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Destroços urbanos

Falta de preservação ameaça história da indústria brasileira

ALBERTO MAWAKDIYE


Antiga hidrelétrica em Salesópolis (SP)
Foto: Salomon Cytrynowicz/Fundação Energia e Saneamento

A crônica indiferença brasileira para com seu passado - que permitiu no transcorrer do século 20 a derrubada de incontáveis casarões, fortes, igrejas e outros edifícios de valor histórico - pode estar sendo responsável por mais uma perda. O Brasil não está preservando como deveria antigas instalações fabris que poderiam resgatar, como autênticos museus vivos, a história de sua industrialização, algo muito comum na Europa, nos Estados Unidos e mesmo em alguns países latino-americanos, como o México, onde, de algum tempo para cá, vem se desenvolvendo de maneira promissora a chamada "arqueologia industrial", como é conhecida a disciplina que cuida da recuperação e preservação de antigas fábricas e dos seus modos de produção.

O atraso do Brasil nessa área pode ser constatado pela quantidade quase insignificante de antigos estabelecimentos fabris protegidos pelos órgãos de preservação ou mesmo pela iniciativa privada. A quantidade de fábricas ou construções similares tombadas pelos órgãos oficiais de patrimônio histórico, nas esferas federal, estadual e municipal, mal ultrapassa a casa dos 30, e isso em todo o território nacional. Também são poucas as indústrias possuidoras de instalações de valor histórico que se preocupam em mantê-las de pé - como fez a metalúrgica Eberle, uma tradicional fábrica de Caxias do Sul (RS). A prática entre os industriais sempre foi a de, simplesmente, derrubar ou reformar as edificações antigas e vender o maquinário original como sucata.

"A verdade é que o Brasil não desenvolveu uma cultura de preservação industrial", analisa o arqueólogo José Luiz de Morais, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP). "Para a maioria da população, construção de valor histórico ainda é aquela de estilo arquitetônico antigo ou que teve algum dia um uso cultural ou social relevante. Como as fábricas e o mundo do trabalho jamais desfrutaram aqui dessa aura de nobreza, a preservação dos espaços fabris sempre foi vista como algo secundário, mesmo supérfluo."

A ironia é que o Brasil teria muito a fazer nessa área. Embora tenha começado a se industrializar, de fato, depois da 2ª Guerra Mundial (1939-45), o país conta com fábricas de alguma expressão desde o último quarto do século 19, principalmente nos setores têxtil, alimentício, metalúrgico e naval. Se no rol das atividades for colocada a produção de açúcar, a antiguidade da indústria nacional recua até o distante século 16 - os primeiros engenhos foram erguidos naquela época nos estados de Pernambuco e São Paulo. Poucas dessas velhas fábricas chegaram ao século 21. E, dentre as que sobreviveram, contam-se nos dedos as que passaram pelas mãos de especialistas em restauração e preservação, ou estão hoje sob seus cuidados.

Setores industriais inteiros desapareceram do mapa. Hoje, quase nenhum brasileiro sabe que o país já foi um grande produtor de peças de porcelana e faiança decoradas, um segmento que conheceu o apogeu entre 1910 e 1940 em São Paulo. Não sobrou um único estabelecimento fabril para contar a história - restaram, para o domínio público, apenas algumas peças, exibidas nas vitrines do paulistano Museu do Ipiranga. As várias fábricas de máquinas de escrever que existiam no Brasil também sumiram da paisagem industrial, depois que o computador tornou esses equipamentos obsoletos. Não houve preocupação de preservar nenhuma delas.

E a sangria não pára. Cada vez mais indústrias reconhecidamente valiosas do ponto de vista histórico, mas hoje desativadas ou abandonadas, estão a caminho da ruína e de se juntar àquelas que desapareceram sem deixar vestígios, a não ser em documentações e eventuais trabalhos acadêmicos. Calcula-se que mais de uma centena delas - algumas, principalmente do setor têxtil, construídas no mais rigoroso estilo britânico, com tijolos aparentes, telhados de duas águas e esquadrias de ferro fundido - estejam nessa situação. Boa parte já teve o maquinário vendido para reciclagem ou mesmo depredado.

