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Planejamento para o Brasil

Precisamos de projetos aureolares

AZIZ NACIB AB’SÁBER


Aziz Ab'Sáber / Foto: Nicola Labate

O professor Aziz Nacib Ab'Sáber, doutor em ciências pela Universidade de São Paulo (USP), esteve presente no dia 10 de novembro de 2005 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre planejamento.
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.

Vou começar com uma mensagem que dei aos alunos da Universidade Federal de São Carlos, com a qual provavelmente algumas pessoas não vão concordar. Disse a eles, no final de uma pequena palestra, que tinha confiança nos estudantes universitários e também nos jovens promotores do Brasil, porque precisamos dar uma volta por cima, redirecionando o país como um todo e não apenas suas regiões geoeconômicas mais importantes. Esse foi o alerta que dei a eles.

Um país com grande diversidade regional, com a rusticidade dos sertões nordestinos, que é o que mais conheço, e com a imensidade da Amazônia brasileira, não pode ser pensado apenas em projetos pontuais ou lineares, mas em projetos aureolares, que envolvam uma área inteira e não uma linha ao longo de um rio ou de uma estrada.

Quando se fala em planejamento, o primeiro conceito que nos vem à cabeça decorre de uma idéia intuitiva: vamos fazer a transposição de águas para além do Araripe, vamos abrir uma estrada para o Pacífico, etc. Até aí não há plano, é idéia intuitiva. Divulgada a idéia, surgem as expectativas de grupos muito diferentes - empreiteiras, proprietários de áreas rurais -, ante a possibilidade de obter vantagens. O planejamento começa a se embolar com as expectativas, e via de regra a da população mais carente é que ele resolva os problemas da pobreza. Fico indignado com esse modo de tratar o planejamento, sabendo que certos planos vão favorecer mais alguns membros da sociedade do que outros.

A partir da constatação de que os planos se iniciam por idéias intuitivas, vou dizer alguma coisa sobre planejamento. Ele pressupõe metodologia e uma ideologia do social, pois não é feito para grupos pequenos. Além disso, a metodologia é difícil de ser entendida, porque cada tipo de idéia intuitiva que se queira transformar em planejamento precisa ter um método diferenciado.

Quando eu era universitário, ouvia os engenheiros falar em viabilidade técnica e econômica. Isso me deixava bastante preocupado. Por um lado, basta ter boas escolas politécnicas e instituições de pesquisas para garantir uma tecnologia avançada, observando o que acontece no âmbito internacional. Mas a segunda parte, a econômica, é curiosa. Viabilidade econômica para grupos, para as elites, para o corpo social total? Essa não era a preocupação. Hoje a questão toda é muito diferente. Tenho de pensar na viabilidade técnica, científica e econômica em termos da economia total da população e na viabilidade social, ecológica e ambiental, sem o que o plano não vale nada. Então, quando um plano extravasa para o corpo social, ele é bom. Quando é dirigido apenas demagógica ou estrategicamente em termos políticos, ele é ruim.

Há alguns anos, esteve na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) um grande paisagista norte-americano, o maior talvez do século 20 nos Estados Unidos, Garrett Eckbo. Ele se especializou durante muitos anos em um grande escritório de arquitetura, e no fim da vida reduziu suas atividades formando um grupo de alta categoria e trabalhando com paisagismo ecológico em áreas metropolitanas. Ele tem um trabalho pouco conhecido que já procurei em várias bibliotecas, mas não encontrei. Chama-se Shelby Farms. Shelby Farms era uma penitenciária, que foi desativada nos anos 60, nos arredores de uma cidade de porte médio dos Estados Unidos. A cidade cresceu e então alguns cidadãos resolveram transformar o antigo espaço prisional em área de lazer e de cultura. Para isso, chamaram Garrett Eckbo. Ele aceitou a tarefa, dizendo: "Posso fazer o projeto, com algumas exigências. Primeiro, recursos financeiros. O pagamento do pessoal é um percentual pequeno do total. Para o restante precisamos de um fundo para que se comece a implantação um dia depois da aprovação do projeto". Considerei magnífica essa maneira pragmática de Garrett Eckbo. Ele exigiu também uma cartografia que possibilitasse aos trabalhadores, intelectuais e pesquisadores visualizar o conjunto da região, ou seja, a penitenciária e seu entorno em relação à cidade e ao campo. Caberia à comissão de cartografação fazer uma coleta das cartas convencionais criadas pelos órgãos públicos em diferentes épocas. Depois disso, cartas especiais temáticas. Uma sobre o relevo da região, outra sobre a fitogeografia, outra sobre assuntos hidrológicos e a presença de planícies, rios, riachos, mostrando como eles sulcavam as colinas e atingiam o eixo maior. E então uma planta especial da própria penitenciária, com todos os galpões e casas. O pessoal concordou.

