Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

TV, o poder paralelo

Criado nos quartéis, o pit bull cresceu e está fora de controle

INIMÁ FERREIRA SIMÕES


Ininmá Simões / Foto: Gabriel Cabral

No dia 12 de agosto de 2004, o jornalista Inimá Ferreira Simões proferiu palestra no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, sobre o controle social da televisão.
Formado em psicologia e com especialização e mestrado em cinema, Inimá Simões conhece os bastidores da televisão brasileira, pois trabalhou em diversas emissoras e publicou vários trabalhos sobre o assunto.
Apresentamos abaixo um resumo da palestra e do debate que a seguiu.

Não vou discutir a programação da televisão brasileira, mas sua estrutura geral, como está organizada e como paira soberanamente sobre tudo no Brasil. Na Câmara dos Deputados, percebemos, na última legislatura - não na atual -, que 32,8% dos deputados tinham concessão de rádio e televisão. Disso se conclui que qualquer mudança é muito difícil, pois nossos parlamentares são parte interessada na manutenção do status quo.

Além disso, a legislação prevê o prazo de 15 anos para a concessão, que pode ser renovada ou não. Na época do governo militar algumas emissoras foram cassadas, mas por motivos políticos. Nunca mais houve cassação. Aliás, para isso é necessário o voto nominal de dois quintos dos deputados e senadores. No Brasil nenhum parlamentar vai votar contra uma rede de televisão, por exemplo, e assim ficar relegado ao limbo durante o resto de sua carreira política.

Em 2002, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados lançou a campanha Quem Financia a Baixaria É contra a Cidadania, iniciativa do deputado Orlando Fantazini, do PT de São Paulo. Ela conseguiu boa repercussão. E pela primeira vez alguns anunciantes começaram a se posicionar em relação à programação.

A história da televisão pode ser dividida em três grandes períodos. O primeiro é a fase clandestina, nos anos 50, começo dos 60. A televisão era elegante, voltada para uma classe média restrita a São Paulo e Rio de Janeiro. A partir de 1964, esquematicamente, a TV ganhou impulso pela coincidência de interesses, pois o governo militar quis desenvolver as comunicações no país dentro da política de segurança nacional. Assim, a televisão cresceu com a Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel) e vários órgãos, até que em 1985, quando o general João Figueiredo deixou o governo, ela descobriu uma liberdade nunca vista antes. Passou então a participar diretamente da vida política do país. Houve episódios interessantes, como o da escolha do último ministro da Fazenda do governo José Sarney, Maílson da Nóbrega. Sarney recebeu Maílson e depois de tudo acertado pediu-lhe que fizesse uma visita a Roberto Marinho. Ele assim fez, e a Rede Globo, antes de o próprio Sarney formalizar, anunciou o nome do novo ministro. Há muitos outros exemplos da participação da televisão na formulação de leis, etc., em que se coloca acima das instituições brasileiras.

Gosto de usar a imagem do pit bull. No começo, quando a TV era praticamente clandestina, era um filhote inofensivo. Mas o pequeno pit bull foi criado num quartel, numa relação pavloviana de estímulos e reações. Quando os militares se retiraram o animal já tinha crescido. Como colocar uma coleira nesse bicho agora? Essa é a questão a discutir, o controle social da televisão. A Constituição prevê, nos artigos 220 a 224, uma série de obrigações para a TV, mas ela nunca obedeceu a esses preceitos.

Outra questão, já resolvida em países desenvolvidos, é a propriedade cruzada, que ocorre quando um determinado grupo empresarial controla jornais, revistas e emissoras de rádio e de televisão. A população, dentro de sua área de influência, tem a opinião formada e dominada por esse grupo de comunicações. Há muito disso no Brasil, especialmente no nordeste, mas também no Rio Grande do Sul. Falta uma legislação para definir o assunto. Estados Unidos e países da Europa consideram esse fato uma ameaça à liberdade de informação.

Existem na Câmara dos Deputados e no Senado vários projetos, várias propostas de emenda constitucional (PECs) a respeito de rádio e televisão. Uma delas, muito preocupante, fala da abertura para o capital estrangeiro, o que pode significar a desnacionalização definitiva. Isso no caso da televisão aberta, em que a participação estrangeira permitida é de 30%. A TV a cabo tem legislação mais flexível. Sem falar da digital, que ainda é pouco discutida.

