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O pioneiro dos quadrinhos

Apogeu e queda do maior editor brasileiro dos polêmicos gibis

RODRIGO ARCO E FLEXA

Como ocorreu com os antigos impérios, houve o apogeu e a queda. Assim foi a história da carioca Editora Brasil-América (Ebal), que completa 60 anos em maio de 2005, criada pelo jornalista Adolfo Aizen, considerado o pioneiro e maior editor das histórias em quadrinhos (HQs) no Brasil. A partir de 1934, Aizen lançou, em suplementos de jornais, os personagens que faziam cada vez mais sucesso na imprensa dos Estados Unidos, como Flash Gordon, Tarzan, Príncipe Valente e Mandrake. Ao longo das décadas seguintes, a Ebal transformou-se na mais importante editora nacional de HQs (a única especializada nesse tipo de publicação, além de vender livros infantis). Difundiu no Brasil, com crescente sucesso entre os mais jovens, os super-heróis dos comic books (revistas em quadrinhos) dos EUA, entre eles, Super-Homem, Batman e Homem-Aranha. A editora publicou ainda HQs cômicas, de faroeste, versões em quadrinhos de clássicos da literatura e fatos da história brasileira, sem falar em uma quadrinização da Bíblia. Aliás, a expressão "quadrinizar", incorporada ao Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, foi criada pelo próprio Aizen.

Em seu apogeu, a Ebal competiu com os principais grupos editoriais da época, como O Globo, de Roberto Marinho, a Editora Bloch, de Adolfo Bloch, os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e a Editora Abril, de Victor Civita. A queda, por problemas financeiros e acirramento da concorrência, começou em meados da década de 1970. A partir daí, a editora iniciou sua lenta retirada do mercado de HQs, que culminaria com a morte de Adolfo Aizen, em 1991. Durante quatro décadas, a Ebal influenciou diversas gerações de leitores, artistas e editores, contribuindo de forma decisiva para dar legitimidade social às histórias em quadrinhos no Brasil. Hoje em dia, não faltam pesquisas sobre o valor das HQs como uma expressão artística relevante do mundo contemporâneo. Mas, nos anos 1940, 50 e início dos 60, eram constantes as críticas aos gibis - considerados nocivos aos mais jovens. Nos EUA, os comic books foram acusados por psiquiatras de induzir à "delinqüência juvenil". No Brasil, educadores, políticos e religiosos condenaram os gibis por produzirem "preguiça mental".

Adolfo Aizen defendeu em artigos, entrevistas e campanhas a importância educativa dos quadrinhos, argumentando que as HQs, na realidade, estimulavam o hábito da leitura. As publicações de Aizen tinham um cuidado especial no uso correto da língua portuguesa. A Ebal investiu ainda em adaptações de temas históricos e literários do Brasil, assuntos "sérios", o que tinha por objetivo mostrar como os gibis poderiam contribuir positivamente para a formação das crianças. "Adolfo Aizen tinha muito orgulho dessas revistas, que davam prestígio para a editora", lembra Eugênio Colonnese, artista italiano radicado no Brasil, que desenhou a quadrinização de A Proclamação da República para a Ebal.

A história da Editora Brasil-América, em sua amplitude, confunde-se com a evolução da imprensa no Brasil, assim como seus impactos sobre a sociedade. Essa trajetória até há pouco tempo não havia sido registrada em sua real dimensão. A boa notícia é que chegou às livrarias, no final de 2004, A Guerra dos Gibis - A Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura aos Quadrinhos, 1933-64 (Editora Companhia das Letras), do jornalista e escritor Gonçalo Junior.

HQs em debate

Com mais de 400 páginas (na realidade, "o resumo de um original com cerca de 1,5 mil páginas", afirma o autor), o livro é fruto de mais de uma década de investigações e entrevistas. A Guerra dos Gibis percorre o período que se inicia com o lançamento das primeiras HQs editadas por Adolfo Aizen, em meados dos anos 1930. Depois, analisa a concorrência com outras editoras, em especial após a entrada de Roberto Marinho no mercado dos gibis. Gonçalo analisa então como o sucesso crescente dos quadrinhos gerou uma reação negativa de alguns setores da sociedade. Seu livro mostra, apoiado em inúmeras reproduções de jornais, como a discussão em torno da publicação de HQs, entre as décadas de 1940 e 60, tornou-se uma polêmica nacional. O tema ganhou manchetes, e nomes de peso participaram do debate: enquanto Gilberto Freyre e Jorge Amado saíam em defesa das publicações, Carlos Lacerda e Samuel Wainer assumiam posição contrária.