No Brasil não se age assim. Não fizeram nenhum mapa geomorfológico do Ceará e do Rio Grande do Norte para conhecer os espaços que poderão ser irrigados. Começa por aí minha crítica ao projeto da transposição das águas do São Francisco. Mas quero lembrar que Garrett Eckbo pediu uma terceira comissão, e a mais importante: a de visualização. Pessoas sensíveis seriam enviadas para diferentes pontos de onde poderiam observar o conjunto do espaço ocupado pela penitenciária, cada qual com a missão de colocar num mapa o que viu.

Se eu quiser observar, por exemplo, o que acontece na região de Petrolina e Juazeiro, onde está a maior área de irrigação que conheço no país, tenho de saber por que foi escolhido aquele lugar. Lá algumas colinas derivam para o leito do São Francisco, outras um pouco menos. No local onde havia uma inclinação suave pôde-se fazer um projeto interessante: elevou-se a água até o alto da declividade e depois ela se esparramou em canais primários e secundários. Hoje Petrolina, em função da irrigação, é uma cidade magnífica. Mas sem esses mapas não dá para pensar em fazer irrigação.

Em seguida, vem uma etapa muito importante para nós, brasileiros, porque somos sensíveis a isso. É a da comissão de inspiração, formada por pessoas que tenham sensibilidade criativa. Incluindo todos os mapas e as observações da visualização, essa comissão voltaria para a região, estudaria esses mapas e criaria um cenário diferente do existente. O arquiteto, sem a parte artística, não pode bolar projetos nem sentir o que precisa ser feito.

De vez em quando encontro em São Paulo, em áreas de casario baixo, uns prédios grotescos que exploram o espaço até onde é possível, e fico imaginando quantos carros a mais cada andar daqueles vai trazer para o tráfego da cidade. Penso também na dolorosa situação da capital paulista, onde, para privilegiar as montadoras, que dão muito dinheiro para o governo, não se investiu no metrô. É um desastre, são duas linhas principais e um ramal, não há uma rede metroviária. Quem conhece Paris ou Londres sabe que ela possibilita a todas as classes sociais transitarem sem necessidade de carro. Temos de pensar um pouco mais no planejamento e tentar transformar as linhas de metrô de São Paulo em uma rede.

Voltando a Garrett Eckbo, ele fez uma reunião com aquelas comissões para estudar o cenário que se pretendia criar para a antiga penitenciária. Não adianta principiar um projeto pedindo dinheiro só para o início da obra. No caso do São Francisco, no Ministério da Integração Regional começaram a falar em integração de bacias. Transpor a água de um lado só para o outro não é integrar bacia nenhuma, isso é tirar a água. Um segundo problema que não foi examinado é a salinização dos açudes grandes, sobretudo do Ceará. É uma questão de falta de conhecimento. Não podemos aceitar mais as falsas idéias dos governantes. Lula disse um dia: "É preciso saber que a Amazônia não pode ser intocável". Resultado: ela passou a ser tocada por "n" tipos de empreendedores, sobretudo pelos fazendeiros da chamada Terra do Meio e pelos madeireiros, até pelos sojicultores. Lula foi muito amigo de Aziz Ab’Sáber, mas eu não respeito os amigos que erram. Errou, está sujeito a crítica.

A outra idéia levantada foi a revitalização do São Francisco. Existem três áreas iniciais na linha sul-norte até o cotovelo do rio, quando ele faz a curva em direção à região de sua barra, entre Alagoas e Sergipe.

São três regiões, no alto e médio vale. A úmida das cabeceiras, com pequenas cidades e muitas culturas, é brilhante em termos de uso do espaço agrícola. Depois há uma extensa região de cerrados. Quando digo cerrados, climaticamente estou falando em um Brasil tropical com duas estações, uma relativamente muito seca. Quem conhece Brasília sabe que no inverno a secura é tão grande que alguns pesquisadores chegaram a compará-la com a do sertão. Depois vem a caatinga, da fronteira do estado de Minas Gerais até a região de Sobradinho, já na Bahia, passando por Xique-Xique, onde o clima semi-árido é igual ao do sertão, só que o rio é superutilizado pela população.

