Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Brasileiro desvairado

A atualidade de Mário de Andrade, 60 anos depois de sua morte

HERBERT CARVALHO


Mário de Andrade em retrato de Carlos Prado (1940) / Reprodução

A cultura deve ter um papel central em qualquer projeto nacional de desenvolvimento. O patrimônio de um país não é apenas material, como as edificações históricas; ele também está presente na cultura popular e precisa ser preservado. A indústria cultural massificante, principalmente a estrangeira, deve ter seus produtos taxados; a receita assim obtida será destinada a fomentar manifestações culturais autônomas.

Essas questões que hoje polarizam o debate no Brasil já estavam colocadas muito antes de o Ministério da Cultura propor a polêmica taxação dos filmes estrangeiros que estréiam em centenas de salas simultaneamente. Da mesma forma, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) nem mesmo existia quando um brasileiro pioneiro e visionário afirmava que o patrimônio cultural está presente na alma popular, "para além da pedra e cal".

Sessenta anos decorridos da morte de Mário Raul de Morais Andrade, ocorrida em 25 de fevereiro de 1945 (aos 52 anos de idade), o legado desse poeta, romancista, crítico de arte, ensaísta, cronista, pesquisador do folclore e musicólogo não inspira apenas políticas públicas nacionais e internacionais na área da cultura, como a proposta de conferir ao samba-de-roda do Recôncavo Baiano o título de Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.

Hoje, escritores como o paraibano Ariano Suassuna ou músicos como Antonio Nóbrega, ou ainda artistas plásticos como Emanoel Araújo empunham a bandeira do resgate do tesouro prodigioso "daquilo que é essencialmente popular, que o estudioso deve discernir do que é popularesco, feito à feição do popular, ou influenciado pelas modas internacionais", como ensinava o mestre do modernismo. Também o grupo de músicos paulistas A Barca acaba de percorrer com o projeto Turista Aprendiz 10 mil quilômetros e 22 cidades, do nordeste ao sudeste do país, para gravar, fotografar e filmar ritmos populares. Exatamente como fez em 1938 a Missão de Pesquisas Folclóricas idealizada por Mário de Andrade (ver texto abaixo).

Na arena editorial, merecem especial destaque duas obras que a Editora Senac São Paulo lançou em 2004 em co-edições com o Sesc São Paulo. Ambas foram pesquisadas no acervo de Mário de Andrade conservado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP) e revelam faces menos conhecidas do autor: De São Paulo: Cinco Crônicas de Mário de Andrade, 1920-1921 e A Música Popular Brasileira na Vitrola de Mário de Andrade.

Segredos da Paulicéia

No primeiro livro, a professora Telê Ancona Lopez, titular da área de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, curadora do arquivo de Mário de Andrade no IEB/USP e especialista na obra do escritor, analisa cinco crônicas publicadas pela revista mensal "Ilustração Brasileira", do Rio de Janeiro.

Reunidas em livro pela primeira vez, essas "cartas" representam a colaboração de um iniciante cronista paulistano para uma prestigiosa publicação da então capital federal. Nelas, o modesto intelectual da província transmite ao centro cultural do país que São Paulo esboça sua reação depois de ter sido, por longo tempo, "quase ofuscada totalmente pelo brilho do Rio".

Logo na primeira crônica, empunhando a quixotesca lança modernista, Mário de Andrade investe contra o moinho de vento do decorativismo ultrapassado de Ettore Ximenes, escultor de origem italiana que em 1919 vencera o concurso para erguer o Monumento à Independência. "O ilustre sr. Ximenes, que de longe veio, infelicitará a colina do Ipiranga com seu colossal centro de mesa de porcelana de Sèvres", ironiza Mário, para em seguida lançar o contra-ataque dos modernistas: o Monumento às Bandeiras, cuja maquete em gesso havia sido apresentada pelo ítalo-paulistano Victor Brecheret: "Se por acaso os paulistanos conseguirem reunir o dinheiro necessário para a construção da obra, a cidade comemorará, num hino triunfal de pedra e bronze, o passado bravo e heróico (...) Brecheret, para melhor caracterizar o espírito dessas bandeiras e o sonho destes homens magníficos, usa do símbolo. Uma longa teoria de seres gigantescos, desnudos, avança lentamente para a conquista do ideal que os enleva. Os últimos deles, figuras dum movimento extraordinário, arrastam a barcaça que as corredeiras impediram de passar. Nada os detém".

