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Transposição do São Francisco, uma idéia tão antiga quanto polêmica

ALBERTO MAWAKDIYE


Água em Manari (PE): abastecimento precário 
Foto: Henrique Pita

Desta vez, não é a falta de recursos ou de vontade política que está atrapalhando a centenária proposta de levar as águas do rio São Francisco para o semi-árido nordestino. Considerado prioritário pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o projeto de transposição já tem verba assegurada e até um cronograma de obras, cuja conclusão está prevista para pouco antes de 2010. Nem assim há garantias de que irá deslanchar. A proposta tem encontrado pesada resistência por parte de políticos, técnicos, ambientalistas, populações ribeirinhas, comunidades indígenas e até de setores da Igreja Católica. Ao governo já não resta nenhuma dúvida de que terá de se empenhar muito se quiser realmente levar a obra até um ponto em que se torne irreversível.

O projeto, que foi desenvolvido sob a responsabilidade do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, prevê a transferência, por canais artificiais, de 1% a 2,5% da vazão média do São Francisco para os rios intermitentes da região do Polígono das Secas, uma área de 900 mil quilômetros quadrados (equivalente à da Venezuela) localizada principalmente dentro dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, que formam o chamado nordeste setentrional. O São Francisco responde, sozinho, por 70% de toda a oferta de água da região, mas por conta de sua localização (ao sul de Pernambuco) deixa de atender mais de 9 milhões de pessoas que vivem no semi-árido.

O índice médio de disponibilidade de água dessa população é um dos mais baixos do planeta - 500 metros cúbicos por habitante/ano -, o equivalente a metade do mínimo estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a vida sustentável.

A estratégia do governo é não apenas suprir de reservas de água a população da região, mas também promover, por meio do estímulo à agricultura familiar e especialmente ao plantio comercial irrigado, incluindo a fruticultura, tida como uma boa geradora de empregos, o desenvolvimento socioeconômico daquela parte do Brasil - considerado indispensável para o conjunto do país. As estiagens recorrentes no semi-árido, algumas das quais foram responsáveis pela morte de milhões de brasileiros (como na segunda metade do século 19), além de limitar o crescimento, transformam as camadas mais pobres da população do Polígono das Secas em refugiados crônicos.

Sem alternativa, vastos contingentes de nordestinos - os "retirantes" - são obrigados a migrar num fluxo ininterrupto para o litoral, o sudeste e o centro-oeste, levando ao crescimento desordenado das áreas metropolitanas. "O projeto é regional, mas terá, certamente, alcance nacional", resume João Urbano Cagnin, coordenador técnico do Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, como foi batizado oficialmente o plano de transposição.

O Ministério da Integração Nacional pretende começar os trabalhos com recursos da ordem de R$ 635 milhões, a serem repassados pelo Orçamento Geral da União - o valor é quase 40% menor do que o pouco mais de R$ 1 bilhão que o governo tinha a intenção de investir inicialmente. O projeto inteiro foi orçado em R$ 4,5 bilhões, sem contar as obras complementares, como adutoras, que deverão levar as águas do São Francisco até os consumidores. Essa incumbência ficará a cargo dos estados.

Em termos estritamente técnicos, é um projeto praticamente idêntico ao desenvolvido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, antecessor de Lula. Fernando Henrique acabaria por abandoná-lo devido às mesmas pressões político-ambientalistas enfrentadas agora pelo atual governo. O baixo nível do rio São Francisco durante a grande seca da virada dos anos 2000 também contribuiu para a decisão de FHC.

Simplicidade

Apesar de polêmico e ambicioso, o projeto de transposição é, conceitualmente, bastante simples, e o custo, sem dúvida elevado quando visto isoladamente - R$ 4,5 bilhões -, deixa de parecer tão alto quando comparado ao que o governo costuma gastar com os atendimentos emergenciais às vítimas da seca no semi-árido. Foram cerca de R$ 2,2 bilhões apenas nas grandes estiagens de 1998 e 2000.

Em linhas gerais, o projeto consiste em um sistema de canais de concreto a céu aberto que levará a água do rio São Francisco - que não será desviado do seu curso - para alguns grandes açudes já existentes no semi-árido, de onde ela será redistribuída pelos rios intermitentes do Polígono, conforme necessidades pontuais, criando a chamada "sinergia hídrica" na região. As águas do São Francisco servirão, na verdade, como uma espécie de reserva estratégica do sistema hídrico do semi-árido. Serão seis as bacias hidrográficas diretamente beneficiadas pela integração com o Velho Chico.