Quando era estudante, eu não sabia que ia precisar desses conhecimentos. Alguém me dizia: a geografia humana dessa região está baseada no barranqueiro, próximo do rio, que, infelizmente, retira um pouco da vegetação beiradeira; nos boiadeiros à margem da região cultivável; nos remadores; nos barqueiros, e também na imensa pobreza. Em função desses conhecimentos, sei que as coisas que o ministro Ciro Gomes está dizendo não têm valor. Não vamos revitalizar o rio plantando árvores nas margens, na área dos barranqueiros, que é a mais utilizada. E como despoluir o rio? A esse respeito eles não têm idéia nenhuma. Dois mil quilômetros a serem despoluídos é algo quase impossível.

Temos em São Paulo o alto Tietê, com poucos quilômetros, mas dentro de uma cidade enorme, e não conseguimos fazer nada. Estamos construindo belíssimos beirais no canal do Tietê, o que não significa que o rio está despoluído.

Agora vamos falar sobre a adequação das palavras de Garrett Eckbo a respeito de Shelby Farms. O problema de um projeto de adaptação de uma penitenciária que vai se transformar num parque periférico metropolitano é muito sério. O que fazer com os galpões das prisões, com as casas? Como abrir o parque para que as pessoas tenham acesso a ele por vários quadrantes? Como controlá-lo e gerenciá-lo? Enfrentamos esse problema no Parque do Ibirapuera de um modo agigantado, porque de vez em quando alguém quer instalar algo em cima de um projeto histórico antigo.

A maior dificuldade é quando o planejador usa um método geral e uma metodologia particular para cada tipo de projeto. Se Lula diz: "Vamos fazer uma estrada para o Pacífico", qualquer pessoa sabe que no projeto de integração da América do Sul seria necessário ter estradas para o oeste na direção daquele oceano. Mas isso é uma idéia. E na hora de fazer o projeto? É preciso entender a compartimentação, como é o piemonte dos Andes, a parte cisandina, aquele contorno da cordilheira na região amazônica.

Começamos a dizer isso para os alunos e precisamos explicar aquela enorme área da Amazônia ocidental praticamente encostada nos sopés dos Andes peruanos, venezuelanos e bolivianos. Aquilo tem uma representação científica fantástica, e só um cientista pode transmitir interdisciplinarmente isso para os estudantes. Quando não existiam os Andes, a área onde está a Amazônia ocidental era um curso de diferentes procedências, do norte e do sul na direção do Pacífico, a chamada Pangéia. Durante muito tempo, aquela depressão enorme, aquele paleogolfão tinha sido uma paleobacia que foi afundando-se com a subsidência de depósitos antigos de dois, três milhares de metros. Esses depósitos mais antigos apresentaram falhas em profundidade durante o rebaixamento dos setores do paleogolfão, onde se formaram bolos biogênicos em mares rasos, de animais e de algas; hoje temos petróleo lá. E quando se pensa na Amazônia também se pensa no petróleo brasileiro.

Há 220 milhões de anos, o setor leste da Amazônia estava unido à África. E as drenagens que iam para oeste eram anteriores ao levantamento dos Andes. Mas quando a África se separou do Brasil criaram-se depressões na zona costeira, as que têm petróleo do período cretáceo. Em função da deposição em mares rasos nas bacias costeiras, ganhamos uma área com petróleo em Campos, bacia de Santos, etc. Pois bem, aí sobem os Andes e começa uma sedimentação lagunar e fluvial enorme.

Com isso a declividade passa a ser para leste, acontecem falhas dentro de Marajó e os rios chegam até suas proximidades. No local onde estão o terreno mais alto e o mais baixo, um braço vai pelo norte, em frente a Macapá, o outro pelo estreito de Breves, saindo pelo rio Pará.

O problema do conhecimento é a interdisciplinaridade. Sempre que os cientistas e pesquisadores das universidades brasileiras se fixarem apenas na sua especialidade e não pensarem no Brasil, estarão sendo criminosos.