O autor revela como a "guerra dos gibis" foi utilizada por diversos grupos da mídia, os quais se aproveitaram das críticas aos quadrinhos para desacreditar concorrentes. A obra abrange as tentativas de regulamentação do mercado de HQs no Brasil, como a criação de uma reserva de mercado, encerrando a pesquisa em 1964, ano do golpe militar no país. Sobre a década seguinte, na qual a Ebal ainda teve importante papel no lançamento de personagens, o autor tece alguns comentários finais. O período deve ser tema de um futuro trabalho. De qualquer forma, o fato é que A Guerra dos Gibis inclui a maior pesquisa já feita sobre o significado da Editora Brasil-América no mercado nacional de publicações.

Gonçalo Junior travou amizade com a família de Adolfo Aizen, e com isso teve acesso a documentos e anotações particulares. Vasculhou arquivos de jornais em bibliotecas de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. Diante da dificuldade para encontrar as edições mais antigas de Aizen, o autor procurou colecionadores de HQs. Um livreiro especializado, Valter Fernandes, apresentou o pesquisador ao dono de um dos maiores acervos de HQs do Brasil, o empresário paulista Antonio José da Silva (conhecido pelos amigos como Tomzé). Sua coleção compreende mais de 100 mil revistas, parte expressiva formada por títulos completos da Ebal. "Tudo começou com os gibis de Aizen", lembra Tomzé. Desse material, nasceu a farta iconografia que compõe o livro, com destaque para um caderno colorido com dezenas de reproduções de capas de gibis raros, dos anos 1930 aos 60.

Sonho realizado

A história da Editora Brasil-América é indissociável da trajetória de Adolfo Aizen (que receberia, em 1975, o Prêmio Yellow Kid, por sua dedicação aos quadrinhos, oferecido pelo Festival de Lucca, na Itália, um dos mais prestigiados do gênero). Na década de 1920, no Rio de Janeiro, Aizen iniciou a atividade de jornalista. Nos anos 30, acumulou trabalhos em publicações como "O Tico Tico" (revista para crianças que trazia HQs cômicas e curiosidades), além de "O Globo". O embrião do que viria a ser a Editora Brasil-América começou a se formar em 1933, quando Aizen foi, pela primeira vez, aos Estados Unidos. Tudo aconteceu quando o jovem jornalista soube que o Touring Club do Brasil organizava um cruzeiro para Chicago, onde seria realizada uma grande feira mundial - viagem patrocinada por clubes de turismo dos EUA para estimular o intercâmbio entre as nações.

Adolfo Aizen procurou os organizadores do cruzeiro. Seu empenho resultou num convite para participar da viagem como assessor de imprensa do Touring. O embarque ocorreu na noite de 17 de agosto de 1933, no Rio de Janeiro, movimentando a capital brasileira da época. Aizen acompanhou todo o cruzeiro, escrevendo dezenas de reportagens. Depois, estendeu sua permanência nos EUA, conhecendo Nova York. "Um dos passatempos do jornalista era bisbilhotar os pontos-de-venda de jornais e revistas. Encantava-se com o mercado editorial americano, então impulsionado pelas modernas tecnologias de impressão, que possibilitavam tiragens cada vez maiores em menor tempo", conta Gonçalo Junior.

Aizen viu um bom negócio nos suplementos que os jornais lançavam sobre assuntos como tramas policiais, esportes e temas femininos. Em especial, chamaram sua atenção os cadernos com tiras de quadrinhos de aventuras, a grande novidade da época. Ele se impressionou com aquele tipo de leitura, que era uma obsessão nacional. Todos os grandes jornais tinham as suas séries. "Aizen se espantou ao ver que as continuações das histórias de Buck Rogers e Tarzan eram acompanhadas com ansiedade por uma legião de fãs, como se fossem folhetins", afirma o escritor.