Para que as águas cheguem na pressão e quantidade necessárias, e para superar as serras e morros existentes pelo caminho, os canais serão dotados de um complexo de nove estações de bombeamento, oito túneis, 27 aquedutos e 35 reservatórios de pequeno porte.

"Para um país que é um dos maiores construtores mundiais de barragens e já ergueu usinas hidrelétricas do porte de uma Itaipu e de uma Tucuruí, o projeto de transposição não apresenta nenhum grande desafio técnico", analisa o engenheiro Rubem La Laina Porto, consultor e professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). Porto lembra que o país já realizou algumas obras de transposição de menor porte, a partir dos anos 1960, principalmente para finalidades de abastecimento urbano.

Os canais, que terão no total cerca de 620 quilômetros, cortarão o Polígono das Secas em duas direções, norte e leste. As águas dos dois eixos de distribuição serão captadas em pontos distintos do rio São Francisco, ambos localizados depois da barragem de Sobradinho, na Bahia, já em municípios de Pernambuco, que é banhado pelo rio em um trecho meridional. O maior canal - o chamado Eixo Norte, com 402 quilômetros de extensão - terá início na altura do município pernambucano de Cabrobó e seguirá em direção às bacias dos rios Brígida (PE), Jaguaribe (CE), Apodi (RN) e Piranhas-Açu (PB-RN). Já o Eixo Leste, de 220 quilômetros, começará na represa de Itaparica e atingirá as bacias dos rios Moxotó (PE) e Paraíba (PB) . Em alguns pontos dos trajetos, os canais serão constituídos pelas próprias calhas de alguns rios do semi-árido, dispensando a execução de obras civis.

Com os dois eixos em operação, serão atendidas, por meio de adutoras, as necessidades hídricas também de alguns municípios importantes do agreste pernambucano, como Caruaru, e cidades como Campina Grande, a segunda maior da Paraíba, que convive há anos com racionamentos.

Ecossistema

O temor dos adversários do projeto, que se concentram, compreensivelmente, nos estados de Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas, é que a transferência das águas e a conseqüente redução da vazão possam destruir de vez o já combalido ecossistema do Velho Chico. Os críticos reconhecem que o volume hídrico a ser transferido pelos canais de transposição não é, em si, muito grande. Mas advertem que o São Francisco está tão enfraquecido pela excessiva utilização humana que qualquer nova interferência no regime das águas poderá pôr o rio a perder.

A vazão média do São Francisco é de 2.850 metros cúbicos por segundo. A previsão é que, nos anos de estiagem na região, sejam transpostos pelo menos 26 metros cúbicos por segundo de água. A capacidade instalada do sistema será de 127 metros cúbicos por segundo, para que a captação menor dos anos de estiagem possa ser compensada depois, nos períodos de chuva, nunca ultrapassando, porém, a média máxima de 63 metros cúbicos por segundo.

Mas, de fato, com 2,8 mil quilômetros de extensão, o São Francisco é hoje um rio fragmentado pelas várias utilizações de que é alvo, desde a sua nascente, na serra da Canastra, em Minas Gerais, até a foz no oceano Atlântico. As atividades econômicas incluem desde a extração de carvão para a indústria siderúrgica em Minas Gerais até programas de irrigação e de pecuária na Bahia, da pesca e do turismo em Sergipe ao uso industrial, espalhado ao longo de todo o seu percurso.

O Velho Chico é também o principal fornecedor de energia hidrelétrica do nordeste, atendendo quase a totalidade das necessidades da região (o sistema supre 14% do consumo do país). Apenas na calha do São Francisco existem cinco usinas hidrelétricas administradas pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (Chesf) - Sobradinho, Itaparica, Moxotó, Complexo de Paulo Afonso e Xingó. O uso das águas para finalidades hidrelétricas "domou" o São Francisco, com os ritmos de vazão sendo modificados segundo as necessidades da Chesf, com óbvias repercussões ambientais.

Essa desenfreada manipulação humana do São Francisco poluiu as águas, erodiu as margens e transformou o antes rico ecossistema vegetal e animal numa sombra do que era há algumas décadas. A erosão também está fazendo com que o mar invada cada vez com mais força a foz do São Francisco, aumentando o índice de salinidade.

