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A eterna caminhada

Dom Quixote, um ilustre cavaleiro que desafia o tempo

CECÍLIA PRADA


Dom Quixote e Sancho Pança no traço de Picasso / Reprodução

Quatrocentos anos após deixar sua aldeia na Mancha em busca de aventuras e justiça, o grande cavaleiro criado por Miguel de Cervantes continua a aparecer, sempre acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança, por todas as estradas e povoados do mundo - Cavaleiro da Triste Figura como foi chamado, título supremo que incorporou à sua glória, eterno andarilho, paladino de todos os perseguidos da terra, e supremamente perseguido e humilhado ele próprio. A sombra de sua figura esguia, lança em riste, sobre o cavalo mais desconjuntado do mundo, ultrapassou para sempre as fronteiras da obra literária para se incorporar de maneira definitiva à própria humanidade que representa, em sua eterna caminhada.

Publicada em janeiro de 1605, após cerca de sete anos de gestação e quando Cervantes tinha já 57 anos, a primeira parte de El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de la Mancha alcança um sucesso sem precedentes de público - em março do mesmo ano já se prepara uma segunda edição. Nos anos seguintes, enquanto escreve e publica outras obras, o escritor anuncia que trabalha na segunda parte de Don Quixote - mas é surpreendido pela publicação em 1614 de um Quixote apócrifo, assinado sob o pseudônimo de Alonso Fernández de Avellaneda, o qual além de usurpar seus personagens dirige-lhe uma série de provocações.

A reação de Cervantes é um golpe de gênio - no prólogo da segunda parte do Quixote (publicada em 1615) sobrepõe altaneira indiferença ao mesquinho plagiário, enquanto sua verdadeira vingança é incorporar a história apócrifa do personagem ao seu próprio livro. Se na primeira parte a loucura de dom Quixote é causada pela leitura demasiada de novelas de cavalaria, na segunda o personagem lê sua biografia, sabe que falam de suas aventuras de verdadeiro herói; então, se antes esforçava-se para se tornar um cavaleiro, agora tem de viver seguindo o padrão do cavaleiro que realmente é, ou pensa ser.

Na primeira parte, desconhecido, perseguido, ridicularizado pelas alucinações que sobrepunha à realidade - tomando moinhos de vento por gigantes, rebanhos de carneiros por exércitos inimigos, ou rústicas camponesas por nobres donzelas - dom Quixote quer mudar o mundo, mas não consegue e é obrigado a recolher-se, desiludido, à sua aldeia natal. Mas quando sai em busca de novas aventuras, após ter lido e incorporado mais uma novela de cavalaria - a sua própria -, acha o mundo mudado, porque é reconhecido e festejado (ainda que ironicamente) em todos os lugares, mesmo pelos mais poderosos. Quando chega à conclusão de que suas obsessões são as que caracterizam a realidade do mundo exterior, e que este não passa de um grande e mentiroso teatro, abate-se completamente e resolve retornar à sua aldeia para viver simplesmente, como um pastor - ou, antes, um poeta árcade (Cervantes aproveita o ensejo para satirizar o novo modismo literário) - ou um modesto proprietário, mas não resiste a essa desilusão; logo adoece e morre.

As andanças de dom Miguel

Alguns biógrafos de Miguel de Cervantes dizem que ele teria começado a escrever Don Quixote durante um período em que, em 1602, esteve preso em Sevilha, juntamente com marginais de toda espécie, acusado de malversação de dinheiro público - na época, exercia o cargo de coletor de impostos. Ele próprio dá a entender isso, no prólogo à sua famosa obra: "(...) que poderia brotar do estéril e inculto engenho meu, senão a história de um filho ressequido, magro, caprichoso e cheio de pensamentos vários, nunca imaginados por ninguém, bem no estilo de quem foi criado em um cárcere, onde todo incômodo se aloja e todo ruído triste habita?" Podemos imaginar o escritor no ambiente da prisão, convivendo com centenas de prisioneiros vindos de todas as partes da Espanha e acusados dos mais diversos crimes, ouvindo suas histórias, suas desventuras, partilhando sua miséria, e disso tudo extraindo material para seus personagens. Mas foi certamente em suas aventuras pessoais, nas suas alternâncias de sucessos e fracassos, erros e acertos, que o criador do Quixote buscou a fonte mais importante de sua inspiração. Viveu uma existência boêmia, instável, tumultuosa, e há nele próprio muito de um "quixotismo" recorrente em vários episódios de sua vida; e certamente o diálogo que manteve com a parte mais terra-a-terra, mais "sensata", mais "Sancho Pança" do seu eu foi por ele reproduzido com maestria nas famosas conversas entre os dois imortais personagens.

Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares em 1547, em família numerosa e pobre - seu pai exerceu um humilde ofício, o de cirurgião-barbeiro, o que o obrigava a mudar-se freqüentemente, com a família, de uma cidade a outra da Espanha. Pouco ou nada conhecemos da infância e da adolescência do criador do Quixote. Sabemos apenas que em 1567 estudava em Madri com o famoso humanista Juan López de Hoyos e escrevia sonetos em honra dos nobres, como devido na época. Mas em setembro de 1569 uma ordem de prisão é publicada contra um tal Miguel de Cervantes, que teria ferido num duelo Antonio de Sigura, e que deveria ser punido com a perda da mão direita e dez anos de exílio. Poderia ser um homônimo? Pouco provável, porque na mesma época o jovem Miguel desaparece repentinamente de Madri e vai para Roma como camareiro do cardeal Julio de Acquaviva, a quem fora apresentado pelo mestre López de Hoyos. O certo é que, alguns meses mais tarde, o pai de Miguel é obrigado a fornecer, a pedido de Roma, um certificado de que seu filho era legítimo e pertencia a uma antiga linhagem cristã. Também é curioso notar que durante alguns anos (até 1572) o escritor usasse somente o sobrenome materno, assinando "Miguel de Saavedra" - no Quixote refere-se ainda a si próprio como "um tal de Saavedra".

Essa perseguição, e algumas outras encrencas em que se meteu, são explicadas por alguns de seus biógrafos, como o escritor espanhol Fernando Arrabal, pelo seu homossexualismo - na época ele já era conhecido por suas amizades duvidosas, principalmente no meio teatral. Na Itália, Cervantes não permaneceria muito tempo a serviço do cardeal Acquaviva. Em 1571 resolve alistar-se na grande armada chefiada por dom João da Áustria, fundeada em Messina - porto de onde essa formidável esquadra parte para travar em Lepanto uma das mais memoráveis batalhas da história, para salvar a Europa da invasão turca. Nela é ferido e perde sua mão esquerda, para gloria de la diestra, como disse várias vezes, orgulhando-se do apelido que lhe deram, "o maneta de Lepanto". Incorporado às forças pontifícias, apesar de seus ferimentos tomou parte em outros combates, como o de Navarino e o de Túnis. Após cinco anos de vida militar e ansiando ser promovido a capitão, Miguel pede para regressar à Espanha. Embarca em Nápoles na galera Sol em 20 de setembro de 1575, levando excelentes cartas de recomendação a seus superiores, e em companhia de seu irmão mais novo, Rodrigo. Mas sua má fortuna faz com que a galera seja atacada seis dias mais tarde, perto de Marselha, por navios piratas turcos. Capturados, os irmãos são levados para Argel e vendidos como escravos - uma experiência que o escritor mais tarde incorpora ao Don Quixote, no "episódio do cativo".

Começa então a parte mais dura e aventurosa da sua vida - durante cinco anos é sujeito a serviços inferiores, maus-tratos, confinamento. Empreende várias vezes a fuga e fracassa em seu intento. Enquanto isso sua família, sempre às voltas com imensas dificuldades financeiras, tenta reunir o dinheiro para resgatar os dois prisioneiros. No fim de muito tempo, quando a quantia chega a Argel, revela-se insuficiente para o resgate dos dois - e Miguel cede a vez a Rodrigo, quase perdendo a esperança de rever seu país natal.

Em 1577, mais uma tentativa de fuga, abortada devido a uma traição, faz com que Cervantes seja ameaçado de morte e conduzido perante o vice-rei de Argel, Hassan Paxá. Este, porém, reconhece seu heroísmo e seu valor - ou, segundo outros, é seduzido pelo seu encanto sexual - e em vez de mandar executá-lo compra-o para seu serviço. Em 1578, por ter feito um apelo ao governador espanhol de Orã, Cervantes é condenado a receber 2 mil açoites, mas a punição nunca é aplicada. Outras tentativas de fuga, até mesmo uma conspiração que engendrou para tentar obter uma fragata própria, são acobertadas pelo vice-rei amigo, o qual assegurava que "enquanto conservasse sob seu poder o espanhol aleijado nenhum perigo haveria para os seus cristãos prisioneiros, seus navios, ou sua cidade".