Os brasileiros, segundo informações da Câmara Brasileira do Livro, lêem apenas 1,7 livro por ano. É muito pouco. As pessoas se formam e se informam assistindo televisão, discutem tudo a partir do que vêem no vídeo. Pouquíssimos lêem jornal, revista. Preocupa ver um meio de divulgação tão poderoso como a TV acima de qualquer regulamentação.

ISAAC JARDANOVSKI - Como você vê a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo e da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav)?

INIMÁ SIMÕES - Não conheço o texto das duas propostas. No caso do cinema, é complicado, porque sempre foi subvencionado pelo Estado. Os filmes de maior prestígio no Brasil foram produzidos com apoio dos governos dos estados, prefeituras, da Embrafilme e órgãos desse tipo. O cinema brasileiro não é rentável. O mercado é pequeno, e as produções raramente se pagam. As fitas norte-americanas chegam aqui já mais ou menos pagas e têm mercado, além de serem vendidas a preço baixo para a televisão. Com relação à Ancinav, segundo palavras do ministro Luiz Gushiken, o governo decidiu conversar um pouco mais sobre isso. Sempre houve no país essas iniciativas estatais de interferência. Mas a grita dos cineastas é muito grande e eles têm espaço na mídia. A proposta parece-me um erro estratégico do governo.
Quanto ao Conselho Federal de Jornalismo, conheço ainda menos essa questão. Parece-me que ele une contra si jornalistas de todo o espectro político-ideológico. Minha primeira impressão é que eu também seria radicalmente contra. Esses projetos nunca deram certo, nunca funcionaram, pelo menos nos países que temos como modelo de democracia.

EDUARDO SILVA - A fase que você chamou de militar, creio que não foi só de criar o pit bull no quartel. Era um esquema voluntário para concentrar poder e capital. A televisão se desenvolveu assim. Foi uma aliança mesmo, e funcionou.

OLIVEIROS S. FERREIRA - Pelo contrário, o regime caiu.

EDUARDO SILVA - Caiu, mas não por causa da televisão.

INIMÁ SIMÕES - Houve um casamento muito interessante da televisão com o regime militar.

OLIVEIROS - Quanto à relação imprensa e governo militar, foi devido à censura que o regime caiu. Lembro-me do jornal que, por não poder publicar certas coisas, começou a criticar as empresas estatais, falar do descaso pelo meio ambiente, do abandono dos índios, etc. Criou uma opinião pública sobre isso.
Quanto ao controle social da televisão, como se faz isso? O que você entende por controlar o pit bull?

INIMÁ SIMÕES - Há vários aspectos. Um é regulamentar alguns itens da legislação que estão na Constituição. Então vamos criar um grupo de trabalho, e definir melhor isso. José Gregori, quando ministro da Justiça, sugeriu que se fizesse um controle da televisão segundo o modelo do Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária (Conar), ou seja, a auto-regulamentação, o que é complicado. Há um Conselho Nacional, previsto na Constituição, que foi criado em 1991 mas só funcionou de fato uns dois ou três anos. Tem três representantes e é um órgão apenas de consulta. Ora, quando se fala em conselho, pensamos no modelo francês, por exemplo, ou na própria Federal Communications Commission (FCC) norte-americana, uma agência reguladora. Reguladora, não, uma agência que tenha poder de aplicar as sanções. No nosso conselho, que funciona no Senado, as pessoas discutem e entregam o assunto aos senadores. Como estes também têm interesse nas concessões...
Primeiro temos de criar uma legislação específica para a televisão, atendendo a Constituição, e um conselho com poderes de aplicação de sanções, multas e até punição. Um órgão que tenha representantes do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, da sociedade civil, sei lá como, não tenho a fórmula, mas penso que pelo menos não pode estar atrelado ao período eleitoral, de quatro em quatro anos.

LENINA POMERANZ - Para que esse conselho funcione, é preciso definir as relações Estado-sociedade. Determinar que o Estado tenha x responsabilidades e a sociedade legitime a ação do Estado como responsável pela educação através dos meios de comunicação. Gostaria que fosse aprofundado esse aspecto.