"Caso algo não seja feito, mais indústrias irão desaparecer e mais inacessível ficará o passado da tecnologia brasileira", adverte a arquiteta Gabriela Campagnol, diretora de assuntos institucionais da seção brasileira do Comitê Internacional para a Preservação do Patrimônio Industrial (TICCIH), entidade fundada na Europa em 1978 e presente no Brasil desde 2004. "Trata-se de um pedaço importantíssimo da nossa memória, que estamos deixando esfarelar-se devido ao abandono e à falta de políticas públicas de preservação."

Pioneirismo

Uma parte significativa das fábricas de valor histórico que foram abandonadas à própria sorte está no estado de São Paulo, que foi um dos pioneiros na implantação de indústrias no país e onde uma razoável quantidade de instalações do final do século 19 e início do 20 conseguiu sobreviver. Embora na Grande São Paulo quase tudo de valor histórico no segmento industrial tenha sido tragado pela voracidade da especulação imobiliária ou mesmo pela insensibilidade do setor - uma fábrica da Duchen, projetada por Oscar Niemeyer em 1949, foi, por exemplo, derrubada às vésperas do tombamento (com a autorização do próprio arquiteto, que considerava a obra "menor") -, várias edificações históricas ainda permanecem de pé pelo interior afora, na maior parte em condições precárias.

Em Sorocaba, por exemplo, resistem ainda, mesmo que fechadas e bastante deterioradas, as tecelagens históricas Santo Antônio e São Paulo, a cervejaria artesanal Schmming, que cerrou as portas depois de longa agonia, e a fábrica de arreios Ferreira & Cia., hoje igualmente desativada. É uma sorte melhor, porém, do que a das indústrias têxteis Votorantim e Santa Maria, que foram demolidas, e de algumas antigas fábricas de facas, de cuja atividade quase nada restou na cidade, que já foi conhecida como a "Manchester Paulista".

O cenário se repete em outras regiões do estado que tiveram indústrias de alguma importância, como as de Campinas e do vale do Paraíba. Diversas cidades pertencentes ao cinturão da cana-de-açúcar, como Piracicaba, também possuem velhos engenhos, embora a maior parte tenha desaparecido. Mas há indústrias de valor histórico (igualmente em péssimo estado de conservação, de maneira geral) também no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, nos estados do sul e mesmo no tido como historicamente desindustrializado nordeste.

Em Pernambuco, por exemplo, a Fábrica da Macaxeira, célebre indústria têxtil fundada no final do século 19, apesar de estar completamente abandonada, ainda consegue expressar o esplendor que esse segmento desfrutou na região naquele período, assim como a tecelagem do Grupo Lundgren, localizada em Paulista, no Grande Recife. Já a usina de açúcar Beltrão, mais tarde convertida na tecelagem Tacaruna, entre Recife e Olinda, construída na década de 1890 e que estava quase para ruir, está sendo restaurada pelo governo pernambucano.

O descaso brasileiro para com as suas velhas fábricas vai tão longe que ameaça até mesmo um ícone da industrialização do país, que foram as extintas Indústrias Matarazzo, pertencentes ao maior e mais importante grupo empresarial do Brasil durante boa parte do século passado. Daquelas instalações, nada permanece de pé na cidade de São Paulo, depois da demolição, por exemplo, da fábrica de alimentos Petybon, no bairro da Lapa.

No interior do estado, onde a dinastia do imigrante italiano e depois conde Francesco Matarazzo implantou, a partir do município de Sorocaba, mais de 40 empreendimentos em três dezenas de cidades, a situação das fábricas do grupo é significativamente melhor - o que não quer dizer que seja confortável. A maioria das instalações, pertencentes ao setor alimentício e têxtil, está ainda de pé, e uma ou outra até mesmo continua a funcionar sob a direção de novos proprietários. Mas quase todas estão também abandonadas, e muitas delas foram completamente desprovidas do maquinário que continham. Alguns prédios foram ocupados por atividades que nada têm a ver com a função fabril original e estão totalmente descaracterizados, e vários foram demolidos.