A própria bacia do São Francisco, de 634 mil quilômetros quadrados e composta por 80 rios perenes e 27 intermitentes, vem sendo usada de maneira indiscriminada, por conta do desenvolvimento populacional e econômico registrado nos últimos anos em Minas Gerais, no cerrado do Brasil central e no nordeste meridional. Há na região da bacia nada menos do que 504 municípios (incluindo algumas cidades do leste do estado de Goiás e o Distrito Federal), e a população em sua zona de influência já supera os 13 milhões de habitantes. E a tendência é o Velho Chico tornar-se cada vez mais sobrecarregado, com os novos projetos econômicos previstos para a área da bacia.

"O São Francisco está em tão má situação que deveria ser amplamente revitalizado, antes de se pensar em usá-lo como doador de água", critica Jorge Khoury, secretário de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia e vice-presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco. "O rio está doente, cansado, e o projeto de transposição certamente irá piorar seu estado. Ele não vai agüentar um uso tão pesado como esse sem um tratamento prévio."

Reconheça-se, porém, que o governo embutiu um cronograma de revitalização no próprio projeto de transposição, embora ele seja considerado demasiadamente tímido pelos opositores. Compõem o pacote 24 programas compensatórios voltados para a educação ambiental, salvamento de bens naturais e arqueológicos e recuperação de áreas erodidas e degradadas, alguns dos quais já começaram a ser executados.

Esses programas de recuperação receberam um investimento de R$ 26 milhões no ano passado, e mais R$ 100 milhões estão garantidos no orçamento de 2005. Já o Ministério das Cidades está, de sua parte, investindo R$ 620 milhões em obras de saneamento em mais de 80 municípios situados ao longo da bacia, para reduzir o impacto da poluição doméstica e industrial.

O governo pensa ainda em vincular às ações de revitalização parte dos royalties pagos pela Chesf aos estados e municípios da região para compensar o uso da água na geração de energia. Desde que esses royalties foram tornados obrigatórios pela Constituição Federal de 1988, a Chesf já despendeu neles R$ 1,35 bilhão (correspondentes a 6% de seu faturamento bruto), mas o dinheiro jamais foi investido no São Francisco. Os estados e prefeituras vêem a proposta do governo federal com desagrado.

Liminares

O mais grave para o governo é que a oposição ao projeto de transposição, à medida que a data do início das obras se aproxima, vem deixando cada vez mais para trás os limites do debate parlamentar e pela imprensa. Além de a chuva de liminares que determinam a suspensão da obra continuar a cair sobre o governo federal, manifestações crescentemente ruidosas vêm sendo organizadas pelos adversários do projeto nas margens do Velho Chico - com o apoio mais ou menos ostensivo de alguns governadores. Praticamente todas as liminares e manifestações baseiam-se nos possíveis danos ambientais que seriam provocados pela transposição.

As críticas já haviam aumentado de intensidade nas próprias audiências públicas obrigatórias que o governo promoveu entre o final do ano passado e o começo deste, com o objetivo de conseguir para o projeto a indispensável licença prévia ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sem a qual não seria possível concluir o processo de licitações para a obra, iniciado em fevereiro passado. Por ironia, essas críticas foram ancoradas, principalmente, no próprio Relatório de Impacto Ambiental (Rima) encomendado pelo Ministério da Integração Nacional em 2004, que listou 44 possíveis impactos que poderiam advir da construção dos canais. Desses, apenas 12 são positivos: entre eles, a geração de empregos, a garantia de abastecimento das populações do semi-árido e a redução do êxodo rural. A maioria dos impactos refere-se a efeitos nocivos que o projeto poderia provocar, como perda de terras férteis ao longo do São Francisco, queda da geração de energia elétrica, ameaça à fauna terrestre e redução da biodiversidade aquática.

Há ainda, entre os impactos negativos levantados, vários que atingiriam as próprias regiões receptoras, como modificação e redução das comunidades biológicas aquáticas nativas das bacias, eventual interferência sobre a pesca nos açudes e alteração do regime das drenagens, além de perda e fragmentação de cerca de 430 hectares de áreas com vegetação nativa e de hábitats de fauna terrestre.

Afora as objeções de ordem ambiental, vem reunindo também adversários contra o projeto de transposição o fato de o governo ter afastado, quase sem discussão, outras possíveis soluções para o problema da seca no semi-árido, que seriam mais rápidas e baratas. Isso deu ao projeto de transposição um viés autoritário que não melhora em nada a imagem dele aos olhos dos opositores.

