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Apetite de dragão

Brasil descobre a China e reforça laços culturais e comerciais

NILZA BELLINI


Peça de porcelana chinesa / Foto: Nilza Bellini

A China está na ordem do dia. Brasileiros de todas as regiões do país têm adotado cada vez mais hábitos culturais que nasceram nas terras longínquas de Lao Tsé, fundador do taoísmo e um dos maiores filósofos da história da humanidade, autor do Tao Te Ching, escrito há 2,6 mil anos. Práticas milenares como tai chi chuan, acupuntura, massagens terapêuticas ou herboterapia invadem empresas, lares e consultórios médicos. As universidades registram grande interesse pelos cursos sobre a China, e empresários de diferentes segmentos ainda festejam o acordo comercial firmado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o governo chinês em 2004.

Existem, no entanto, divergências devido ao fato de o governo ter reconhecido a China como economia de mercado, em novembro do ano passado, uma vez que há empresários brasileiros preocupados com a possibilidade de o Brasil ser prejudicado nas relações comerciais com o país. Segundo dados divulgados pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, a China importou do Brasil, em 2004, aproximadamente US$ 5,5 bilhões. As vendas, porém, ainda estão centradas em praticamente um só produto: soja em grãos. Mas, uma vez que a China é considerada atualmente o maior mercado do mundo e a participação brasileira nas compras chinesas é de apenas 0,6%, pode estar aí a justificativa para esse reconhecimento.

Cá entre nós

Lytton Leite Guimarães, professor de relações internacionais na Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Núcleo de Estudos Asiáticos daquela instituição, acredita que a presença de chineses no Brasil vem aumentando. "A chegada de imigrantes graduados em universidades é reflexo do desemprego naquele país. Eles buscam oportunidades de trabalho não só no Brasil mas também em outros lugares do mundo. Aqui têm sido mais notados os executivos de empresas chinesas que fazem investimentos no país", diz Guimarães.

O professor, que é Ph.D. em relações internacionais pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, ressalta que a política das companhias chinesas é empregar mão-de-obra local, por baixos salários. O objetivo dos executivos aqui presentes, assim, seria apenas implantar métodos chineses de administração. Por essa razão, os imigrantes oriundos de regiões carentes seriam poucos. Mas, segundo Guimarães, também existem denúncias, não comprovadas, de que muitos chineses pobres ingressariam ilegalmente no Brasil, a partir de países como Paraguai e Bolívia, recrutados por empresas coreanas, que utilizariam a força de trabalho desses clandestinos em troca de pagamentos insignificantes.

Esses fatores não diminuem o entusiasmo dos brasileiros pelo estreitamento de relações comerciais e culturais com a China, mesmo que tenha se arrefecido a euforia do ano passado. "O interesse por aquele país é mensurável pelo número cada vez maior de universitários inscritos em cursos sobre a Ásia", afirma Guimarães. "Na década de 1990, a China ofereceu seis bolsas de estudo para alunos brasileiros, e nenhuma foi preenchida. Hoje, há estudantes que viajam para lá por conta própria", destaca.

Foi a perspectiva de que as relações entre Brasil e China serão cada vez mais sólidas que levou Fernanda Ramone, bacharel em relações internacionais, a mudar-se para aquele país há pouco mais de um ano. "Assim que me graduei, ingressei na Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China", conta ela. "Um ano mais tarde recebi a proposta de me transferir para a filial em Beijing, e hoje trabalho na Rádio Internacional da China."

Repleta de tradições e com uma variada gama de etnias e de dialetos, a China tem 1,3 bilhão de habitantes, dos quais 500 milhões constituem a população economicamente ativa. Destes, 50 milhões têm alto poder aquisitivo. A taxa de crescimento de sua economia é invejável: de 7% a 9% ao ano. Mesmo assim, lá pouca gente fala inglês, e por isso Fernanda faz um alerta: "Quem vai para a China sem conhecer o idioma enfrenta muitas dificuldades". Intérprete da maioria das delegações brasileiras que visitam Beijing, ela sugere, além do aprendizado da língua, buscar mais informações sobre os costumes locais. "Percebo claramente o equívoco de empresários que têm negócios com os chineses, pois muitos acreditam que eles compram qualquer coisa, de qualquer procedência, por conta das proporções gigantescas de seu território. Esse é um erro."

A dificuldade de comunicação é o principal empecilho que Ricardo Junqueira, de 25 anos, tem enfrentado desde 2003, quando começou a atuar como representante comercial, no Brasil, de empresas chinesas do ramo farmacêutico. Importante fabricante de insumos, a China tem uma expressiva produção de princípios ativos para medicamentos. "Embora esses componentes ainda não ofereçam excelente qualidade, têm no preço seu diferencial", explica Junqueira, cuja empresa, sediada no bairro da Lapa, na capital paulista, movimenta cerca de US$ 500 mil mensais em importações e mantém negócios com dez fornecedores chineses.

