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Ficção
O pára-lama

Carlos Heitor Cony

A primeira questão levantada pelos policiais foi idiota: a vítima gritara ou não gritara? Metade dos curiosos que rodeavam o cadáver da moça afirmava que houvera um grito. A outra metade negava. Impossibilitados de promover um plebiscito sobre o assunto, ou de contratar uma pesquisa do Ibope a respeito, os policiais optaram por questões mais simples: perguntaram de onde caíra o corpo.
– Foi dali!
Apontaram para uma das janelas do sétimo andar. Acrescentaram:– Daquela janela ali, a que está iluminada, no meio de duas outras que estão fechadas.
Os policiais olharam-se e decidiram. O cadáver não precisava deles. Já definitivamente repousado na calçada, um lençol aparecera para cobrir as partes do corpo que o vestido não mais escondia. Também aparecera a vela, não uma, mas três, talvez quatro, elas surgiram sem ninguém saber de onde, e ficaram tremendo, lambendo a noite e refletindo o lençol que mal protegia o volume espesso pousado no chão. O rabecão demoraria e não havia, no horizonte, a ameaça de que o corpo fosse roubado.
O porteiro do prédio levou os policiais ao elevador:
– Aperte aí, no sete.
Os policiais apertaram o sete e o elevador parou no sétimo andar, o que não chegou a ser uma coincidência, mas uma causalidade. Havia o corredor de ladrilhos e diversas portas recentemente envernizadas.
– Deve ser aquela ali.
Apontaram para a porta que parecia entreaberta – e entreaberta estava. Nem precisaram tocar a campainha. Ao se aproximarem, a porta abriu-se cada vez mais, misteriosamente, mão cúmplice e invisível a deslocava pelo lado de dentro.
– Com licença.
Habituados a bater portas, a esmurrar portas, a arrombar portas, os policiais ficaram constrangidos. Havia, na soleira, o tapete de fibra de coco, eles limparam os sapatos ali, desnecessariamente, os sapatos não estavam tão sujos assim, eles desejavam ganhar tempo, talvez alguma coisa acontecesse.Mas nada aconteceu. Além da porta, e de um pequeno corredor interno, a sala iluminada, como se ali tivesse havido uma festa ou um culto. Não foi difícil identificar a janela aberta ao lado de duas outras fechadas: estava ali, no fim da sala, em frente.
– Foi aqui?
– Sim. Foi aqui.
Houve uma pausa:
– E foi terrível.
Os policiais tinham agora, diante de si, a mulher de trinta e poucos anos, nem alta nem magra, tipo médio de média beleza, mas confortável, digna, simpática. Vestia pijama de pequeninas flores azuis no fundo branco de uma flanela usada, os cabelos despenteados e fartos, incandescentes sob a luz. "Uma mulher que se levaria para a cama" – foi a conclusão a que os policiais chegaram para uso próprio.
– Sentem-se, por favor.
– Obrigado.
A porta aberta, a cadeira oferecida, o aspecto bom e simples da mulher, tudo fugia à rotina de um crime ou mesmo de uma ocorrência policial. Esperavam encontrar, por trás da janela do sétimo andar, o ambiente de estupor e morte, vestígios de uma briga, talvez as evidências de um assassinato – e ali estavam, invadindo o asseado repouso de uma mulher suave e solitária.– Querem saber o que se passou?
Os policiais concordaram com a cabeça. Se a mulher afirmasse que o Padre Eterno ali estivera e brigara com a morta, jogando-a pela janela, eles agradeceriam a informação e levariam para o distrito a notícia: Foi o Padre Eterno!
Mas a mulher não acusou o Padre Eterno.
– Sou a irmã dela. A mais velha. Elsa tinha 30 anos, eu tenho 33. Somos irmãs mesmo, posso mostrar os documentos.
Os policiais não duvidaram.
– Ela era Elsa, Elsa Fernandes Saldanha. Eu sou Elisa Fernandes Saldanha. Éramos amigas, vivíamos juntas, nunca nos separamos, nem mesmo quando nossa mãe morreu, faz algum tempo. Não conhecemos nosso pai mas isso nunca nos fez falta, sempre tivemos o que comer, o que estudar, o que fazer. Éramos felizes quase sempre, seria exagero dizer que nunca nos sentimos infelizes. Não nos casamos, nem eu nem ela ligávamos para o casamento. Vivíamos bem – repito – temos alguma renda, dou aulas particulares, ela também tinha um emprego.– Era prostituta?
– Não. Assistente social.
A mulher ofereceu:
– Tomam alguma coisa?
– Obrigado. Estamos de serviço.
A conversa era tão informal que a moça podia objetar: não, não considerem isso um serviço. Preferiu não insistir na gentileza.
– Bom, o que se passou com a minha irmã é um caso difícil de explicar, embora fácil de demonstrar. Tinha uma paixão que a levaria, mais cedo ou mais tarde, ao suicídio. Por favor, me acompanhem.
Os dois policiais levantaram-se e seguiram a mulher, que deixou a sala, penetrou no pequeno corredor e parou diante de uma porta.
– Aqui era o quarto dela. Podem entrar, os senhores verão com os próprios olhos.
Entraram no quarto: coisa pequena, abafada, o armário embutido tomando uma das paredes, a pequena mesa, uma cadeira, a cama desfeita, como se alguém houvesse acabado de levantar-se, um pé da sandália verde, o tapete. Seria e era um quarto normal se não houvesse pelas paredes, pelas portas do armário, pela mesa, até mesmo pelo chão, uma porção de fotos de bicicletas. Coloridas, pequenas, grandes, recortadas de revistas e de catálogos de fábrica, de vários tamanhos e feitios e cores e usos, cintilantes, opacas, cromadas, multicores, embandeiradas, desmontadas, lívidas, gritantes, estáticas, abandonadas, puras, destacadas – entidades à parte de um universo niquelado e frágil. E além de tantas bicicletas, havia em cima da cama um pára-lama escuro – pára-lama de bicicleta, era evidente: uma estreita faixa de aço esmaltado em negro, em forma de meia-lua, os furinhos para a colocação dos aros nas rodas.
