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A revolução dos bytes

Inclusão digital aposta cada vez mais na força do software livre

JORGE PEREIRA FILHO


Ilustração: Rolando Maver

Após cinco meses desempregada, Catarine Fernandes, de 25 anos, se candidatou, em novembro, a uma vaga de secretária. Passou na primeira fase da seleção, superando outras concorrentes. Mas, na segunda etapa, foi reprovada por não saber utilizar o computador. "Foi constrangedor, porque eu não conseguia nem usar o mouse", lembra.

Catarine tem ensino médio completo e estava fazendo cursinho antes de perder o emprego de recepcionista. Sem salário, teve de pôr de lado o projeto de tentar o ingresso na faculdade. Precisava de um curso de computação, mas não tinha como pagá-lo. Foi quando uma amiga lhe disse que o Centro Educacional Unificado (CEU) Butantã, próximo de sua casa, na região oeste da cidade de São Paulo, estava oferecendo aulas gratuitas de informática. "Não perdi tempo e me matriculei logo. Agora domino pelo menos o básico e, hoje, tenho e-mail e sei navegar na Internet", conta. Catarine ainda não conseguiu trabalho, mas já elabora sozinha o próprio currículo e, sempre que possível, vai até o Telecentro usar a Internet para procurar emprego.

A história dessa paulistana de baixa renda, mãe de uma filha, se repete pelas 124 unidades do programa Telecentros espalhadas pela periferia da capital paulista. Em cada uma delas, há 20 computadores à disposição dos usuários. O acesso é livre e gratuito, sendo necessário apenas fazer inscrição prévia. Para quem não tem conhecimento de informática, são oferecidos cursos introdutórios que explicam como funciona o computador e como se trabalha com ele. Já os iniciados têm a possibilidade de aprimorar suas capacidades, aprendendo a programar e a criar páginas na Internet.

Questão de economia

A iniciativa desenvolvida pela prefeitura de São Paulo durante a gestão de Marta Suplicy atendeu, em quatro anos, 535 mil pessoas - metade das quais tinha menos de 20 anos. Essa experiência de inclusão digital caracterizou-se, ainda, por um traço particular. Desde o princípio, todos os computadores dos Telecentros são equipados com software livre, ou seja, programas de computador cujo código-fonte é aberto e que não cobram licença de uso (ver texto abaixo).

A opção por esse tipo de tecnologia foi adotada devido a "razões econômicas e filosóficas", como explica Beatriz Tibiriçá, que foi coordenadora do Governo Eletrônico até dezembro de 2004. "Diminuímos o custo do equipamento e de manutenção, além de economizarmos com o gasto das licenças. E, o que é melhor, podemos compartilhar as soluções desenvolvidas e adequar os aplicativos às exatas necessidades do programa Telecentros."

Ao utilizar software livre, a prefeitura deixou de desembolsar cerca de R$ 21 milhões anuais que teriam de ser pagos em royalties, caso tivesse adotado os softwares proprietários. Beatriz acrescenta que a vantagem econômica não se resume a isso, uma vez que os Telecentros possuem somente um computador completo, que atua como servidor. Os outros 19 equipamentos não têm HD (disco rígido) e funcionam em rede - o que reduz consideravelmente o investimento inicial. "A administração é feita toda pela Internet. Em vez de gerenciar mais de 2 mil máquinas, controlo apenas os 124 servidores. Isso não seria possível com o software proprietário, que só pode operar em máquinas com HD", explica Beatriz.

Outra característica dos Telecentros foi a metodologia usada para definir onde seriam instaladas as unidades. A escolha dos bairros se deu a partir da análise do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de cada região, privilegiando as áreas mais carentes. Quem se beneficiou foram pessoas como Maicon Dias Lopes, que não possui computador em sua casa, localizada no extremo oeste de São Paulo. "Um vizinho me contou que havia curso de informática no Telecentro e me interessei", lembra o garoto de 15 anos.