Como estratégia de crescimento, Junqueira decidiu aprender mandarim. Há seis meses ele estuda a língua chinesa com professores nativos, numa escola reconhecida pelo Consulado da China em São Paulo. "Como poucos chineses falam inglês, é difícil agilizar os negócios. Se o tradutor para o inglês de meu fornecedor não está disponível, não consigo cumprir os prazos solicitados pelo comprador", explica. "Dominando a língua vou facilitar as negociações", diz ele, que espera saber falar razoavelmente o mandarim com mais um ano de estudo.

Razões comerciais não foram as únicas que levaram o nissei Kioshi Shimizu, de 58 anos, a aprender a língua chinesa. Engenheiro mecânico, ele destaca que a China tem se transformado, nos últimos tempos, num fabuloso canteiro de obras. "Cerca de 15% dos equipamentos de construção de grandes obras estão naquele país, mas precisamos dominar o mandarim para poder realizar bons negócios."

Por outro lado, seu interesse pelo aprendizado da língua chinesa também tem caráter cultural e experimental. Primeiro, porque Shimizu reconhece a riqueza imensurável proporcionada pelos mais de 4 mil anos de cultura daquele povo. "Eles têm o domínio da paciência", diz, com admiração. E, segundo, porque Shimizu tenta criar um método de aprendizado do mandarim baseado nas ferramentas de qualidade total. Consultor de gestão empresarial, ele acredita que esse sistema pode facilitar a comunicação entre os dois povos. "É preciso tentar organizar o aprendizado do mandarim, que é muito complexo, para instrumentalizar adequadamente o brasileiro que tenta vender tecnologia àquele país, se quisermos deixar de ser apenas importadores ou fornecedores de insumos básicos", diz.

Shimizu estuda no Centro Cultural e Assessoria Empresarial China-Brasil (Chinbra), localizado no bairro da Pompéia, em São Paulo. Essa é a única escola brasileira a ensinar o chinês simplificado e um sistema fonético chamado pinyin. Tem quase 200 alunos, 95% deles brasileiros, a maioria adultos. Filipe Ferreira, economista de 62 anos, estuda no Chinbra há seis meses. "Para exercitar o cérebro e para poder me comunicar com chineses quando visitar aquele país, nos próximos Jogos Olímpicos", justifica. "Nossos alunos são executivos, advogados, médicos e estudantes que têm projetos ou negócios com a China", conta a diretora da escola, Liang Yan, de 43 anos. "Temos nove professores nativos e complementamos o estudo da língua com noções de etiqueta, costumes, filosofia e budismo", acrescenta.

Desmistificação

O caráter de magia atribuído por muitos brasileiros a importantes manifestações da cultura chinesa, como o feng shui ou o I Ching, o Livro das Mutações, incomoda muito Ho Yeh Chia, de 32 anos, professora de língua chinesa no Departamento de Línguas Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Mestre em Educação, com a dissertação "O Pensamento Educacional de Confúcio", Ho Yeh Chia destaca que o I Ching, originalmente, não era um livro sobre oráculos, mas sobre ética e metafísica. "Tornou-se um oráculo ao se popularizar, e só por isso não entrou na lista negra dos livros proibidos por imperadores chineses autoritários", explica. A mística em torno do I Ching ou do feng shui seria resultante da pouca informação acerca da China. "O feng shui é racional e científico, trabalha com o funcional e o eficiente; e o I Ching, que é profundamente filosófico, não deve servir para consultas românticas. A magia só existe quando a razão falha", acentua.

A acupuntura, por sua vez, já há algum tempo perdeu o caráter de magia entre os brasileiros. Foi reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina em 1995. A Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) foi uma das primeiras a adotar essa prática entre suas disciplinas. Lá o estudante aprende a técnica das agulhas no terceiro ano, nas aulas de clínica médica, e a pratica nos pacientes atendidos em ambulatórios. "A acupuntura ensina o médico a tratar o doente, não apenas a doença", explica Lee Yu Chung, de 48 anos, formado pela Faculdade de Medicina de Santo Amaro e especializado em ortopedia pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Insatisfeito com os resultados obtidos pela medicina ocidental, o médico foi estimulado por seu pai a buscar na tradicional medicina chinesa a solução para sua crise pessoal. Por isso, cursou dois anos de especialização em acupuntura na Universidade de Beijing. Ele explica que foi Mao Tsé-tung quem uniu oficialmente a tradicional medicina chinesa com a ocidental, no início da década de 1950. "Faltavam médicos e remédios na China daquela época", conta. Ao assumir o poder em outubro de 1949, Mao confrontou-se com um país em crise, com um povo faminto e doente. Havia forçado Chiang Kai-Chek e seus seguidores nacionalistas, que se digladiavam com os comunistas, a se refugiarem em Formosa (Taiwan). Entre esses estavam muitos médicos. Dessa forma, resgatar a tradicional medicina chinesa foi a solução para atender as necessidades de saúde da população pobre.