A gestão mais racional e sem desperdícios das próprias águas armazenadas nos açudes - cujo volume é comumente satisfatório no Ceará e no Rio Grande do Norte -, um sistema de captação mais elaborado das águas da chuva e a busca por reservas subterrâneas (que existem, em alguma quantidade e com boa qualidade, nos aluviões dos rios e em fraturas do subsolo, por exemplo) foram algumas das propostas apresentadas pelos críticos como alternativas à transposição. Um sistema de distribuição tecnologicamente mais moderno e capilarizado no semi-árido fazia parte dessas proposições. Todas ignoradas.

A implantação de açudes comunitários e a montagem de cisternas domésticas foram outras opções apresentadas pelos opositores sem grande repercussão, para que a população pudesse recolher, armazenar e gerenciar a sua própria água. "As cisternas podem ter enorme utilidade nas regiões secas", afirma o sociólogo paulista Marco Antonio Villa, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e autor do livro Vida e Morte no Sertão: História das Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20. "Além do mais, o custo de um programa de massificação desses equipamentos seria baixíssimo."

Segundo Villa, o investimento para dotar 1 milhão de famílias com cisternas caseiras não ultrapassaria R$ 600 milhões. Esses equipamentos, com custo unitário entre R$ 500 e R$ 600, vêm sendo, aliás, distribuídos há alguns anos na região por organizações não-governamentais e outras ligadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e sua eficiência é, curiosamente, reconhecida pelo próprio Ministério da Integração Nacional. Os técnicos do ministério, entretanto, vêem a cisterna como um recurso apenas emergencial. Segundo eles, as cisternas requerem áreas de telhado de tamanho razoável para abrigar os pontos de captação da água da chuva, e sua capacidade pode esgotar-se nas secas prolongadas.

Além do mais - dizem os técnicos -, a disseminação das cisternas não produziria modificações estruturais na vida dos habitantes do semi-árido e tampouco promoveria a inserção econômica da população rural, que estão implícitas no projeto de transposição. Deixariam tudo mais ou menos como está, apenas com um pouco mais de garantia de água nas casas.


 O sertão tem sede de irrigação

Além do abastecimento, projeto pretende alimentar agricultura familiar

Projetos de transposição hidrográfica, como o do São Francisco para os rios intermitentes do nordeste setentrional, não são exatamente uma novidade no Brasil. A tecnologia é usada há algumas décadas para abastecer de água algumas regiões metropolitanas do país, como São Paulo, Rio de Janeiro, o Distrito Federal e a própria Fortaleza, capital do Ceará, um dos estados que serão beneficiados pelo projeto.

Em todas essas transposições, as águas são levadas de bacias vizinhas até determinados rios das capitais através de canais. Parte da cidade de São Paulo é, assim, abastecida pela bacia do rio Piracicaba, e o Rio de Janeiro pelo Paraíba do Sul, por exemplo.

A diferença da transposição do São Francisco em relação aos projetos precedentes é sua extensão - no total, serão cerca de 620 quilômetros de canais - e o uso mais variado que será dado à água. Nos sistemas já implantados no Brasil, o objetivo básico é o abastecimento humano e industrial. Além desse uso, as águas do Velho Chico serão empregadas também em projetos de irrigação. A agricultura familiar de subsistência será igualmente beneficiada.

O porte e a destinação aproximam a transposição do São Francisco de alguns grandes projetos executados em outros países ao longo do século 20. Na década de 1930, os Estados Unidos levaram as águas de três rios (entre eles o Colorado) para o deserto da Califórnia, região que se tornaria depois uma das maiores produtoras de alimentos do mundo, com importantes núcleos agroindustriais.

Duas décadas antes, os norte-americanos já haviam levado as águas do lago Mono e do vale do Owens para as plantações de laranja das imediações de Los Angeles, também na Califórnia. A cidade passou igualmente a ser abastecida com essas águas. O mar de Aral, no Cazaquistão, país da Ásia central que integrava a antiga União Soviética, teve suas águas desviadas para projetos de irrigação de algodão e para consumo humano e industrial.

Espanha, Austrália, Peru, África do Sul e Sudão também realizaram transposições com o objetivo misto de abastecimento humano e irrigação. O padrão de uso da água nesses casos é de 70% para a agricultura irrigada e 30% para outros fins, e deverá ser adotado no caso do São Francisco.

Embora bem-sucedidos do ponto de vista humano e econômico, praticamente todos os projetos de transposição desenvolvidos no exterior para finalidades múltiplas acarretaram algum tipo de prejuízo ambiental às bacias ou aos lagos doadores, como conseqüência do conflito de usos. Alguns deles sofreram danos ambientais de extrema gravidade.

