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Cenário complicado

Especialistas pedem mudanças nos mecanismos de apoio cultural

CARLOS JULIANO BARROS


Cena de "Cabra-Cega": pela Lei do Audiovisual
Foto: Divulgação

Não é de hoje que o Ministério da Cultura (Minc), comandado por Gilberto Gil desde o início do atual governo, sofre com a falta de dinheiro. A verba destinada a ele anualmente não chega a 0,5% do orçamento da União. A esse problema soma-se outro, também de ordem financeira: o contingenciamento de recursos. Não raro, ações consideradas prioritárias pelo Palácio do Planalto abocanham uma fatia do bolo que deveria fomentar atividades culturais pelo país afora. Em 2005, pouco mais da metade dos R$ 480 milhões originalmente reservados ao Minc chegou de fato a seu destino.

Nas últimas duas décadas, as políticas voltadas ao desenvolvimento dessa área ganharam novos contornos no Brasil, com o mercado assumindo não só a tarefa de financiar mas também de selecionar o que se encaixa ou não no rótulo de "cultura". Essa transformação bastante significativa se deve, entre outros fatores, a um mecanismo que atualmente constitui a principal fonte de investimentos do setor: as chamadas leis de incentivo.

Hoje, elas existem aos montes, nas esferas municipal, estadual e federal (ver texto abaixo), e permitem a empresas públicas ou privadas deduzir de seus impostos o valor aplicado no patrocínio de projetos culturais de artistas das mais variadas expressões, bem como na conservação e restauração do patrimônio nacional. Por meio da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual, as mais importantes e conhecidas, de âmbito federal, o governo deixa de receber uma parte do Imposto de Renda (IR) devido por uma empresa de alto faturamento, desde que ela canalize integralmente essa parcela - até 4% no caso da Rouanet e 3% no da Lei do Audiovisual - para projetos previamente analisados e aprovados por uma comissão do Minc.

Alguns números do próprio ministério mostram que, desde o advento dessa modalidade de incentivo fiscal, o volume de dinheiro destinado à cultura vem de fato crescendo em todo o país. Só pela Lei Rouanet, mais de R$ 500 milhões foram angariados no mercado no decorrer de 2005. Cinco anos antes, esse valor estava na casa dos R$ 289 milhões e, em 1996, não chegava a R$ 112 milhões. Outros dados, no entanto, revelam a face preocupante desse novo panorama. O número de projetos autorizados pelo Minc a buscar patrocínio nos departamentos de marketing das grandes corporações e que não conseguiram apoio algum é da ordem de impressionantes 65%. Some-se a isso o fato de que, de cada R$ 10 captados, R$ 7 ficam na região sudeste - principalmente no eixo Rio-São Paulo.

Mas por que as empresas investem em cultura? "O incentivo fiscal não é o fator determinante, e sim a divulgação da própria marca. Há uma expressiva demanda por dinheiro para projetos, com uma possibilidade de patrocínio não tão grande. Então, são escolhidos aqueles que têm mais impacto", diz Cristiane Olivieri, advogada especializada no assunto. Já o diretor Toni Venturi, vice-presidente da Associação Paulista de Cineastas (Apaci), afirma que, embora essas leis sejam descentralizadoras, na medida em que permitem a empresas decidir sobre investimento cultural, e não somente ao Estado, na prática isso vira um problema. "Em geral elas estão pouco preparadas para entender a importância cultural de um projeto. Assim, os artistas reconhecidos acabam levando uma enorme vantagem sobre os novos, e sobre as atividades que não têm tanto glamour", explica.

Na verdade, tanto Cristiane quanto Venturi - que só conseguiu viabilizar seus filmes Latitude Zero e Cabra-Cega por meio da Lei do Audiovisual - reconhecem que o problema não são as leis de incentivo em si, mas a falta de outras formas de financiamento à cultura que dêem conta de corrigir as distorções criadas pelo modelo centrado somente nas escolhas feitas pelo mercado - que obviamente dá preferência a projetos de grande apelo de marketing. "As leis de incentivo nasceram com a marca da urgência, mas para serem complementares, e destinam-se apenas à indústria cultural. Existe uma parte da cultura que precisa de outro tratamento. Quem vai discordar da importância das manifestações folclóricas? Mas não vamos enfrentar o Homem-Aranha com o Bumba-meu-Boi. A indústria cultural depende dos incentivos fiscais. E, tirando a música e a televisão, ela não se sustenta financeiramente", comenta Paulo Pélico, secretário da Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo (Apetesp).