A situação só foi resolvida em maio de 1580, pela mediação de dois frades trinitários que lutaram para obter o dinheiro do seu resgate, justamente quando o mandato de Hassan Paxá chegava ao fim. Em setembro do mesmo ano, quando Cervantes devia segui-lo a Constantinopla na qualidade de escravo - já estava mesmo embarcado - foi-lhe concedida a liberdade. De volta à Espanha, viu frustrada sua aspiração ao posto de capitão ou até a um bom emprego público e voltou para o meio literário de Madri. Escreveu então muitas peças teatrais; ele próprio falava de "umas 20 ou 30", a maior parte encenadas, mas sem obter o sucesso esperado - o teatro era o gênero mais cotado e compensador da época, donde a grande inimizade que sempre demonstrou por Lope de Vega, o autor teatral de maior prestígio. Somente duas peças de Cervantes sobreviveram, El Trato de Argel e La Numancia, em um manuscrito descoberto em 1749.

Em 1584 Cervantes obteve licença para publicar uma novela pastoril, La Galatea, que não alcançou muito sucesso, apesar de ter sido sempre sua obra preferida - dizem que até mesmo nos seus últimos dias afirmava ter a intenção de criar uma segunda parte dela.

Nos 20 anos seguintes, muitas e disparatadas aventuras continuam a acontecer ao engenhoso Miguel de Cervantes, sempre às voltas com conflitos, públicos ou familiares. Seu casamento, em 1584, com uma jovem 18 anos mais moça, Catalina de Palacios Salazar y Vozmediano de Esquivias, se não lhe trouxe paz doméstica e felicidade, acrescentou um modesto dote ao seu escasso patrimônio. Mas a presença de Isabel, uma filha sua ilegítima, então com 2 anos, não constituiu elemento de melhora no relacionamento conjugal, apesar de a própria Catalina não ter filhos. Os períodos em que o casal vive junto são interrompidos por outros, longos, de separação. Nos anos vindouros, Isabel, que tinha a reputação pelo menos de "leviana" e partilhava com sua tia Andrea acusações de "receber como pagamento de noivados desfeitos somas em dinheiro e jóias", deu muita dor de cabeça ao pai, até chegarem a um rompimento definitivo.

Com a morte do pai do escritor, Rodrigo de Cervantes, em 1585, essa situação familiar se agrava, pois Cervantes é obrigado a sustentar as várias mulheres da família - que incluíam suas irmãs Andrea e Magdalena (parece que costuravam para damas da aristocracia), uma cunhada, e também a sobrinha Constanza, filha ilegítima de Andrea. Além de Isabel, é claro. E da própria esposa, Catalina, em suas instáveis temporadas de coabitação. Com tantas responsabilidades, ele teve de arranjar empregos subalternos que acabaram por colocá-lo em situação ainda pior - aceita o cargo de comissário de abastecimento da Invencível Armada reunida por Felipe II na foz do Tejo a fim de atacar a Inglaterra. Função antipática, pois muitas vezes tais comissários eram obrigados a empregar violência contra os camponeses, que se recusavam a entregar o fruto de suas colheitas. Segundo alguns de seus biógrafos, por duas vezes Cervantes, no exercício dessa função, requisitou víveres que pertenciam a eclesiásticos, o que lhe teria valido a excomunhão. Mais tarde foi acusado de vender trigo sem autorização e preso em Castro del Río. Em 1594 passou a coletor de impostos, mas meteu-se em outras complicações financeiras, o que lhe valeu duas temporadas de cárcere em Sevilha, uma em 1597, outra em 1602.

Em 1604, após cerca de 15 anos de vida errante, mudando constantemente de cidade, Cervantes estabelece-se em Valladolid, cidade para a qual se transferira a corte de Felipe III. Morando, com a família, em um verdadeiro "cortiço", situado em um bairro pobre e boêmio, o escritor ainda se veria metido em confusões. Um homem é ferido em um duelo, diante da sua casa. Cervantes e a família o socorrem e acolhem em sua casa, onde ele falece. Toda a família acaba na prisão, até que se esclareça o incidente. Dizem mesmo que o falecido teria tido "amores ilícitos" com Isabel. Antes de libertar o escritor, o juiz o humilha, fazendo severas exortações contra o comportamento de sua filha.