Ele fez um curso, gostou e decidiu freqüentar outras aulas. Envolveu-se tanto que acabou se tornando monitor e, hoje, ensina novos alunos a usar o computador. "Fico aqui quatro horas por dia, quero conhecer mais sobre html (linguagem que permite criar páginas na Internet)", conta.

Apesar de positivas, experiências dessa natureza ainda estão longe de ser uma resposta à altura das reais necessidades da população. Se o Brasil já é conhecido pela desigualdade social, uma das características do atual modelo de desenvolvimento da sociedade da informação é o aprofundamento da exclusão.

Mas essa realidade está longe de ser insuperável. É o que mostra a história de Vanessa Pereira, de 27 anos, que sofre de paralisia em uma das pernas. No final do ano passado, ela ficou sabendo que uma empresa de telemarketing havia aberto uma vaga para portadores de necessidades especiais. Bem articulada e comunicativa, Vanessa se candidatou ao cargo e conquistou a entrevistadora. O único problema é que não possuía conhecimento de computação. "Ela me disse, então, que a vaga seria minha se eu fizesse um curso de informática intensivo", conta.

Vanessa fez uma cotação em várias escolas e chegou à conclusão de que não poderia pagar nenhuma delas. Foi quando recebeu a indicação de que o Telecentro Efort/Acessibilidade Total oferecia aulas gratuitas e tinha suporte para pessoas com necessidades especiais. Ela foi até lá e contou com a solidariedade dos instrutores da unidade. Fez o curso em dez dias e, assim, conseguiu seu primeiro emprego. Orgulhosa da conquista, escreveu sua história em um editor de texto do Telecentro, fez uma cópia, tirou várias xerox e espalhou por locais públicos. "Nunca desisti de lutar. Queria levar esse exemplo para outras pessoas que, às vezes, perdem a esperança", explica.

Políticas públicas

No Brasil, apenas 15% dos domicílios (7,5 milhões de residências) possuem um computador, segundo dados de 2003 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um percentual ainda menor tem acesso à Internet: 11% (5,6 milhões de domicílios). Se levarmos em conta a questão de renda, a desigualdade salta aos olhos. Cerca de 70% do 1,9 milhão de domicílios com renda superior a 20 salários mínimos têm acesso à Internet. Na outra ponta, apenas 5% dos 41,5 milhões de residências com renda de até 10 salários mínimos estão conectados à rede mundial de computadores.

"Uma das formas de exclusão social, hoje, é a digital. Quem não está inserido nesse novo contexto tecnológico fica privado de um importante meio de acesso à informação e ao conhecimento", analisa Marcelo Branco, articulador do projeto Software Livre Brasil (que difunde essa tecnologia) e consultor da presidência da República para a área da sociedade da informação.

Essa opinião é compartilhada pelo sociólogo espanhol Manuel Castells, autor de A Era da Informação, referência obrigatória para acadêmicos e pesquisadores das novas tecnologias. Durante o Fórum Social Mundial, realizado de 26 a 31 de janeiro em Porto Alegre, ele salientou a importância da preservação da liberdade de expressão e comunicação na Internet, lembrando que a inexistência do direito de propriedade e do controle burocrático permitiu a evolução da rede mundial.

No fórum, que se caracterizou pela utilização exclusiva de softwares livres, Castells defendeu essa tecnologia como forma de permitir o aprimoramento do conhecimento. Segundo ele, a própria história do desenvolvimento desse recurso mostra que pode haver mais inovação tecnológica e produtividade econômica num contexto de trabalho cooperativo e motivado.

Buscando justamente ampliar o acesso da população à informação, o governo federal pretende lançar o projeto PC Conectado, que, por meio de produção subsidiada, possibilitará oferecer um modelo de computador a preço acessível, mas com bom desempenho, incluindo recursos multimídia (como leitor de CDs). Para adquirir o equipamento, o cidadão pagará R$ 50 por mês, durante um ano. Em contrapartida, ganhará acesso livre à Internet pelo mesmo período. O projeto é ambicioso, e a estimativa mais pessimista é de que as vendas cheguem a 1 milhão de unidades.