Apesar de abandonado no centro do leito, parecia uma peça do próprio leito, mais do que o lençol, a colcha, o travesseiro.
– Estão vendo?
A pergunta, apesar de idiota, obteve resposta dos policiais, que só depois que a responderam acharam que tanto a pergunta como a resposta eram idiotas:– Sim, estamos vendo.
Estavam vendo mas não estavam entendendo. Para que e por que tantas bicicletas? Para que e por que aquele pára-lama em cima do leito? O que tinha aquilo tudo a ver com o corpo espesso, estatelado lá fora, na calçada?A mulher compreendeu que os homens não compreendiam e disse naturalmente, como se desse bom dia:
– Ela se apaixonou por esse pára-lama!
A frase, solta ali no quarto, não espantou os policiais, que decididos ficaram a não mais se espantar dali por diante. Quase cometeram um exagero, concordando com a cabeça, sim, sim, ela se apaixonou por um pára-lama, há mulheres que se apaixonam por cantores de rádio, por artistas de cinema, por vizinhos, por homens casados e proibidos, essa aí se apaixonou pelo pára-lama e por isso está lá embaixo, coberta pelo lençol e cercada de velas, no meio da rua e da noite.
Tampouco tiveram a coragem necessária para a necessária pergunta: E daí?A mulher apanhou a pergunta no ar e resolveu fazê-la, por conta própria:– E daí? Bom, e daí é que faz alguns anos, dois talvez, que ela trouxe esse pára-lama para casa. Dormia com ele, abraçada nele, como um amante. Chorava às vezes, e quando eu vinha ver o que havia, encontrava a irmã de joelhos, chorando, beijando o pára-lama. Mas nem sempre chorava. Conversava com ele, durante muitas noites ouvia-a gemer, eu vinha na ponta dos pés e a encontrava agarrada ao pára-lama, soluçando, saciada. Os senhores são homens esclarecidos, na certa compreenderão.
Os policiais abaixaram a cabeça diversas vezes, em parte para concordar que compreendiam, em parte para lamentar os acontecimentos. Um deles se aproximou da cama mas a mulher foi mais rápida, colocou-se no caminho, como a proteger o pára-lama de uma invasão.
– Não precisam mexer, é um pára-lama comum, já velho, tem até um pouco de ferrugem. Minha irmã tinha ciúmes dele. Andava deprimida ultimamente, chorando pelos cantos, tomava pílulas para dormir. Hoje à tarde, ela saiu muito excitada. Andou pela rua sem fazer nada, apenas para acalmar os nervos. Trancou-se depois aqui no quarto. Ouvi o choro dela mas não dei importância, já me habituara. De repente, a porta se abriu com violência. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela correu para a sala, duas janelas estavam fechadas mas havia a do meio, aberta. Subiu no peitoril e saltou. Tive tempo, ainda, de roçar minha mão pelo seu corpo, mas não consegui agarrá-la. Ela caiu.
– Gritou?
– Não sei. Não ouvi nada, talvez tenha gritado. Quem ouve um grito assim?A mulher fez um gesto doloroso, não querendo falar mais no assunto.– Bem, os senhores viram o quarto dela. Sabem tudo agora.
Voltaram para a sala. Ela apontou com a mão:
– Foi desta janela.
Para fazerem alguma coisa, os policiais examinaram o peitoril. Não havia marcas. Mas lá embaixo, na calçada, velas tremiam – agora eram seis, talvez sete, lambendo a noite, ao redor do cadáver. Sim, não havia dúvida, o cadáver caíra dali, a moça subira o peitoril e se atirara contra a calçada.– Lamentamos muito. O caso está encerrado. Nossas condolências pela morte de sua irmã (e os policiais sentiram-se polidos ao usarem a palavra "condolências"). Teremos de chamá-la ao distrito, mais tarde, para as formalidades. Mais uma vez, aceite nossas condolências – quase berravam a palavra.
A mulher acompanhou os policiais até a porta. Ela mesma lembrou:
– Não querem dar uma espiada no meu quarto?
– Não precisa. Estamos satisfeitos.
Por mais que espremes-sem o crânio, não encontravam agora um jeito de introduzir a palavra "condolências" na frase. A mulher, sim, introduziu-os no elevador.
– Boa noite.
– Boa noite.
A mulher retornou ao apartamento, fechou a porta. Só então reparou que a sala estava inteiramente iluminada, como se ali tivesse havido uma festa, ou um culto. Ela apagou as luzes, uma a uma, até sentir a escuridão compacta, pastosa, de encontro ao rosto. Não queria olhar mais o peitoril, onde, há pouco, lutara com a irmã, até conseguir suspendê-la e jogá-la pela janela.Sem pressa, tomou a direção do quarto da irmã. Praticamente a arrastara do quarto à sala, apelou para a força quando a outra suspeitou que seria atirada pela janela.
"Podia ter sido pior. Ela está morta. E aqueles idiotas não desconfiaram de nada."
Entrou no quarto da irmã. Estava escuro ali. O pára-lama ficara jogado no meio da cama. Ela o agarrou com a intimidade certa de seus dedos aflitos. Abraçou-se ao pára-lama, beijou-o. Rolou pela cama, as narinas em fogo:"Agora sim! Agora sim!"


Carlos Heitor Cony é jornalista e escritor. Autor de Quase Memória, entre outros