Adolfo Aizen voltou ao Brasil ansioso para tornar realidade a idéia de lançar suplementos temáticos na imprensa do país. Levou a proposta a Roberto Marinho, que não mostrou interesse. Mesmo assim, ele prosseguiu com o projeto, e foi assim que nasceu o "Suplemento Infantil". Aizen realizou seu sonho com o apoio do diretor do jornal "A Nação", João Alberto Lins de Barros, integrante do movimento tenentista que levou Getúlio Vargas ao poder em 1930. João Alberto viu com olhos favoráveis as novidades sugeridas por Aizen. Assim, "A Nação", a partir de março de 1934, começou a publicar suplementos temáticos, entre eles, o "Suplemento Infantil", com os novos heróis dos quadrinhos dos EUA.

Em poucas semanas, o suplemento tornou-se um objeto de desejo da garotada, fazendo aumentar a circulação do jornal. O rápido sucesso, no entanto, não agradou pessoas ligadas ao diário. Segundo a opinião de algumas delas, "A Nação" estaria caindo no ridículo. Acontece que os mais jovens compravam o jornal e o abandonavam nas ruas, ficando apenas com o "Suplemento Infantil". Preocupado em manter a credibilidade de seu periódico, João Alberto decide então cancelar os cadernos de HQs, mas, discretamente, dá apoio financeiro a Aizen para que ele funde sua própria empresa, o Grande Consórcio de Suplementos Nacionais.

Um segredo de décadas

A criação da editora trouxe um problema para Aizen. Uma lei aprovada em 1934 proibiu a presença de estrangeiros na direção de empresas jornalísticas (legislação que deixou de vigorar somente no governo Fernando Henrique Cardoso). O impedimento tornou-se um dilema para Adolfo Aizen. Não vendo outra solução, aceitou uma proposta do irmão, e forjou uma identidade brasileira. Aizen "tornou-se" assim, para todos os efeitos, nascido no Brasil, em 1907, em Juazeiro, na Bahia. O jornalista realmente nasceu naquele ano. Mas longe do Brasil, na província russa de Iekatrinoslav (Aldeia de Catarina). Somente três anos depois é que veio para cá, trazido pelos pais, judeus russos que fugiam da perseguição que sofriam em seu país.

Adolfo Aizen manteve sua origem em segredo por toda a vida, mesmo entre seu círculo familiar mais próximo. "Papai jamais me disse isso", conta o editor Naumim Aizen, um de seus filhos. O segredo somente veio a público com o lançamento de A Guerra dos Gibis. A verdade é que sua família chegou ao Brasil em 1910, num navio de refugiados, desembarcando em Santos. O pai resolveu morar no interior de São Paulo, onde trabalhou como mascate. Pouco depois, uma tragédia marcou Adolfo, ainda aos 7 anos. Seu pai foi assassinado. A mãe levou então os filhos para morar com parentes na Bahia. Em 1921, foram para Recife, mas antes de completar um ano na cidade transferiram-se para o Rio de Janeiro, onde Adolfo Aizen começou sua carreira.

Nasce a Ebal

O Grande Consórcio de Suplementos Nacionais publicou o "Suplemento Infantil", logo rebatizado como "Suplemento Juvenil", até o começo dos anos 1940. Em suas maiores tiragens, chegou a vender 360 mil exemplares, um recorde na imprensa da época. Em 1937, a publicação despertou o interesse de Roberto Marinho. O diretor de "O Globo" propôs a Aizen uma parceria para lançar HQs. Adolfo recusou. Meses depois, chegava às bancas "O Globo Juvenil", o jornal de quadrinhos de Marinho. Além da concorrência, Aizen ainda perderia, pouco depois, os direitos de publicação de alguns de seus principais heróis, como Flash Gordon e Jim das Selvas, adquiridos por "O Globo Juvenil", que ofereceu melhores preços aos representantes comerciais dos personagens.