"O problema é que manter uma fábrica desativada é caríssimo, esteja ela sob o controle de um órgão de preservação ou de um particular", explica Paulo Martins Souto Maior, diretor de preservação cultural da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe). "Na Europa, as fábricas de valor histórico são transformadas em pequenos museus de tecnologia ou centros culturais nos quais os processos produtivos antes lá desenvolvidos têm lugar de destaque. Por falta de recursos, o Brasil não consegue investir como deveria em nenhuma dessas vertentes, e muita coisa acaba se perdendo."

Cultura

De qualquer forma, as poucas fábricas historicamente valiosas que estão preservadas em boas condições no Brasil também foram absorvidas para finalidades culturais, do mesmo modo que nos países desenvolvidos. Há alguns casos - raríssimos - de estabelecimentos fabris que passaram a funcionar como museu tecnológico, a exemplo da Estação Ciência, no bairro paulistano da Lapa, instalada nos galpões de uma antiga tecelagem. Existem ainda vários centros culturais e comunitários espalhados pelo Brasil que foram implantados em fábricas de inegável valor histórico.

São relativamente numerosas, também, as antigas indústrias que foram transformadas em shopping centers ou empreendimentos similares, ou que passaram a abrigar estabelecimentos de saúde ou de educação, com a relativa manutenção da arquitetura fabril original - que, diga-se de passagem, jamais é estilisticamente tão "pura" como a das edificações residenciais ou religiosas, o que torna bastante delicado o trabalho de conversão. De fato, toda fábrica começa a ser alterada, por dentro e por fora, praticamente no dia seguinte ao de sua inauguração, quase sempre por necessidades produtivas. A restauração arquitetônica de uma instalação fabril é, por isso, sempre aproximativa e visa antes a "síntese" das várias fases pelas quais a fábrica passou do que a eventual fidelidade a um determinado período. É mais arqueologia do que arquitetura.

Talvez os exemplos de projetos mais bem-sucedidos de reaproveitamento - inclusive arquitetônico - de antigas indústrias sejam os dois centros culturais mantidos pelo Serviço Social do Comércio (Sesc) de São Paulo em antigas fábricas dos bairros do Belenzinho e da Pompéia - este último, um projeto da festejada arquiteta Lina Bo Bardi sobre uma edificação que funcionou nos anos 1930 como uma indústria de tambores e depois de geladeiras - e o espaço de eventos implantado no desativado Moinho Santo Antonio, no antigo bairro operário da Mooca. Todos esses projetos são reconhecidos internacionalmente como bons exemplos de como converter velhas construções industriais em objetos de interesse para a comunidade.

Em Belo Horizonte, a antiga Serraria Souza Pinto foi igualmente reciclada para atividades culturais sem perdas significativas de características arquitetônicas. Até algumas cidades pequenas têm centros culturais bem adaptados dentro de velhas fábricas. Uma das principais referências do centro histórico de Itu (SP) é o Espaço Fábrica São Luiz, implantado nas instalações daquela que foi a primeira indústria de panos de algodão do estado de São Paulo (1869). Já na vizinha Salto, um belíssimo conjunto de produção têxtil, erguido entre 1870 e 1920, foi transformado em pólo educacional.

O Sesc também implantou um espaço cultural em uma fábrica desativada da cidade fluminense de Nova Friburgo, e Pesqueira (PE), que já foi um importante pólo de tecelagem, possui hoje um dos mais animados centros culturais do agreste nordestino. Na área de shopping centers, um dos melhores exemplos de projetos de conversão bem desenvolvidos é o da antiga fábrica Nova América, de tecidos, localizada no subúrbio de Del Castilho, no Rio de Janeiro, e que é hoje o Shopping Nova América.