Na Califórnia, o lago Mono apresenta hoje altíssimo índice de concentração de sais, e o vale do Owens entrou em processo irreversível de desertificação. O mar de Aral, no Cazaquistão, está simplesmente desaparecendo, devido à deterioração do sistema hidrológico local. "Qualquer projeto de transposição é extremamente delicado do ponto de vista ambiental", diz Victor Brecheret Filho, diretor do Instituto de Engenharia de São Paulo. "Há que se ter absoluto cuidado com os impactos não apenas do presente, mas os que podem advir no futuro."

Controle

O governo brasileiro espera conter o risco de um "apagão ambiental" no São Francisco controlando com rigor o volume a ser transposto - essa missão deverá ficar a cargo da Agência Nacional de Águas (ANA). O Ministério da Integração Nacional já estabeleceu que a captação média máxima a ser feita no São Francisco - incluindo o que é destinado ao consumo humano e à irrigação - será de 63 metros cúbicos por segundo, volume considerado fora de qualquer margem de risco, em função do porte do rio.

Ainda assim, durante as secas, serão retirados apenas 26 metros cúbicos por segundo, e exclusivamente para consumo humano e animal. Nesses períodos, os projetos de irrigação eventualmente instalados com base nas águas do São Francisco terão de limitar-se a usar a reserva dos açudes, o que exigirá dos governos estaduais, que em geral os administram, um planejamento operacional muito mais elaborado do que o atual.

Nessas situações, os projetos de irrigação terão ainda de disputar a água com as indústrias que estão se multiplicando nas metrópoles nordestinas - as capitais também serão atendidas parcialmente pela transposição. A área do porto cearense de Pecém está, por exemplo, recebendo pesados investimentos industriais, alguns do setor siderúrgico.

Desse ponto de vista, o projeto do atual governo é mais cauteloso do que as versões desenvolvidas nas décadas de 1980 e 90, e que acabaram arquivadas. Em 1985, a proposta de transposição apresentada pelo Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) previa a captação, em um único canal, de 300 metros cúbicos por segundo destinados à irrigação. Já no projeto do então Ministério da Integração Regional, de 1994, o volume captado seria de 150 metros cúbicos por segundo, também para a irrigação e em um único canal. A proposta do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do ano 2000, previa a captação contínua em dois canais de 63 metros cúbicos por segundo para uso múltiplo, porém sem estipular uma variação nos períodos de estiagem.

O atual governo também suspendeu - por questões de custos - o projeto paralelo de integração das águas da bacia do rio Tocantins, na região centro-norte, à do São Francisco, que serviria para "compensar" o Velho Chico das perdas que advirão da transposição. Se essa proposta fosse levada adiante, o volume a ser transposto também poderia ser maior. E as regiões norte e nordeste estariam a um passo de ser totalmente integradas em termos hídricos, pois a bacia do Tocantins é vizinha da Amazônica.

Outorgas

Não deve ser desprezado um fator que pode facilitar o controle das águas da transposição: os dois lados - doadores e tomadores - vão lutar pelo direito de usar o maior volume possível, o que, pelo menos em teoria, impedirá abusos. O nordeste meridional e Minas Gerais, as regiões doadoras, estão usando com intensidade cada vez maior as águas do São Francisco para irrigação, além de outras atividades econômicas, e esperam com indisfarçáveis ciúme e apreensão o início das obras. Atualmente, os vários projetos econômicos desenvolvidos na área do Velho Chico consomem um volume de água equivalente a 91 metros cúbicos por segundo.

E o sentimento de prejuízo em Minas e no nordeste meridional deve crescer com a decisão do governo de rever parte das outorgas de uso das águas do Velho Chico concedidas na região hoje atendida pelo rio, mas ainda não efetivadas. A revisão deve ser feita até o final de 2005. Houve no vale do São Francisco uma espécie de "festival de outorgas" nos últimos anos, que poderia inviabilizar o próprio projeto de transposição.

Segundo levantamento do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, se todos os projetos outorgados fossem tirados do papel, nada menos do que 335 metros cúbicos por segundo - ou 93% da vazão máxima do São Francisco alocável para finalidades econômicas, que é de 360 metros cúbicos por segundo - estariam comprometidos. O índice de utilização é hoje de pouco mais de 25%. É certo que, por conta do projeto de transposição, as futuras outorgas no vale do São Francisco devam também ser concedidas com mais parcimônia.