A interdisciplinaridade exige para cada projeto pessoas competentes. É preciso ter um geógrafo com conhecimento sobre o mundo físico, ecológico e dos ecossistemas; bons agrônomos, e não aqueles colocados ao acaso no Ministério do Meio Ambiente de Marina Silva; economistas e sociólogos. Quem não entende de culturas populares e subculturas brasileiras não pode saber como um projeto vai ser recebido. Há a cultura nordestina, que é a mais forte e popular do mundo. Há a gaúcha, extraordinária, a pantaneira, a dos amazônidas.

Qualquer projeto para esses lugares não precisa de uma pessoa autoritária como algumas que trabalham na transposição do São Francisco. Ciro Gomes foi delicado comigo, não estou falando em termos pessoais, mas de sua posição como ministro. Ele disse o seguinte: "A transposição não pode ser discutida, é um projeto político do presidente".

Não existe projeto político do presidente; ele tem de ser da nação. Agora, se o presidente o impuser, será problema dele e ficará em sua biografia o autoritarismo pós-ditadura.

Essa é a base principal do que planejei dizer aqui, mas quanto àquela questão da cartografação precisamos de mais coisas. Os projetos relacionados com o nordeste são os que mais me interessam. Penso o nordeste como um todo e tive a felicidade de encontrar o Atlas do Império do Brasil, de 1868, quando o estado de São Paulo se desenvolvia extraordinariamente com o café, mas ainda não havia atingido o rio Paraná. O Ceará já era conhecido, e suas comarcas seguiram o nome de cada localidade. Ali estava o caminho para o planejamento, permitindo pensar em todos os sertões e não numa linha, apenas, como na transposição das águas.

Quanto à Amazônia, escrevi um trabalho sobre o zoneamento ecológico-econômico da região, que é mais ecológico do que econômico. Fiz uma apreciação dos quadrantes que receberiam planejamento e deveriam ser detalhados. Encontrei 23 áreas diferentes, esquecendo o estado, outro problema que conflita com uma divisão de pura pesquisa. Para isso, tive de reexaminar toda a Amazônia conhecida e partes dela que eu desconhecia, por meio de imagens de satélite. Então eu a dividi em 22 ou 23 células espaciais, levando em conta áreas como a do estado de São Paulo, que tem um quarto de milhão de quilômetros quadrados - e não conheço nem 5% desse conjunto. Essas células espaciais - não as chamei de regiões porque não havia delimitações naturais - têm seus cursos de água, seu relevo, seu ecossistema, com as transições de sistema florestal para outros tipos, como em Roraima.

Costumava dizer aos meus alunos: "Quando Lula assumir, vocês têm de fazer um trabalho de pesquisa em livros, revistas, descobrir fatos e dizer a ele quando estiver fazendo a barba ou churrasco". Mas é utopia pensar em certas coisas. Porém eu não desisto, não vou desistir nunca. Acho que qualquer pessoa que esteja no topo da sociedade ou da política deveria pensar no nacional, no regional e no setorial. Foi o que disse ao presidente. Ele respondeu: "Escreva isso". E ficou por isso mesmo.

Em uma classificação geoeconômica do Brasil, feita por um geógrafo de Toulouse, constava que no Brasil havia regiões em processo de desenvolvimento, baseadas num tipo de agricultura preferencial: no passado foi o café em São Paulo, o cacau no sul da Bahia e agora a soja. Existiriam regiões que ele chamou de bacias urbanas, pequenas áreas onde o controle é feito numa área só, como Fortaleza e Recife. Essas regiões de bacias urbanas pobres devem ser bem conhecidas pelos técnicos que estão lá.

Em 1956, chegaram geógrafos do mundo todo ao Rio de Janeiro, e tive de fazer três excursões com eles. Uma delas para um congresso em Itatiaia, com o pessoal da geomorfologia. Outra pela Mantiqueira, vale do Paraíba e arredores de São Paulo até Campinas. E a terceira pelo sertão do nordeste, com o professor Mário Lacerda de Melo. Essa memória me traz um problema sério, que é o final da crítica de projetos.