Cervantes somente teve alguma folga financeira e sossego nos últimos anos de sua vida. A publicação em 1605 da primeira parte do Quixote trouxe-lhe muita fama, mas quase nenhuma recompensa financeira. Em 1613 obteve um grande sucesso com o livro Novelas Ejemplares - que atingiu quatro edições em dez meses; uma obra que até hoje continua viva, sendo colocada por muitos críticos quase em pé de igualdade com o Quixote. Quando completou e publicou, em 1615, a segunda parte de sua obra maior, ao matar seu personagem Quixote certamente Cervantes começou a desistir, também ele, da grande luta que fora sua vida. Morreu em Valladolid, com todos os sacramentos da Igreja, em 22 de abril de 1616. Nos dias 19 e 20, em seu leito de morte, ainda encontraria forças para escrever a dedicatória e o prólogo de sua última obra, Los Trabajos de Persiles y Sigismunda - uma apologia da fé católica, publicada postumamente.

Primeiro romance moderno

Don Quixote é unanimemente reconhecido como "o primeiro romance moderno" da literatura mundial. É um divisor de águas, uma dessas obras que, quanto mais lidas, mais oferecem ao leitor, despertando-o para vários níveis de entendimento. Parodiando as novelas de cavalaria, principalmente a mais popular delas, Amadis de Gaula, Cervantes introduz na sua obra um elemento novo: o realismo. Enquanto a ação daquelas novelas decorria no plano de uma geografia imaginária, onde personagens semimágicos viviam aventuras impossíveis, vemos no Don Quixote retratada de maneira detalhista e colorida toda a Espanha de fins do século 16 - no ponto exato em que o autoritarismo e a limitação medieval defrontavam-se com a pujança do espírito renascentista, com seu anseio por novos mundos, nova ordem.

Segundo o crítico Brito Broca, em artigo escrito em 1952, entre as muitas lições que legou aos romancistas modernos, Cervantes fez ressaltar esta: "A fixação do universal, através do nacional, e, mais particularmente, do regional".

É a qualidade do "humano" que circula e palpita em sua obra, é a amplidão de suas referências cultas, a qualidade de seu pensamento, de sua visão de mundo, que a fazem transcender o desgaste do tempo. Lê-se o Quixote hoje como se fosse um tratado sobre nossos tempos - assim como as sucessivas gerações vêm fazendo. Cervantes conseguiu captar o eterno nos reflexos do visível e do temporal.

O escritor mexicano Carlos Fuentes, em seu ensaio Cervantes ou a Crítica da Leitura, diz: "Para mim, o mundo moderno começa quando dom Quixote de la Mancha, em 1605, deixa sua aldeia e parte para o mundo, e descobre que o mundo não é parecido com o mundo sobre o qual ele andara lendo". Mais adiante acrescenta: "Cervantes derrotou as epopéias de que se alimentara. (...) E ao fazê-lo, dissolveu a extrema normatividade do pensamento escolástico e sua leitura unívoca do mundo".

A gesta de cavalaria, da qual heróis como Amadis e Rolando emergem, era antes de mais nada a afirmação de um código único moral/religioso, em um mundo sem contradições e fissuras, governado por Deus - e pela Igreja Católica, com todo o poder de seu braço armado, a Santa Inquisição. Dom Quixote é um personagem que evolui desse mundo fechado, o mundo da fé, para o mundo aberto do pensamento, da crítica.

A idealização que faz da amada Dulcinéia del Toboso pode bem ser tomada como uma metáfora do autor para criticar, ao abrigo da Inquisição, o ato obrigatório de fé. Quando, por exemplo, dom Quixote pede aos mercadores que encontra na estrada que reconheçam a beleza de Dulcinéia sem tê-la jamais visto, explica: "O importante é que, sem tê-la visto, vós acrediteis, reconheçais e jureis esse fato".

Reconhecido por um grande número de críticos como "protótipo de todos os romances realistas", Don Quixote trata do que, segundo Harry Levin, seria a "técnica literária da desilusão sistemática". No romance moderno encontramos sempre, dominante, um sentido paródico que evidencia a influência cervantina. Por exemplo: em Madame Bovary, de Gustave Flaubert, transparece uma estrutura quixotesca, pois a jovem Emma - um "dom Quixote de saias" -, de imaginação romântica exaltada, viciada em novelas sentimentais e identificada com heroínas apaixonadas, não aceita sua vida medíocre em uma cidadezinha francesa, ligada a um marido insatisfatório. Como Quixote, Emma sai à cata de aventuras (amorosas) que somente a desiludem - o vivido não pode nunca se comparar ao sonhado, e assim termina em tragédia bem corriqueira e feminina a sua aventura.