MÁRIO AMATO - Há uma fábula de Fedro em que perguntam a um sábio qual a coisa melhor do mundo. Resposta: a língua. E qual a pior coisa? Também a língua. A televisão pode igualmente ser a melhor e a pior coisa do mundo.

INIMÁ SIMÕES - Antes de mais nada, devo dizer que a televisão brasileira é uma das melhores do mundo. Nos últimos anos ela tem participado ativamente dos grandes movimentos sociais do país. Mas há momentos de muita competição pela audiência, geralmente quando a publicidade se reduz e aumenta a briga para manter a cabeça fora da água. Então acontecem os exageros. Isso é periódico na televisão brasileira.

AMATO - E o rádio?

INIMÁ SIMÕES - O rádio brasileiro mudou muito. Hoje há uma central de produção em São Paulo e no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte talvez, e ela alimenta milhares de emissoras pelo país. O operador só põe a inserção publicitária local. E o que é péssimo é que no rádio e na televisão o jornalismo é tradicionalmente ruim. É o gilete-press. O profissional chega de manhã, pega os jornais e vai marcando aqui e ali e passa para o locutor, que apenas lê. Com exceção das grandes emissoras, como CBN, Bandeirantes e Jovem Pan, o jornalismo no rádio acabou, principalmente nas FMs. Estas ainda divulgam notícias, mas querem fazer gracinha ao mesmo tempo, é aquele jornalismo do show business, e os locutores não entendem nem o que estão lendo.
Dizem que existem não sei quantos milhares de emissoras no Brasil. Existem em termos, na verdade são poucas.

ADIB JATENE - A maioria de nós foi formada numa época em que não havia televisão, e os valores vinham da escola, da religião, etc. O avanço tecnológico praticamente desconsidera tais valores, substituindo-os por interesses de pessoas ou grupos. Creio então que os erros da televisão não têm nada a ver com ela, pois estão naquilo que a sustenta, uma vez que as atrações se mantêm ou não de acordo com a audiência. Se não houver patrocinador, o programa pode ser o melhor do mundo, mas sai do ar. A própria legislação fica subordinada ao poder econômico-financeiro, que é quem elege os deputados. Você disse que 33% dos deputados têm empresas de comunicação.

INIMÁ SIMÕES - Na legislatura anterior, na atual baixou um pouco.

JATENE - E os que não têm são eleitos como? Usam um esquema financeiro para se eleger e aí se subordinam aos interesses de quem sustentou sua campanha. Quando estive no Ministério da Saúde e fomos regulamentar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), foi aprovado um artigo que proibia a Receita Federal de utilizar as informações da CPMF para efeito de imposto de renda. Quando conseguimos uma legislação contra o fumo e a bebida, passou um artigo que dizia que a lei não se aplica às bebidas de teor alcoólico inferior a 13 graus. Liberou-se assim a cerveja, que está alimentando o vício.

NEY PRADO - Mas também alimentando o governo por meio dos impostos.

JATENE - Sim, mas o imposto é um problema à parte. Você mantém uma propaganda na televisão que diz: "Se seu time perdeu, console-se; se o seu time ganhou, comemore". Estão estimulando a bebida, que é um grande problema social que temos. A questão é muito complicada, porque apresenta vários aspectos, e o que mais me preocupa é este: Quem sustenta a baixaria? É quem faz propaganda de produtos de olho no Ibope.

INIMÁ SIMÕES - O pensador mexicano Octavio Paz dizia que quem estabelece os valores é a sociedade, ao mercado cabe fixar os preços. Na questão da televisão, cabe à sociedade definir os valores. Infelizmente, ela é muito tímida.

LUIZ GORNSTEIN - No governo autoritário as tevês educativas tinham um nível de excelência e hoje foram mediocrizadas. Em São Paulo a TV Cultura é uma caixa-preta, e está abandonada.