"Os práticos, considerados quase curandeiros, haviam preservado muito os saberes da tradicional medicina chinesa. Além disso, voltaram a ser estudados tratados médicos milenares, como o Hoang Ti Nei King Su Wen, traduzido como Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo, que constitui a base da medicina chinesa", explica o doutor Lee. Atualmente ele mantém um consultório despojado na Praça da Liberdade, em São Paulo, e alia a sabedoria milenar da medicina chinesa com o desenvolvimento tecnológico de nossos dias. Em seus diagnósticos, utiliza tanto exames laboratoriais, radiográficos ou outros feitos por modernos equipamentos eletrônicos como a palpação de órgãos internos, a avaliação da intensidade dos batimentos cardíacos medidos no pulso, a cor da pele, o andar e a postura de seus pacientes, métodos diagnósticos da medicina chinesa.

As ondas migratórias

O médico Lee Yu Chung saiu de Taiwan na década de 1960, quando tinha apenas nove anos. A imigração chinesa para o Brasil, porém, precede muito esse período. Professor do Departamento de Línguas Orientais da FFLCH/USP, David Jye Yuan Shyu narra, em sua dissertação de mestrado, uma breve história dos chineses no Brasil. No século 19, eles vieram, como os italianos, para substituir o trabalho negro escravo após a Abolição. Os ciclos migratórios se sucederam até que, na década de 70, se deu o maior deles, quando teve fim o apoio norte-americano ao corrupto Chiang Kai-Chek. Foi a partir daí que o Brasil recebeu milhares de chineses provenientes de Taiwan.

Atualmente, o número de chineses e de seus descendentes no Brasil, vindos de diferentes regiões daquele país, gira em torno de 250 mil pessoas, segundo dados não oficiais. Desses, cerca de 190 mil estão concentrados em São Paulo. O professor David Jye Yuan Shyu destaca que os chineses de São Paulo mantêm meios de comunicação próprios, mesmo que em sua maioria (95%) falem o português. "Em São Paulo estão sediados dois jornais chineses diários, cerca de dez boletins semanais ou mensais, três sites e uma biblioteca que funciona num anexo de uma igreja católica freqüentada por chineses", revela.

O "Jornal Chinês para a América do Sul", diário de 5 mil exemplares, é escrito em chinês simplificado, adotado na China continental durante a Revolução Cultural, e em chinês antigo, preferido pelos taiwaneses. Rebeca Lin Jun, de 36 anos, uma das repórteres, conta que o veículo foi fundado por um grupo de imigrantes em 1992 e atualmente é dirigido por um jornalista de Beijing, que ainda não domina a língua portuguesa. "Editamos matérias internacionais, reportagens sobre a China continental, Taiwan, Hong Kong e Macau. As colunas mais lidas são as de saúde, turismo e legislação brasileira, além da página com noticiário sobre o Brasil. Só publicamos notícias policiais quando há chineses envolvidos", explica.

Artes marciais

A indústria cinematográfica norte-americana é responsável pela mistificação da cultura chinesa? Talvez, diz Ho Yeh Chia, que imigrou para o Brasil ainda criança. Mas, sem a magia do cinema, que tornou Bruce Lee mundialmente conhecido, não teria sido possível a brasileiros, como Luís Mello, aproximarem-se da cultura chinesa. Praticante do kung fu desde os 11 anos, Mello é um dos mais famosos instrutores de artes marciais chinesas no Brasil e dono de duas academias em São Paulo. Mais de 90% de seus alunos são brasileiros. "O chinês que imigra precisa dedicar-se integralmente ao trabalho e ao estudo para ser aceito socialmente. Não pode perder tempo com artes marciais", observa o doutor Lee Yu Chung. Segundo ele, é por essa razão que a antiga e diversificada prática de desenvolvimento físico e mental do kung fu torna-se, aqui entre nós, cada vez mais ocidentalizada e cinematográfica. O que poucos notam é que a expressão kung fu, em chinês, pode ser traduzida como homem suado, trabalho duro. É habilidade, perfeição de uma ou várias artes, atingida com muito esforço. Características típicas do povo chinês, que muitos brasileiros vêm aprendendo, cada vez mais, a admirar.


Em fevereiro tem Ano Novo

O Ano Novo é a cerimônia mais importante do calendário para os chineses, que comemoraram, em 9 de fevereiro, o início do ano do galo. A origem dessa festividade é tão antiga que é impossível determinar a época exata em que começou. Mas há consenso quanto a certos elementos.

A palavra "nian", que em chinês moderno significa "ano", por exemplo, denominava - segundo inúmeras lendas chinesas - o monstro que se alimentava de pessoas antes do início de cada ano. As cores vermelho e dourado, obrigatórias nas comemorações, eram aquelas usadas pelo deus que venceu o monstro. Os fogos de artifício (os chineses inventaram a pólvora por volta de 1250 a.C.) constituíam a forma de afugentar os monstros (principalmente Nian) e obter a paz.

Também conhecidos como a Festa da Primavera, os festejos do Ano Novo começam alguns dias antes da passagem. Votos de abundância de dinheiro (Gong Xi Fa Kai), boa saúde (Sheng Ti Jian Kan) e de realizações pessoais (Xin Xian Shi Cheng) são as expressões mais comuns. Para garantir sorte, também é costume os mais velhos darem aos mais novos envelopes com dinheiro (Li Shi), que não devem ser abertos na presença de quem os ofereceu, em sinal de respeito.

 

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