Autores de todos os tempos confessaram a influência do Quixote - de Dostoievski, Coleridge, Turgueniev a Thomas Mann e William Faulkner, que dizia reler todos os anos, sistematicamente, a grande obra clássica. Vários críticos têm também apontado influências do Don Quixote na obra de Franz Kafka - nos romances desse escritor, principalmente em O Castelo, há sempre personagens que lutam, inutilmente, para alcançar um objetivo certo e inatingível, com a apresentação do conflito humano permanente entre utopia e realidade.

O teste do tempo

Através dos tempos, o conteúdo da obra de Cervantes vem sendo interpretado conforme as características próprias de cada época. Durante os séculos 17 e 18 ela foi lida em razão do seu grande poder de entretenimento, vista como obra cômica e de caráter popular. A partir do século 19, por influência principalmente do movimento romântico alemão, novas interpretações surgiram, enfatizando o idealismo do cavaleiro, contrastado com o espírito prático de Sancho Pança. Como diz a professora Maria Augusta Vieira em seu livro O Dito pelo Não Dito - Paradoxos de Dom Quixote, "Dom Quixote foi levado a sério: seus desacertos, em lugar de provocar o riso, passaram a ser entendidos em perspectiva simbólica, possibilitando uma interpretação trágica, capaz de sintetizar questões normalmente associadas à problemática do homem moderno".

Em conseqüência dessa nova visão, dom Quixote passou a ser reconhecido como um mito, que cada país adaptava a suas próprias necessidades ideológicas. Na Espanha, Miguel de Unamuno, um dos maiores estudiosos da obra de Cervantes, via no fidalgo da Mancha um verdadeiro salvador de sua pátria em crise. No Brasil, Olavo Bilac e San Tiago Dantas adotaram esse ponto de vista - Bilac, em 1912, pedia ao povo brasileiro que lutasse por uma pátria melhor, dando como exemplo o idealismo de dom Quixote; San Tiago Dantas, intelectual e político de visão ampla e nacionalista, em seu livro Dom Quixote - Um Apólogo da Alma Ocidental, de 1948, puxou esse idealismo para a época contemporânea.

Sérgio Molina, um dos tradutores do Quixote, analisa, em artigo publicado em "O Estado de S. Paulo" de 16 de janeiro de 2004, a "onda Quixote que tem crescido de alguns anos para cá", explicando: "Há no ar uma hipótese bastante óbvia: num momento de ‘rebaixamento do horizonte utópico’, em que a mercantilização - ou marketinguização - da vida vai atingindo todos os seus planos e todo um mundo de ideais é posto em ridículo, rir e se emocionar com um personagem, cujo pateticismo é tanto que se parece com o nosso, pode ser uma bênção". E o escritor Luiz Ruffato enfatiza o caráter "pós-moderno" do texto cervantino: "Nada mais ‘pós-moderno’ que a intertextualidade do Don Quixote; (...) que o tema da loucura como fuga à mediocridade da sociedade; (...) que o ‘distanciamento crítico’ que o narrador impõe ao leitor".

Don Quixote oferece a leitores de várias idades, tempos e latitudes todo o material de que se entretece o grande sonho da humanidade - o anseio pelo estabelecimento, ou pelo retorno, de "uma idade de ouro" de justiça, bem-estar e aprimoramento espiritual. Não é Quixote, o triste cavaleiro de lança em riste contra todos os patifes do mundo, que realiza esse sonho. Não o conseguiu o grande cavaleiro andante que foi Miguel de Cervantes, nem as gerações que se sucedem umas após as outras - com sua ilusão de mudar o mundo, e inevitável desilusão. Mas se as injustiças em que estão mergulhadas todas as sociedades humanas não podem ser abolidas de um só golpe e de vez, pequenas modificações ocorrem a cada minuto, em todo o globo, fazendo frutificar o sacrifício de milhões de quixotes anônimos, enquanto em toda parte artistas, cientistas, trabalhadores e empreendedores de todo tipo deixam a marca definida do seu heroísmo na tessitura do nosso esforço comum.

 

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