INIMÁ SIMÕES - Na época da ditadura militar a TV Cultura era absolutamente chapa-branca, os jornalistas eram perseguidos. Vejam o caso de Vladimir Herzog. Esse episódio derrubou até o então secretário de Cultura, José Mindlin. Aliás, quem mandava fazer as coisas era o Palácio do Governo. Corria na redação da Cultura a seguinte história: como dona Maria Maluf, mãe do então governador Paulo Maluf, não gostava de futebol, a televisão exibia programas de música clássica no domingo à noite. Quando a TV Tupi já estava muito mal das pernas, em 1980, houve orientação do Palácio dos Bandeirantes para a Cultura repassar recursos para manter a Tupi no ar. Creio que a TV Cultura só conseguiu se firmar depois do período militar, a partir do governo Franco Montoro, com uma gestão mais eficiente.
No final dos anos 90 houve uma fase em que a Cultura chegou a atingir picos de audiência. Ela alcançou índices que deixaram as outras emissoras preocupadas. O programa infanto-juvenil das 7 ou 8 horas da noite, no horário tradicionalmente ocupado por noticiário e novela, provocou reuniões de emergência em várias emissoras. Mas não creio que tenha havido nenhuma alteração substancial na Cultura. Há problemas de gestão.
A TV Educativa do Rio é uma outra questão, tem problemas seriíssimos. Há uma rede de 20 e tantas emissoras educativas no Brasil, federais. A TV Cultura é estadual. Existe uma emissora educativa no nordeste que tem 3 mil funcionários. A TV Cultura funciona com 900 agora. É o velho sistema brasileiro de dar emprego a parentes e apaniguados.
A televisão é um grande supermercado. Quando surgiu o rádio no Brasil, em 1923, com Roquette Pinto, o modelo utilizado foi o inglês, público, formado por associações. É por isso que existem tantas emissoras chamadas Rádio Clube. O modelo atual, entretanto, é comercial, em que a propaganda é a intermediária que financia todo o sistema. Logo, tudo é um grande supermercado. Emissoras alugam horários, principalmente hoje, quando estão em crise.

CECÍLIA PRADA - Evidentemente, não podemos estudar nenhum fator do produto cultural isoladamente, mas dentro do todo. E o que é o todo deste país? Lembrando a expressão do saudoso Sérgio Porto, é um imenso festival de besteiras, de mediocridade ou de um propósito de rebaixamento dos padrões culturais. Isso se vê em todos os setores. A começar pela língua. Hoje se usa um idioma híbrido, mistura de inglês com coisa nenhuma. E não é somente um fenômeno, coisa que acontece, mas algo encorajado.
O que ocorreu, principalmente depois da ditadura, foi que liberou geral. Assim, ninguém precisa mais falar bem, nem estudar ou se preocupar com padrões culturais elevados. Pelo contrário, hoje em dia, a cultura é identificada como cultura de massa, porque o resto é posto de lado como elitista. Então, enquanto não se enxerga isso como um todo, é um pouco inútil tratar de problemas de determinado setor, ainda mais a televisão, que tem um papel muito importante até como vitrina do país. Ela é apenas um reflexo. Não adianta quebrar o espelho quando a imagem que reflete não nos satisfaz.

JACOB KLINTOWITZ - No caso da televisão, temos uma ambigüidade: é uma concessão do Estado e ao mesmo tempo é negócio, e um negócio difícil de manter. A publicidade brasileira também vive a ambigüidade nacional, pois tem uma criatividade extrema, é premiadíssima no mundo inteiro, mas o bolo publicitário é muito pequeno no Brasil. Nossa verba é muito reduzida e não consegue manter os veículos.
Não podemos esquecer que estamos vivendo uma época do espetáculo. Não só a televisão é um tipo de show, como também a vida pública brasileira é espetáculo, o governo, os jornais, o rádio, tudo é show. Então pedir que o show tenha conteúdo é o mesmo que pedir que o marketing faça cultura. Isso ocorre no próprio Ministério da Cultura, que patrocina eventos e não processos culturais.

INIMÁ SIMÕES - O rádio e a televisão são de certa forma controlados pelo Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), de 1962, elaborado numa época em que não havia nem videoteipe, muito menos televisão em rede. Está absolutamente superado. Nesse tempo, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) estava engatinhando, mas já conseguiu derrubar 52 vetos do governo, graças a seu lobby no Congresso. Não há uma fórmula de conselho. Entendo conselho como uma forma mais transparente de controle, incluindo setores que hoje não participam. Na França são nove integrantes, três do Executivo, três do Legislativo e três do Judiciário. Aqui isso seria impossível. Mas lá funciona. Aplicam multas, emitem vetos, publicam advertências.

 

Comentários

Assinaturas