Mas, em praticamente todos esses projetos, não houve condições - fosse por falta de acordo com os proprietários, fosse por simples escassez de recursos - de preservar dentro dos estabelecimentos pelo menos uma parte do maquinário, de modo a ilustrar os modos de produção das fábricas. Pouco antes de ser transformada em centro cultural, uma década atrás, a Fábrica São Luiz, de Itu, por exemplo, ainda conservava todos os seus teares. Mas, como não conseguiram fechar um acordo financeiro com o poder público, os antigos proprietários acabaram por vender todo o maquinário - datado do começo do século 20 e de origem européia e norte-americana - como sucata.

Algo semelhante ocorreu com a Fábrica Tito Silva, uma produtora de vinho de caju de João Pessoa que foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1984. Como as instalações ficaram abandonadas, o maquinário foi saqueado antes que o local pudesse ser convertido em centro profissionalizante para menores carentes.

Erros

Diga-se que muitas vezes o reaproveitamento cultural ou comercial de velhas instalações fabris resulta em autênticos desastres, seja do ponto de vista conceitual, seja do da engenharia. A extinta fábrica da Olivetti, de máquinas de escrever, às margens da Via Dutra, em Guarulhos, na Grande São Paulo, foi transformada, por exemplo, em um grande shopping center convencional. Do edifício original só se aproveitaram algumas abóbadas e colunas, e detectar sinais da antiga edificação - cujo desenho externo tentava imitar o de uma máquina de escrever - é praticamente impossível, em todo o empreendimento.

Já o centro cultural implantado na fábrica de tapetes Santa Helena, em Jacareí (SP) - que durante anos teve o maior vão livre da arquitetura paulista -, acabou por ter a estrutura comprometida e desabou parcialmente, deixando mortos e feridos. O projeto de restauração do prédio, hoje quase em ruínas, ainda não saiu do papel.

"O problema é que não é possível transformar qualquer fábrica em centro cultural ou shopping center", diz José Roberto Melhem, presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), que cita, entre as poucas instalações fabris protegidas, as ruínas do Engenho dos Erasmos (ver texto abaixo) e a Usina Tamoio, em Araraquara. "Além dos obstáculos técnicos e arquitetônicos, é preciso ainda verificar se haverá demanda para sustentar essas atividades. O ideal seria que todas as instalações fabris historicamente valiosas fossem reintegradas a suas comunidades, mas encontrar uma forma de inserção para cada uma delas é mais difícil do que parece."

Uma opção que começa a surgir no Brasil é o aproveitamento de velhas indústrias como atração turística, algo também bastante comum na Europa. Diversas antigas usinas de açúcar de Pernambuco, por exemplo, compõem o roteiro turístico oficial do estado. A cidade de Joinville, em Santa Catarina, foi ainda mais longe. Desde 2001, a prefeitura do município vem desenvolvendo o Projeto Turismo Industrial, que prevê a visitação de uma dezena de fábricas em atividade na região - algumas delas já com lugar garantido na história da industrialização brasileira, como a de tubos e conexões Tigre.

"A idéia é fazer com que empresas e turistas passem a valorizar o patrimônio industrial brasileiro, preocupando-se com a sua preservação", explica Yoná da Silva Dalonso, coordenadora do projeto. "Apresentamos para o visitante não só o patrimônio edificado da fábrica, mas também o processo produtivo e a própria história da companhia, que geralmente é cheia de episódios saborosos." Algumas cidades industriais gaúchas, como Bento Gonçalves - com suas velhas e tradicionais vinícolas -, desenvolvem há bastante tempo programas semelhantes.

Já no estado de São Paulo, a Real Fábrica de Ferro de Ipanema, implantada em 1810 pelo rei dom João VI na zona rural de Iperó, região de Sorocaba, e tida como a primeira siderúrgica brasileira, será voltada tanto para o turismo industrial como para o ecológico, quando o trabalho de restauração, iniciado no ano passado, estiver concluído, em 2010. A primeira parte das obras - cujo objetivo é tirar a usina do estado de ruína em que se encontra hoje - está sendo financiada pelas siderúrgicas Cosipa e Usiminas, que despenderão no trabalho R$ 1,1 milhão, e coordenada pelo Iphan.