Hoje, segundo o Plano Diretor para o Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Planvasf), estão implantados na bacia do rio aproximadamente 340 mil hectares de agricultura irrigada. O potencial irrigável no vale é de cerca de 8,1 milhões de hectares. A irrigação desse total de terras já seria suficiente para consumir uma vez e meia toda a água existente na bacia.

A disputa entre as duas metades do nordeste será árdua também porque deverá contar com alguns participantes de peso de ambos os lados da divisa. Tanto o nordeste meridional como o setentrional começam a investir cada vez mais no agronegócio - que, na maior parte das culturas, depende fundamentalmente da irrigação, para sustentar a grande escala de produção envolvida nessa modalidade de agricultura, baseada na mecanização e na integração absoluta entre cultivo, transporte, processamento industrial e comercialização.

Embora pouco expressivo quando comparado ao do sudeste, centro-oeste e sul, onde estão quatro quintos das plantações da modalidade, o agronegócio nordestino já responde por 25% da pauta de exportação regional, incluindo principalmente produtos como frutas, soja, algodão e açúcar. E não pára de crescer - muito mais, como é natural, no nordeste meridional já abençoado pelas águas do Velho Chico. A Bahia, por exemplo, se tornou o maior produtor brasileiro de mamão, mamona, sisal e cacau, e o primeiro exportador de manga, uva e cacau. O agronegócio do estado movimentou no ano passado R$ 17 bilhões, ou 23,5% a mais na comparação com 2003.

O projeto mais bem-sucedido nessa modalidade é o do pólo de Juazeiro-Petrolina, cidades gêmeas localizadas à beira do São Francisco na divisa de Bahia e Pernambuco, e que se tornaram, graças à mecanização e à irrigação, um centro de produção de hortifrutigranjeiros de alto desempenho.

Concentração

Outro dos temores dos adversários do projeto de transposição do rio São Francisco é, aliás, que a disputa entre os empresários do agronegócio meridionais e setentrionais acabe por ser resolvida à custa dos mais pobres - dos dois lados da divisa. E que a obra, em vez de eliminar a pobreza do semi-árido, acabe por concentrar ainda mais a renda no nordeste, com a troca da indústria da seca pela da irrigação. O nível de concentração fundiária na região, medido pelo Índice Gini, usado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), era, em 2000, de 0,859, contra 0,597 em todo o Brasil.

O risco de que essa concentração se acelere seria maior justamente na área do semi-árido a que se destinariam as águas do São Francisco. O Ministério da Integração Nacional estima que existam, na região, 186 mil hectares de novas terras que se tornariam agriculturáveis com a irrigação - uma área imensa, que deverá sofrer uma óbvia valorização fundiária. No entender dos críticos, é possível que, por causa da concorrência do agronegócio, os moradores que praticam a agricultura de subsistência ou participam de projetos públicos de irrigação não só encontrem dificuldade de acesso à água para finalidades econômicas, como sejam obrigados a vender suas terras.

O perigo é real. O nordeste setentrional, apesar de estar em desvantagem na comparação com seu vizinho ao sul, possui um agronegócio que está longe de ser embrionário. O Ceará se transformou, por exemplo, em um grande produtor de flores, graças à existência de três ecossistemas diferentes, o litoral, as serras úmidas e o semi-árido - que é o menos desenvolvido de todos nessa cultura. O estado cultiva uma ampla diversidade de espécies e responde por pouco menos de 20% das exportações brasileiras do produto.

No vale do Cariri, região fértil e úmida encravada no semi-árido, é destacada a produção de banana, manga e uva baseada na irrigação. Com mais água, essas culturas também poderiam se expandir para "fora" do vale. O Ceará começa igualmente a cultivar em terrenos irrigados vinhos espumantes de qualidade, capazes de concorrer com os similares produzidos há algum tempo na Bahia.

No Rio Grande do Norte o agronegócio também vem obtendo importância crescente. O setor, cuja principal atividade é a criação de camarão, já responde por 67% da pauta de exportações potiguar e por 25% de participação no Produto Interno Bruto (PIB) estadual. O estado é responsável por 96% do cultivo do crustáceo no país, hoje na casa das 80 mil toneladas anuais, e é tão forte na exportação que seus empresários já foram acusados de dumping pelos Estados Unidos. E existe a intenção de aumentar, em 2005, a produção em 30%. Para criar camarão, é preciso usar duas vezes mais água do que na irrigação.