O governo federal planeja também abrir centros públicos de acesso à Internet em regiões pobres do país, sobretudo nas periferias das grandes cidades, beneficiando famílias das classes D e E. Batizado de Casa Brasil, esse projeto tem a mesma estrutura dos Telecentros, acrescida de núcleos de produção de vídeo, áudio e de programas de rádios comunitárias. A idéia é estimular a atividade cultural das comunidades.

No início de 2005, o Congresso Nacional aprovou uma emenda suplementar no Orçamento da União que destina R$ 224 milhões à implantação do Casa Brasil. Está prevista a construção de mil unidades - um número ainda muito distante da necessidade da população brasileira. Para se ter uma idéia, os recursos reservados ao projeto representam cerca de 0,28% de toda a economia de gastos públicos feita pelo governo federal em 2004 para pagar a dívida (o superávit primário). De qualquer forma, nessa primeira etapa, a meta é atingir pelo menos 3 milhões de pessoas.

Essas duas iniciativas têm mais do que o combate à exclusão digital em comum: ambas só utilizarão softwares livres. "Não há como falar de um plano de inclusão digital a partir de um modelo de software proprietário. Só a legalização dos programas mais do que dobraria os investimentos", explica Branco.

Estima-se que o Brasil gaste R$ 1,27 bilhão apenas em royalties pagos à Microsoft. "O custo de uma licença para o Office e o Windows para o país equivale a 60 sacas de soja ou 23 barris de petróleo. Se tivéssemos uma expansão muito grande no número de usuários, possivelmente nossa safra de grãos seria insuficiente", compara o consultor.

Outra razão para essa escolha é a adequação das características do software livre à proposta de inclusão. "O software livre dá ao usuário quatro liberdades: usá-lo para qualquer finalidade, estudá-lo profundamente - tendo acesso a seu código-fonte -, alterá-lo da melhor forma e, ainda, distribuir essas alterações", explica o sociólogo Sérgio Amadeu da Silveira, presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), que coordena o projeto Casa Brasil. Segundo ele, essa opção abre portas para programadores brasileiros aprimorarem seu conhecimento. "O desenvolvimento do software livre é feito de maneira colaborativa, compartilhada internacionalmente, mas cada participação local se faz presente. Por isso, é um grande instrumento para o país ter maior espaço na sociedade da informação", afirma.

Posição brasileira

Desde 2003, a defesa do software livre tem sido uma das políticas estratégicas do governo brasileiro na área da sociedade da informação. O Planalto entende que esse recurso abre uma perspectiva para os países da periferia do capitalismo se desenvolverem e se tornarem competitivos no cobiçado nicho da tecnologia da informação - que, hoje, ocupa lugar central na acumulação de capital mundial.

Essa postura, no entanto, tem gerado resistências, sobretudo dos países ricos. Foi o que ocorreu na primeira vez em que o Brasil expôs a defesa do software livre em um foro internacional, durante a Cúpula Mundial sobre Sociedade da Informação - encontro convocado pela Organização das Nações Unidas (ONU) que reuniu representantes de governos, da sociedade civil e do setor privado.

A primeira fase dessa cúpula ocorreu em Genebra, na Suíça, em dezembro de 2003, e deixou clara a existência de dois blocos. Um deles reunia países periféricos (Brasil, Índia, África do Sul, China e Argentina) e defendia a disseminação do software livre como oportunidade para as nações pobres superarem o atraso tecnológico e promoverem uma sociedade da informação includente. Já o outro bloco, liderado por Estados Unidos, União Européia e Japão, não aceitava discutir esse tema e queria aprofundar as leis de propriedade intelectual. Esse grupo também rejeitou a proposta de criação de um fundo da ONU destinado a financiar projetos tecnológicos nos países pobres.