Construída em estilo norte-europeu e contando ainda com valiosos equipamentos siderúrgicos da época, além de vários tornos para a fabricação de armamentos, a indústria - que ocupa uma área significativa dentro da Floresta Nacional de Ipanema, de onde os escravos extraíam o carvão siderúrgico - terá todas as suas instalações recuperadas (incluindo edificações remanescentes e vestígios de canais). Trilhas serão abertas para a mata circundante e, dentro das construções, será implantado um centro cultural, aproveitando equipamentos ainda existentes para ilustrar a produção siderúrgica da época. "O trabalho que estamos fazendo é de arqueologia industrial na acepção precisa do termo", diz o arquiteto José Saia, do Iphan, responsável técnico pelo projeto. 


Movimento combate demolição de fábricas 

Os tradicionais movimentos urbanos contra a verticalização desenfreada das metrópoles começam a se voltar também contra a dilapidação do patrimônio fabril, tido cada vez mais como parte da memória das cidades, principalmente dos seus estratos operários.

Em São Paulo - talvez a cidade brasileira que mais perdeu velhas indústrias para a especulação imobiliária -, uma iniciativa surgida na região da Lapa, o Movimento contra a Verticalização (Mover), está tentando impedir que fábricas e galpões remanescentes dos primeiros bairros operários da cidade, como Mooca, Brás, Ipiranga e a própria Lapa, sejam derrubados e substituídos por torres de escritórios ou apartamentos.

"Buscamos impedir que essas fábricas tenham o mesmo destino das indústrias do grupo Matarazzo que foram demolidas, apesar dos protestos da população", diz Leonardo Mello e Silva, um dos coordenadores do movimento. "Não queremos que elas sejam desapropriadas ou algo assim, mas apenas que tenham algum tipo de destinação, seja como repartição pública, museu, galeria ou mesmo moradia."

O Mover já ajudou os moradores da Mooca a forçar os Supermercados Pão de Açúcar a "anexar" boa parte das instalações do antigo Cotonifício Crespi ao novo empreendimento que implantou na região. Pretende agora impedir a demolição das instalações da indústria Nitroquímica, em São Miguel Paulista, no extremo leste da cidade, que empregou milhares de moradores do lugar ao longo do século 20 e funciona hoje com apenas um décimo de sua capacidade produtiva.

Os dirigentes do movimento não sabem dizer com precisão quais seriam as outras fábricas e instalações do gênero que deveriam ser preservadas em São Paulo - a lista que possuem hoje é empírica, pois se baseia principalmente na memória afetiva dos moradores -, mas em breve poderão trabalhar segundo critérios mais objetivos.

A Fundação Escola de Sociologia e Política (Fesp) de São Paulo começou no ano passado a realizar um amplo mapeamento do patrimônio industrial da cidade, com o objetivo de tentar determinar o que é, de fato, historicamente valioso dentro desse segmento e mereceria ser preservado. O levantamento teve início pela Mooca e pela Lapa, mas será estendido a todos os bairros industriais de São Paulo.

"O critério que estamos usando não é apenas arquitetônico", explica o historiador Paulo Fontes, coordenador do projeto. "Para nós o mais importante é levantar a importância referencial da edificação, o papel que ela desempenhou na industrialização da cidade e a sua possível capacidade de geração de renda enquanto patrimônio industrial."


Estações, usinas, pontes...

O patrimônio industrial não envolve apenas fábricas. Ele inclui também estações ferroviárias, usinas hidrelétricas, caixas-d’água, pontes e vilas operárias, entre outros equipamentos ligados à produção. Esse acervo encontra-se, comparativamente, em situação melhor no Brasil do que as indústrias, por envolver menor número de bens e ser mantido, quase sempre, sob o controle de poucas companhias e que estão continuamente expostas à opinião pública - o que exige um mínimo de investimento em marketing institucional.