Há quem veja no próprio traçado dos canais de transposição um convite para a expansão do agronegócio no nordeste setentrional. "Os canais levarão água aos poucos locais do semi-árido que já contam com uma razoável oferta hídrica", critica o hidrólogo João Abner Guimarães Jr., professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Segundo ele, nenhuma barragem da região potiguar do Seridó, onde o quadro das secas é mais intenso, receberá águas da transposição.

O especialista vai além. Guimarães teme que os projetos de irrigação do agronegócio, além de prejudicar os pequenos produtores, acabem por ser subsidiados pelos consumidores das cidades, pois a água da transposição custará mais caro, por conta das obras e da própria operação do sistema. Ele estima que o custo de cada metro cúbico de água bombeada fique em torno de R$ 0,20, quando o valor da água para irrigação não pode ultrapassar R$ 0,05, sob pena de inviabilizar o negócio: "Alguém terá de pagar essa diferença, e o governo ainda não disse quem será".

Vantagens

O Ministério da Integração Nacional admite que o agronegócio poderá expandir-se na área do semi-árido com a transposição, mas, para os técnicos envolvidos no projeto, esse crescimento, se controlado, traria mais vantagens do que desvantagens. A multiplicação de fazendas irrigadas do agronegócio seria, no contexto nordestino, um rápido e importante fator de geração de receita e empregos. De fato, 1 hectare irrigado gera de 0,8 a 1,2 emprego direto e de 1 a 1,2 indireto, contra 0,22 emprego direto na modalidade não irrigada, que é ali desenvolvida quase sempre pela agricultura familiar.

A expectativa dos técnicos do ministério é que, seja através do agronegócio seja dos projetos públicos de irrigação, a transposição das águas do rio São Francisco para o semi-árido gere mais de 200 mil empregos e reduza em até 35% o êxodo rural até 2025.

A preocupação do Ministério da Integração Nacional com a possibilidade de vir a ocorrer um novo ciclo de concentração de terras no semi-árido, de qualquer maneira, existe. Para tentar evitar que o agronegócio tenha domínio completo sobre as águas da transposição, o governo federal pretende prestar melhor auxílio técnico e financeiro aos projetos públicos de irrigação, que são, aliás, numerosos nas duas metades do nordeste, embora pouco eficientes.

O governo quer ainda articular a transposição a programas de reforma agrária. Vai destinar, por exemplo, 310 mil hectares - em uma faixa de 2,5 quilômetros ao longo dos cerca de 620 quilômetros dos dois canais do Projeto São Francisco - para assentamentos fundiários, que incluirão as 730 famílias que terão suas terras desapropriadas pelas obras da transposição.

Para esses projetos decolarem, entretanto, o governo federal terá de abrir a bolsa, o que não está fazendo com a intensidade desejada pelos participantes dos programas. O Projeto Jacaré-Curituba, implantado em 1997 próximo da barragem de Xingó, em Sergipe, por exemplo, previa a irrigação de 3 mil hectares para abrigar 700 famílias de agricultores sem-terra. Mas, até agora, só 700 hectares foram irrigados. "O governo simplesmente deixou de repassar os recursos", reclama João Daniel Samariva, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).

Podem surgir ainda outros obstáculos, além da concorrência do agronegócio, que dificultem o acesso dos nordestinos pobres à água do São Francisco para uso econômico. E são de ordem financeira e cultural. Montar um cultivo irrigado exige capital, já que envolve desde a elaboração do projeto e o levantamento topográfico até a compra de equipamentos. E é preciso ter conhecimentos tecnológicos. Um projeto de fruticultura irrigada, para começar a produzir, entre mudas, adubação e acessórios de irrigação, exige de R$ 15 mil a R$ 20 mil por hectare.

Além do mais, para culturas perenes como caju, manga, coco, goiaba e graviola são necessários de três a quatro anos para o início da produção. Só a partir do quinto ano começam a aparecer os primeiros resultados financeiros.

"Mesmo com eventuais medidas de proteção, o projeto de transposição só vai beneficiar diretamente, mesmo, os grandes proprietários rurais", afirma o engenheiro agrônomo mineiro José Maria Alves da Silva, professor da Universidade Federal de Viçosa. "Os agricultores pobres terão, no máximo, benefícios indiretos. Um projeto que visasse realmente resolver os problemas sociais do semi-árido investiria em programas públicos de cultivo de carnaúba, maniçoba, umbu, juazeiro, palma, xique-xique, que são plantas que prescindem de água, são lucrativas e fazem parte da cultura do nordestino."