O acirramento da disputa levou Aizen a reagir, lançando publicações como "Mirim" e "O Lobinho". Mas o início da década de 1940 trouxe crescentes dificuldades para o jornalista. A 2ª Guerra Mundial aumentou os custos do papel, havia problemas de distribuição e atrasos do pagamento de clientes. A situação tornou-se insustentável. Em 1942, a empresa foi vendida para o governo Getúlio Vargas. Nos anos seguintes, Aizen circulou por várias redações até tomar uma decisão. Era hora de começar um novo negócio. "Aos 38 anos, o editor tinha pela frente o desafio de não repetir os erros do passado no Grande Consórcio. (...) recorreu a João Alberto, para que o ajudasse a conseguir financiamento no Banco do Brasil", conta Gonçalo Junior. E assim ele reuniu capital para montar a editora.

Em 18 de maio de 1945, foi criada a Editora Brasil-América. No começo, Aizen pensava em não mais trabalhar com quadrinhos, desgastados pelas perseguições. Mas rendeu-se novamente às HQs, que tão bem conhecia e mostravam fôlego comercial para um retorno mais rápido. Em 1947, a Ebal lançou a revista que teria mais tempo de vida na editora: "Superman" (publicada até 1983). Nos anos 1950, os maiores sucessos da Ebal, ao lado de "Superman" e "Batman" (lançado em 1953), eram os títulos de faroeste e "Tarzan", além das quadrinizações de romances e da história do Brasil. A Ebal contratou artistas brasileiros ou estabelecidos por aqui, nomes como André Le Blanc, Gutemberg Monteiro, Nico Rosso, Monteiro Filho e Ivan Wasth Rodrigues.

No reino encantado

Nos anos 1960, os títulos de super-heróis multiplicaram-se, tornando-se uma marca registrada da editora. "Os super-heróis tomaram o lugar dos heróis do faroeste", recorda Naumim Aizen. O auge dessa época aconteceu a partir de 1967, quando a Ebal lançou os novos personagens da editora norte-americana Marvel, como Homem-Aranha, Hulk e o Quarteto Fantástico, que traziam uma concepção inédita na elaboração de suas aventuras, em termos gráficos e de roteiro. Diversamente de seus antecessores, os super-heróis da década de 1960 tinham dúvidas sobre a "luta do bem contra o mal".

Eram personagens neuróticos, com fraquezas e problemas humanos (como pagar o aluguel, situação típica enfrentada pelo adolescente Homem-Aranha). Eles estavam em sintonia (de forma explícita ou não) com as transformações sociais, culturais e de comportamento que o mundo apresentava nos anos 60. "Sou de uma geração que foi muito influenciada por essas histórias, que trouxeram um universo revolucionário para a linguagem das HQs", afirma Roberto Guedes, editor de quadrinhos e autor do livro Quando Surgem os Super-Heróis. O sucesso levou a editora a lançar um personagem brasileiro, o Judoka, um mestre em artes marciais, que trajava uma roupa inspirada na bandeira do Brasil.

"Além de bem cuidadas graficamente, as publicações tinham muito respeito pelo seu público. O melhor era a seção de cartas ‘Notícias em Quadrinhos’, estampada nas contracapas das revistas", diz Roberto Guedes. O editor e escritor Fernando Albagli, que trabalhou durante anos com Adolfo Aizen, lembra a atenção do jornalista com as cartas recebidas. "Sempre que possível, ele fazia questão de escrever as respostas", recorda Albagli. Na metade da década de 1970, no entanto, o poder econômico da concorrência foi minando, paulatinamente, o vigor da Ebal, que perdeu os direitos de publicação de seus principais super-heróis. Os personagens da Marvel foram os primeiros a deixar a Ebal, adquiridos pela Bloch. No início dos anos 80, a Editora Abril comprou os direitos das HQs da outra grande editora dos EUA, a DC (de Batman e Superman).

Para os leitores, a Ebal permanece como um símbolo de um mundo de fantasia. Um universo cuja porta de entrada tem um dono: Adolfo Aizen. "Sem dúvida, Aizen tinha a chave que abria o reino encantado das HQs", diz Gonçalo Junior, lembrando a expressão com que se tornou conhecida a Editora Brasil-América. Dessa maneira, a figura do editor tornou-se uma espécie de mito, como um cavaleiro que empenhou a vida na luta pelas histórias em quadrinhos. Aliás, um dos heróis preferidos de Adolfo Aizen era o Príncipe Valente, cujas aventuras se passam no tempo do rei Artur. E, em sua homenagem, Eugênio Colonnese desenhou o personagem com o rosto de Aizen.

 

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