Mário, no entanto, não deixou de observar, de maneira politicamente correta - como diríamos hoje -, que os bandeirantes marcaram "com um rastro clamoroso de sangue nossos vastos limites interiores". Mas ele não chegou a ver a obra concluída, pois o monumento só ficou pronto 30 anos depois, e foi inaugurado em dezembro de 1953, abrindo as festividades do 4º Centenário de São Paulo. Até hoje, meio século depois, carinhosamente chamado pelos paulistanos de "empurra-empurra", ele faz no Parque Ibirapuera o contraponto modernista ao clássico monumento do Ipiranga.

Na segunda crônica, Mário apresenta parte do time que no ano seguinte protagonizaria a Semana de Arte Moderna de 1922: o pintor Di Cavalcanti, o poeta Guilherme de Almeida e o escritor Menotti del Picchia, retratado como "salamandra luminosa da literatura paulista".

Na terceira, aponta o sarcasmo na direção dos bancos e dos estilos arquitetônicos europeus, que a seu ver conferiam a São Paulo "esse aspecto de exposição internacional". Sua crítica ferina à fachada da Banca Francese e Italiana (Banco Francês e Italiano), na Rua 15 de Novembro, guarda atualidade nestes tempos de predomínio do capital financeiro mundial: "Eu não sei muito bem que heróicos serviços tenha prestado a Banca, nem a qual das pátrias os prestou, se à França, à Itália ou ao Brasil..." Faz o elogio de arquitetos como Ricardo Severo - que na época lançava o estilo neocolonial - e prega uma arquitetura genuinamente brasileira e paulista, que acabaria por se impor com Oscar Niemeyer e Villanova Artigas.

As últimas crônicas retratam dois ícones da belle époque paulistana no início dos anos 1920: o restaurante que então havia no belvedere do Parque Trianon, na Avenida Paulista, com salões de chá e de baile, e a Villa Kyrial, "contrapeso da indigência" e dos "divertimentos fúteis", nos quais "as meninas comentam os vestidos... Os meninos comentam muques". Esta última, retratada no livro de Márcia Camargos Villa Kyrial - Crônica da Belle Époque Paulistana, também da Editora Senac São Paulo, era a residência do mecenas José de Freitas Vale, que organizava ciclos de conferências sobre filosofia e sobre diferentes aspectos de todas as atividades artísticas.

Em resumo, nessas cinco crônicas escritas entre novembro de 1920 e maio de 1921, Mário de Andrade conta "coisas lindas, singulares, que Paulicéia mostra só a mim", além de destacar "o movimento artístico e literário da gente paulista". Elas estão acompanhadas, no livro, por notas explicativas e introdução analítica da professora Telê Ancona Lopez, que ocupam mais da metade da obra.

Ouvido crítico

A segunda obra sobre Mário de Andrade, entretanto, vai além do ineditismo e inaugura um gênero literário insólito, o de anotações em capa de disco. Trata-se de um presente inestimável para os amantes da MPB e não seria exagero dizer que depois de lê-lo, e ouvi-lo, já que um CD inédito de 12 músicas o acompanha, não será possível enxergar nossa música popular do mesmo jeito.

Organizado por Flávia Camargo Toni, pesquisadora do IEB/USP e orientadora no programa de pós-graduação em musicologia da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o livro destaca 161 discos de MPB - de um total de 544 colecionados por Mário de Andrade de 1927 até sua morte, em 1945. São gravações em 78 rotações (uma música de cada lado), que o musicólogo retirava das embalagens originais - mera propaganda das fábricas -, que na época não traziam as fichas técnicas, substituindo-as por capas de cartolina lisa que mandava fazer.