No Ceará, a distribuição da população é bem diferente da do vale do São Francisco. No vale as pessoas estão amarradas à beira do rio e usam pouco sua água, a não ser a das vazantes dos afluentes que perdem a correnteza no inverno, os vazanteiros. No Ceará, como no sertão da Paraíba, depois do planalto da Borborema, é outra coisa, e eles não entendem da compartimentação topográfica do nordeste. A chapada da Borborema é uma espécie de maciço antigo, com águas que vão para o Rio Grande do Norte, para o interior, águas que vêm para o São Francisco no Moxotó, Pajeú, etc. É um château d’eau. Para fazer qualquer intervenção nessa área, é preciso conhecer o château d’eau da Borborema. A zona úmida do sul e sudeste, com ventos úmidos. Na região de Campina Grande e Soledade começa o sertão e no alto vale do rio Paraíba do Norte há uma cidadezinha chamada Cabaceiras, onde chove só 286 mm por ano. Os livros didáticos dizem que os desertos recebem por ano até 100 mm de chuva, e o nordeste seco vai de 300 a 700 mm. Queria conhecer a cidade que recebe menos precipitações do que o conjunto e fui até lá. O rio estava seco, entrei pelas ruas de Cabaceiras e encontrei algumas pessoas aproveitando a tarde sentadas em cadeiras na frente das casas. Cheguei e disse: "Aqui é o lugar onde chove menos no nordeste e eu queria saber quais os problemas que vocês enfrentam em função disso". O promotor, ao lado do delegado, afirmou: "Este é o melhor clima do nordeste". E respondi: "Se não viesse aqui, não ia saber o que as pessoas pensam". Ele prosseguiu: "Aqui chove todos os meses. Quando cessam as chuvas do oeste e do norte, vêm as do leste. Temos água o ano todo, embora o rio seque por seis meses porque na cabeceira é muito seco, apesar de chover 600 mm por lá". Sem conhecer o mundo real estamos fadados a dizer bobagens. Esse é o maior problema da minha vida; um geógrafo que perde os olhos não vale mais nada. Pode conversar, talvez, como sociólogo.

Voltando à excursão para o nordeste de que participei com geógrafos franceses, belgas, alemães, um norte-americano, o mais famoso do grupo era Jean Dresch.

Após três dias de andança, ele disse: "Estou percorrendo isto que vocês chamam de sertão e vejo gente em toda parte, à beira dos rios, nos cruzamentos das estradas, nas ilhazinhas. Aqui não há nada de deserto. É uma região semi-árida com clima muito quente e que tem seis meses secos e seis meses com chuva de volume total pequeno". Realmente, esse volume equivale a um terço do que ocorre no Brasil central. O ritmo é o mesmo, inverno seco, verão chuvoso, só que é permanente, e o calor é tão grande que o nordestino chama de verão o que é o inverno astronômico geral. Isso também ocorre no norte da África, área muito quente e seca no inverno. Com toda a razão o povo identifica esse tempo com o verão e as chuvas com o inverno, quando o ar fica mais fresquinho. Dresch disse: "Pelo que vejo esta é a região semi-árida mais povoada do mundo, e por isso vai apresentar os maiores problemas para as autoridades da Zona da Mata e do restante do Brasil. Há gente demais para condições espaciais de vida agrícola e de produção de alimentos".

Penso muito naqueles que compram terras no período da seca. Um geógrafo francês e um brasileiro, em Sergipe, foram aos cartórios numa época de grande secura. Os chamados repiquetes de seca, de 1879 a 1882, resultaram numa migração fantástica, que o governo orientou para a Amazônia. A vinda de nordestinos para São Paulo só foi feita depois de 1932. Eu era mocinho em Caçapava e de repente chegaram os invasores do governo federal de Getúlio Vargas, em cima de vagões de carga; eles estavam interessados em conhecer as cidades paulistas e foram seduzidos por São Paulo, dando início a uma migração de nordestinos para o sul, ao contrário do passado em direção à Amazônia.

O conhecimento de história é fundamental na hora do planejamento, pois o homem é o único ser vivo da face da Terra capaz de recuperar a trajetória da espécie. Isso foi dito a mim pelo professor Roger Bastide.

Enfim, todos esses estudos foram feitos com muita simplicidade e sofrimento. Aprendi uma coisa: nós, de todas as classes sociais, temos de voltar a atenção para aqueles que não tiveram condição de ascender nas classes mais pobres. O meu lema, a minha ideologia é a seguinte: ninguém escolhe o tempo, o lugar geográfico, a classe socioeconômica e sociocultural para nascer; nasce onde o acaso favorecer. Portanto, na rusticidade dos sertões, à beira dos igarapés ou numa favela de São Paulo.

 

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