"Há uma clara disputa. De um lado, estão os poderosos interesses econômico-financeiros daqueles que querem fazer da Internet unicamente um espaço para vigiar e vender. De outro fica o cidadão disposto a tornar a rede um espaço de troca de informações e, principalmente, de possibilidade de acesso ao conhecimento e à cultura", diz Marcelo Branco, que participou do encontro como observador da sociedade civil.

O desfecho desse embate se dará na segunda etapa da cúpula, agendada para Túnis, na Tunísia, em novembro de 2005. Enquanto isso, o governo brasileiro tenta reunir o maior número de países em torno de sua proposta e já realizou consultas informais à China, Rússia, África do Sul e Índia com a finalidade de estabelecer uma aliança a favor da questão. O Itamaraty também iniciou uma discussão com os países latino-americanos para conseguir o apoio regional à proposta e ainda tenta convencer Espanha e Portugal a firmarem a mesma posição, já que muitas nações européias adotam a tecnologia do software livre em organismos públicos para economizar recursos.

Os Estados Unidos, por sua vez, país-sede da maioria das grandes empresas de software proprietário, pressionam e já mostram preocupação, tanto que tentam minar essa iniciativa, inclusive manifestando o desejo de ser convidados a participar de uma reunião agendada para meados de 2005, exclusiva dos países latino-americanos, para discutir a questão. O governo norte-americano quer, ainda, um encontro com os representantes brasileiros em Genebra, antes do final da cúpula.


 Aberto x fechado

Software livre - Programa de computador desenvolvido por usuários em uma comunidade aberta cuja filosofia é possibilitar a livre troca de conhecimento. É utilizado sem a cobrança de royalties e permite que os usuários tenham acesso à sua estrutura interna e possam modificar suas características. Pode também ser distribuído.

Software proprietário - São os programas fechados de computador. O usuário não tem acesso ao seu código-fonte e precisa pagar royalties (licença de uso) para poder utilizá-los. Quem possui uma cópia, em casa ou no trabalho, por exemplo, e não paga nada para usá-la, pela legislação está cometendo crime de pirataria. São exemplos de softwares proprietários: Windows, Microsoft Office, Photoshop, Access.

Código-fonte - Um software é um conjunto de fórmulas matemáticas e algoritmos codificados de uma forma que o computador possa executá-los. O código-fonte é a linguagem que permite ao programador se comunicar com a máquina.


 Palavras-chave

Linux - Também conhecido como GNU/Linux, esse software livre é um sistema operacional de computador, como o Windows. Sua estrutura básica foi desenvolvida, em 1991, pelo finlandês Linus Torvalds, como um passatempo. Depois, por meio do projeto GNU (lançado, em 1984, pela Fundação do Software Livre, nos Estados Unidos), programadores de todo o mundo, trabalhando em comunidade, aprimoraram o software inicial.

Distribuições - São pacotes de programas acrescentados à estrutura básica do GNU/Linux. É possível também baixar da Internet algumas dessas distribuições. Exemplos: Conectiva (http://www.conectiva.com.br), Mandrake (http://www.mandrakelinux.com/pt-br) e Debian (http://www.br.debian.org/index.pt.html).

OpenOffice - Software livre desenvolvido por comunidades internacionais de programadores em código aberto. Possui editores de texto, de apresentação de slides, html e planilha de cálculos (http://www.openoffice.org.br).

Mozilla/Firefox - Navegadores de Internet, ágeis e seguros (http://www.mozilla.org).

Gimp - Programa usado para tratamento e manipulação de imagens (http://ogimp.codigolivre.org.br, http://www.gimp.org).

Mais informações Projeto GNU/Fundação do Software Livre (http://www.gnu.org).

Notícias e dicas sobre software livre (http://www.dicas-l.unicamp.br, http://br-linux.org, http://www.vivaolinux.com.br, http://www.softwarelivre.gov.br, http://www.cipsga.org.br).

 

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