É nessas cartolinas que o poeta de Paulicéia Desvairada escrevia, a lápis ou tinta, suas opiniões sobre cantores então iniciantes, como Moreira da Silva e Carmen Miranda, ou sambistas consagrados, como Pixinguinha e Sinhô. Ali estão os gêneros tradicionais da música urbana como o maxixe, o samba e o choro, ao lado de ritmos rurais como a embolada e a moda de viola. Ou novos, como no comentário ao disco de nº 132 (os discos estão catalogados por ordem cronológica, de acordo com o ano de gravação ou lançamento), no qual Mário de Andrade, a respeito de Saudades do meu Barracão, de Ataulfo Alves, sinaliza o nascimento do samba-canção, que considera "a evolução lógica" e a "nacionalização definitiva da modinha".

No prefácio, o crítico e pesquisador da história da MPB José Ramos Tinhorão revela o processo de criação do mestre: "O então crítico do jornal paulistano ‘Diário Nacional’ costumava, desde a virada das décadas de 1920/1930, colocar discos na vitrola de corda todas as manhãs e, enquanto se barbeava, ia ruminando as impressões que logo registraria escrevendo, à mão, nas capas de cartolina". De acordo com Tinhorão, "o ouvido crítico de Mário de Andrade, porém, era certeiro, e tudo o que apontou como criação de algum valor cultural, em disco (...) pode ser confirmado hoje com a isenção do tempo na perspectiva histórica".

As anotações não serviam apenas para fundamentar as críticas dos discos e das composições feitas no calor da hora, para a imprensa diária. Aparecem também de forma mais elaborada na vasta literatura musical de Mário de Andrade, em livros como Os Cocos, Compêndio de História da Música, Dicionário Musical Brasileiro, Ensaio sobre a Música Brasileira, Música de Feitiçaria no Brasil, Música, Doce Música e Aspectos da Música Brasileira, além de terem influenciado o capítulo sobre macumba de sua obra-prima, Macunaíma.

Assim, para cada disco, após a descrição dos conteúdos dos selos dos lados A e B, abaixo da transcrição das notas escritas nas capas, Flávia Camargo Toni reproduz as referências na literatura musical de Mário de Andrade. Esse precioso mosaico se completa com um apêndice que traz cartas e artigos, nos quais o escritor analisa o impacto das novas tecnologias da indústria cultural da época - o fonógrafo e o cinema falado e cantado - e faz uma advertência que permanece inteiramente atual: "Os ianques, como raça que são, a tudo quanto recebem, deformam e organizam conforme os caracteres nacionais. Nós não, é cada coisa que recebemos que nos transforma e organiza..."

Quanto ao CD que acompanha a obra, a sensação que nos deixa é um sabor de quero mais, menos pelos choros de Ernesto Nazareth e Pixinguinha (disponíveis em outros CDs), e mais por raridades como a gravação original de 1931 da chula raiada Patrão Prenda seu Gado, de autoria do próprio Pixinguinha em parceria com Donga e João da Baiana, feita por um certo Grupo da Guarda Velha. Comentário de Mário de Andrade: "É uma obra-prima. Reparar que tem um certo ar de samba rural". Ou então Andorinha Preta, de 1932, "embolada sobre motivos populares", de Breno Ferreira, cantada pelo próprio, cuja "excelente liberdade rítmica na dicção" é elogiada por Mário de Andrade.

Longe de apenas elogiar, entretanto, Mário de Andrade advertia que o tango, a rumba e principalmente o jazz influenciavam o tratamento que os arranjadores davam à música no estúdio: "A fábrica Victor tem hesitado e mesmo errado bastante nas suas gravações brasileiras. Diante de sonoridades novas, de processos novos de cantar, era natural, os técnicos norte-americanos que vieram para cá se desnortearam".

Se vivo fosse, Mário de Andrade na certa se revoltaria diante dos tipos de bolerão horroroso e música country da pior espécie que hoje passam por música brasileira, ao lado da vulgarização e deturpação do axé e do pagode. Já naquela época ele disparava, como no comentário ao disco 32: "Muitos discos desta minha coleção, quase todos os Victor (...) me foram dados pra coleção. Daí a posse de coisas como estas que aliás são ótimas pra quando precisar citar porcarias absolutas".

Sobre os discos para o carnaval de 1931, ele avisa: "Entre as mesmas mediocridades de sempre, três discos de valor artístico e excepcional. Não sei se terão sucesso popular e ficarão na memória das ruas carnavalescas, o povo é sempre um segredo. Ora acata o bom, ora o pior, dominado por uma lei secreta que pelo menos por enquanto ninguém não descobriu".