O Condephaat, órgão de preservação do governo paulista, está, por exemplo, desenvolvendo, com o apoio das empresas públicas e privadas do setor, um amplo programa de levantamento do patrimônio constituído pelas centenas de estações ferroviárias do estado de São Paulo, muitas das quais erguidas entre o final do século 19 e o começo do século 20 no melhor estilo britânico ou art nouveau. Muitas dessas estações estão em péssimo estado de conservação e precisam ser restauradas.

Começa-se a fazer algo também na área de usinas hidrelétricas, cuja história no Brasil se inicia de maneira efetiva no final do século 19. A Fundação Energia e Saneamento, que cuida do patrimônio histórico do setor no estado de São Paulo, já conseguiu o tombamento de quatro pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) de comprovado valor localizadas no interior do estado, das quais três foram construídas entre 1895 e 1913 (nas cidades de Rio Claro, Santa Rita do Passa Quatro e Salesópolis) e uma em 1940 (Brotas).

Essas PCHs estavam desativadas e, dado seu surpreendente bom estado, estão voltando a operar com algumas simples adaptações - o que estaria fora de cogitação antes da crise de racionamento da virada do ano 2000. "Há dezenas de pequenas usinas de valor histórico no estado de São Paulo na mesma situação, e mais de uma centena espalhada pelo Brasil", diz a historiadora Claudinéli Moreira Ramos, diretora técnica da entidade. "Além de constituir um retrato vivo do patrimônio energético da época heróica da industrialização, elas ainda podem prestar bons serviços à sociedade brasileira. Basta apenas tirá-las do limbo."

Os sistemas públicos de água e esgoto também fazem parte do patrimônio industrial e começam igualmente a ser objeto de pesquisa por parte dos técnicos envolvidos com preservação. Os pesquisadores Dalmo Dippold Villar e Filomena Pugliesi Fonseca estão atualmente em Portugal desenvolvendo uma tese de mestrado sobre a história dos reservatórios do Sistema Cantareira, um dos mais importantes da Grande São Paulo, da perspectiva da arqueologia industrial. "Estamos tentando comparar esse sistema com o de Lisboa, e entender a polêmica que se criou na cidade na virada do século 19 para o 20 sobre a necessidade de represar as águas e tratá-las para evitar doenças como tifo e cólera", explica Filomena.


A fábrica mais antiga do país

Fica no litoral de São Paulo a edificação industrial considerada a mais antiga do Brasil. O Engenho dos Erasmos, erguido em 1534 por Martim Afonso de Sousa na divisa entre Santos e São Vicente, na Baixada Santista, é o único que restou dos primeiros construídos naquele período por ordem da Coroa portuguesa. Feito com pedra granítica no modelo industrial açoriano, movido a água, o engenho comportava ainda unidades administrativas e residenciais.

Administrado desde 1958 pela Universidade de São Paulo (USP) - à qual o terreno, juntamente com as ruínas, foram cedidos por um particular no início dos anos 1940 -, o Engenho dos Erasmos começou a ser restaurado em 1996 e está hoje aberto à visitação pública, constituindo-se num bem-sucedido exemplo de turismo industrial no Brasil. Foram mais de 3,2 mil visitantes em 2005 - principalmente estudantes da rede pública de ensino -, segundo o professor Rodrigo Christofoletti, um dos monitores do engenho.

Antes da ida desses grupos de alunos, os professores conhecem as ruínas e estabelecem, juntamente com os monitores, o enfoque que será dado à visita. Ao término do passeio, os estudantes das escolas da região são convidados a voltar em outro fim de semana com seus familiares, quando fazem eles mesmos o papel de monitores - uma idéia que vem obtendo sucesso no objetivo de envolver a comunidade e fazê-la "apropriar-se" daquele bem cultural.

As visitas podem ser feitas todos os dias, inclusive domingos e feriados, das 9 às 16 horas, mas devem ser agendadas com antecedência pelo telefone (13) 3203-3901.

 

 

 

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