 A lenda que virou projeto

O projeto de transposição do rio São Francisco é, de longe, o maior na área de infra-estrutura do governo Lula. Para dar uma medida de sua importância para a atual gestão, é a única obra de grande porte à qual o governo não condicionou uma eventual parceria com a iniciativa privada.

É tão antiga a proposta da transposição que ela pertence quase ao universo mítico das lendas nordestinas. Consta que José Raimundo de Passos Barbosa, ouvidor da cidade cearense de Crato, teria apresentado a proposta inaugural para a monarquia portuguesa ainda em 1818, que, se demonstrou interesse, optou por nada fazer.

O imperador dom Pedro II (1840-89) chegou a incluir a proposta em seu programa de governo, e durante o período republicano vários presidentes trataram o projeto como prioridade ao longo do século 20, sem nunca tirá-lo do terreno das intenções.

Em comum a todos esses malogros, pesaram fatores como o alto custo da transposição, as dificuldades técnicas intrínsecas ao projeto e também os interesses escusos da indústria da seca - que sempre preferiu dar as costas a uma solução definitiva para o problema e trocar votos por poços e açudes, cujas águas, de resto, acabavam usadas, invariavelmente, pelos grandes fazendeiros da região.

Desenvolvida pelos governos da República Velha a partir do começo do século 20, a política de construção de açudes foi incrementada com a criação do Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) no final do período getulista (1930-45) e com a implantação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) em 1959.

Embora a apropriação da água dos açudes pela indústria da seca tenha retirado desses equipamentos muito de sua eficiência, trata-se hoje de uma rede bem fornida que é capaz de abastecer os rios intermitentes do semi-árido nos anos pluviometricamente generosos. Nos anos secos, parte significativa da água dos açudes também tende a evaporar-se. Alguns desses reservatórios serão agora alimentados pelas águas do São Francisco.

Calcula-se que em toda a região do nordeste estejam implantados atualmente cerca de 70 mil açudes, poços e reservatórios diversos, entre os quais alguns megaaçudes, como o do Castanhão, no Ceará (o maior do país), o de Engenheiro Ávidos, na Paraíba, e o de Pau dos Ferros, no Rio Grande do Norte.


 Possível queda de produção

O potencial de geração de energia na bacia do São Francisco - 10,5 mil MW - deverá sofrer uma queda estimada de 2,4% com o projeto de transposição. Praticamente todo o complexo de usinas hidrelétricas administradas pela Chesf está a jusante (abaixo) dos pontos de captação dos canais de transferência, localizados entre Bahia e Pernambuco, e não será possível evitar que as usinas sofram o impacto da redução de vazão do rio.

Essa redução, no entanto, poderá ser compensada por usinas de outras bacias, já que o sistema de geração brasileiro é totalmente interligado por redes de transmissão. As usinas a gás natural - matéria-prima abundante no nordeste -, em fase de implementação, também devem diminuir os efeitos dessa possível perda.

No próprio projeto de transposição, está prevista a construção de duas pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) junto dos reservatórios de Jati e Atalho, no Ceará, no Eixo Norte do sistema.

O receio dos estados nordestinos quanto ao suprimento de energia não está, contudo, no presente, mas sim no futuro - até porque todo o potencial hidrelétrico do São Francisco já foi explorado e não tem mais possibilidade de crescer.

Há o temor de que, depois da transposição, a eventualidade do uso não controlado das águas da bacia faça o potencial regredir ainda mais, em sentido inverso ao aumento da demanda energética.

As usinas instaladas no São Francisco fornecem anualmente cerca de 50 milhões de MW/h para a demanda do nordeste, que vem aumentando cerca de 2% acima do PIB regional. Em 2003, por exemplo, o crescimento brasileiro foi negativo, mas a demanda energética nordestina teve expansão de 2,7%.

Caso estejam certas as estimativas feitas pelo governo federal de um crescimento em torno de 4% nos próximos anos, o aumento da demanda de energia na região deverá superar 6% ao ano. Com esse índice, em dez anos seria preciso contar com 90 milhões de MW/h a 100 milhões de MW/h para atender as necessidades do nordeste - o dobro do fornecimento atual.

O aproveitamento de energia eólica, de termelétricas e de outras fontes alternativas - todas elas modalidades mais caras que a hidrelétrica - parece inevitável. Além disso, a tendência é que, em médio prazo, o nordeste se torne um grande importador de energia, principalmente da região norte. Uma eventual regressão do potencial energético do São Francisco só vai piorar esse cenário.

 

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