Nesse mesmo ano ele defende em sua coluna no "Diário Nacional" a taxação da música mecânica veiculada pelas rádios e o uso da verba resultante no "sustento e incremento da atividade musical", antecipando em mais de 70 anos o tipo de polêmica que hoje cerca a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). O órgão regulador proposto pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva prevê a taxação do faturamento publicitário das emissoras de TV, para financiar a produção nacional de filmes.

Brasileiro, brasileiros

Em São Paulo, a atualidade de Mário de Andrade - que foi o primeiro secretário municipal de Cultura do país, dirigindo, a pedido do prefeito paulistano Fábio Prado, de 1935 a 1938, aquilo que então era o Departamento de Cultura - transborda dos centros culturais e da biblioteca central que leva seu nome para os museus.

No recém-criado Museu AfroBrasil, no Parque Ibirapuera, o acervo permanente homenageia Elsie Houston, a soprano negra que apesar do nome era brasileiríssima, consagrada na França e nos Estados Unidos mas até hoje praticamente ignorada no país. Sobre ela, Mário de Andrade disse: "Nos cantos brasileiros é um modelo. É a única de todas as nossas cantoras de concerto que de fato canta em brasileiro já".

Nesse mesmo espaço, no catálogo da exposição Brasileiro, Brasileiros, pode-se ler o texto "Descobrimento", também citado no show, CD e DVD de Maria Bethânia Brasileirinho, que revela o amor de Mário de Andrade pelo Brasil e por seu povo: "Abancado à escrivaninha em São Paulo na minha casa da Rua Lopes Chaves de supetão senti um friúme por dentro. Fiquei trêmulo, muito comovido, com o livro palerma olhando pra mim. Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito longe de mim, na escuridão ativa da noite que caiu, um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, depois de fazer uma pele com a borracha do dia, faz pouco se deitou, está dormindo. Esse homem é brasileiro que nem eu".


Caçador de melodias

O acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas enviada por Mário de Andrade ao norte e nordeste do Brasil, em 1938, não é mais privilégio de uns poucos pesquisadores da Discoteca Oneyda Alvarenga. Constituído por registros musicais, fotos e filmes feitos entre fevereiro e julho daquele ano por uma equipe chefiada pelo arquiteto Luís Saia e preparada pela etnóloga francesa Dina Lévi-Strauss, esse inestimável patrimônio ganhou, no final de 2004, um espaço permanente no Centro Cultural São Paulo, na Rua Vergueiro.

Viajando por mar, rios e terra em caminhões e balsas para carregar o pesado equipamento disponível na época, a expedição foi de Pernambuco ao Pará, passando por Paraíba, Ceará, Piauí e Maranhão. Trouxe por volta de 1,5 mil melodias de cantos populares anotadas, seis rolos de filmes sobre festas e rituais religiosos, 600 objetos de arte popular e 7 mil páginas de diários de viagem.

As gravações permitem resgatar pela tradição oral do povo gêneros musicais como cocos, caboclinhos, modinhas, congos, cantos de pedinte e de carregadores de piano, naus-catarinetas, aboios, repentes, catimbó, tambor-de-crioulo e tambor-de-mina, bumba-meu-boi e outras músicas de rezar, dançar, trabalhar ou, simplesmente, cantar.

A idéia dessa expedição, "coisa de vida ou morte para mim", como escreveu Mário de Andrade em um bilhete ao folclorista Luís da Câmara Cascudo, começou a nascer dez anos antes. Em 1928, quando o Brasil acabava de entrar na fase da gravação eletromagnética de discos, ele faz uma viagem de pesquisa pelo norte e nordeste, registrada no livro "Turista Aprendiz".

É a partir dos milhares de melodias então copiadas à mão que, ao ter notícia de que a Itália criara uma Discoteca do Estado, passa a acalentar sonho semelhante para o Brasil. Em 1935, como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, ele cria a Discoteca Pública, hoje Discoteca Oneyda Alvarenga, nome que homenageia sua aluna no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e continuadora de seu trabalho na Sociedade de Etnografia e Folclore.


Herbert Carvalho é jornalista, autor do livro "Alguma Coisa Acontece", da Editora Senac São Paulo

 

Comentários

Assinaturas