sem chegar a tocá-lo. Meu braço estava muito fraco para conduzir minha mão a qualquer lugar que fosse.

 

“Espasmoconstrição da traquéia”, foi o que Serena diagnosticou, quando pude relatar as circunstâncias do meu afogamento: a cobra rajada de preto e amarelo (uma boipevaçu, Serena concluiu, não-venenosa mas muito agressiva), o susto, a água engolida pelo snorkel, o ar que não vinha. O pânico, ela pontificou, tinha potencializado o choque térmico provocado pela aspiração repentina de grande quantidade de água fria, provocando a contração da musculatura lisa da traquéia, o que impediu a passagem do ar.

 

Eu tinha uma explicação mais simples: o fato de eu ter cobiçado tão intensamente os lábios de Serena tinha de algum jeito mágico conjurado os elementos da natureza de forma que eu viesse a tocá-los com os meus. Eu tinha virado protagonista de uma fábula natureba: o beijo da princesa restituindo o sapo gordo à vida, algo assim. E os meninos ainda vieram me sarrear mais tarde, longe dos ouvidos da mãe: “E aí, pai? Foi manero beijar a gata?” Eu disse que sentira falta de música romântica e de um uisquinho, mas que, fora isso, tinha sido legal, sim. 

 

De volta à base de campo da agência de turismo ecológica, onde começara nossa aventura, eu e minha relaxada traquéia, agradecidos, autografamos um chequinho recompensador a Serena, que esboçou um inconvincente “O senhor não precisava se incomodar”, enquanto dobrava o cheque e o enfiava num compartimento de sua mochila. Giza comentou depois que esses sustos têm seu lado bom: a gente aprende o valor da vida.

 

“Mil reais”, comentei.

 

“Quê?”, fez a Giza, desentendida.

 

“Nada”, eu disse, pensando se, em vez de 1.000, não deveria ter dado apenas 500 à dona dos lábios salvadores. Quinhentos já estariam de bom tamanho. E completei, um tanto mal-humorado:

 

“Vamos almoçar, Giza. Sabe que morrer me abriu o apetite?”

 

Reinaldo Moraes é autor de A Órbita dos Caracóis (Companhia das Letras, 2003), entre outros

Ilustrações: Marcos Garuti