O sociólogo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Carlos Alberto Dória levanta ainda outro questionamento relevante. Ninguém atenta para o bem público que projetos realizados mediante leis de incentivo trazem, já que o ministério se limita à avaliação do orçamento das propostas encaminhadas. "O problema é que a ênfase está na produção, e não na distribuição e no consumo cultural. Há filmes em que o custo é de R$ 500 reais por espectador. Com esse valor, é possível ver todos os filmes importantes em um ano. Da forma como está, só se resolve o problema dos produtores", pondera Dória. Na realidade, é solução apenas para uma pequena parte dos produtores, como demonstram as estatísticas do próprio Minc. "É como se a saúde fizesse uma política para atender aos médicos e não aos doentes", compara Cristiane.

História

Do período colonial até as primeiras décadas do século 20, o fomento à cultura foi responsabilidade exclusiva do Estado. Artistas de reconhecido talento, como o compositor paulista Carlos Gomes ou o escritor carioca Machado de Assis, por exemplo, contavam com algum tipo de apoio para se dedicar às suas atividades. A partir da chegada de Getúlio Vargas à presidência da República, em 1930, inaugura-se um novo ciclo de investimentos no setor, e a cultura acabou se convertendo em ferramenta de propaganda de realizações do governo - fato bastante comum também durante o período da ditadura militar, algumas décadas depois.

Os primeiros sopros de interesse da iniciativa privada se fizeram notar apenas no final dos anos 40, quando empresários impulsionados pela vaidade e pelo gosto pessoal assumiram a condição de mecenas. Na capital paulista, o conde Francisco Matarazzo Sobrinho, dono de um diversificado império industrial, criou o Museu de Arte Moderna (MAM) e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, enquanto o magnata das comunicações Assis Chateaubriand construiu o Museu de Arte de São Paulo (Masp). Nos Estados Unidos, essa prática já era comum desde o século 19. E, em 1917, os norte-americanos, sensíveis à vontade de investir de pesos pesados mundialmente conhecidos, como John Davison Rockefeller e Solomon R. Guggenheim, conceberam uma lei que previa benefícios àqueles que apostassem na área cultural.

No Brasil, a primeira experiência dessa natureza foi idealizada 20 anos atrás e vigorou até 1990. A Lei Sarney, como ficou conhecida, apesar de representar um valioso pontapé inicial na parceria entre Estado e mercado, acabou definhando em virtude do descontrole sobre a aplicação das verbas e de inúmeras acusações de supostos crimes fiscais, até ser sepultada durante a gestão de Fernando Collor de Mello - durante a qual, aliás, a política cultural atravessou um período nebuloso. O Minc foi rebaixado à categoria de secretaria, vinculada diretamente à presidência da República, e importantes organismos públicos de fomento foram extintos, como a Embrafilme.

Mas foi o secretário de Cultura de Collor que formulou, em 1991, aquela que pode ser considerada a base de toda a política de incentivos em curso no país. Batizada com o nome de seu criador, Sérgio Paulo Rouanet, a lei 8.313/91 define, na verdade, três fontes de recursos. A primeira é o Fundo Nacional da Cultura (FNC), administrado pelo Minc, que repassa dinheiro diretamente aos produtores. A segunda é o incentivo fiscal propriamente dito, pelo qual as empresas deduzem do IR o montante adiantado como patrocínio. Por fim, o texto também prevê a regulamentação - que até hoje não foi feita - de Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart), mecanismo típico de mercado com o objetivo, entre outros, de melhorar e ampliar a infra-estrutura do setor, por meio da construção de salas de cinema e teatros, por exemplo.

"O princípio da Lei Rouanet é bastante avançado, mas ela necessita de ajustes. Precisamos criar mecanismos que dêem conta da diversidade e das disparidades do Brasil, um modelo que seja bom para projetos tanto na Avenida Paulista quanto no interior do Amazonas", afirma Sérgio Xavier, secretário de Fomento e Incentivo à Cultura do Minc.

Problemas

Com a Lei Rouanet, as empresas não podiam deduzir integralmente do IR o dinheiro repassado aos projetos culturais, pois eram obrigadas a desembolsar R$ 0,36 para cada real investido. A partir do advento da Lei do Audiovisual, de nº 8.685 - criada em 1993 com o intuito de consolidar no prazo de dez anos a indústria cinematográfica no Brasil, e prorrogada por mais uma década a partir deste ano -, as empresas patrocinadoras dessa área passaram não só a descontar por inteiro do IR o total aplicado nos projetos como a poder lançar esse valor como despesa operacional. No final das contas, esse procedimento diminui o total de imposto a ser pago, já que para cada R$ 1 colocado em um filme o investidor "deduz" R$ 1,25. Dessa forma, tornava-se pouco atrativo apoiar outros segmentos que não o cinema. Isso causou desconforto entre os produtores de outras áreas, o que levou a uma mudança na própria Lei Rouanet: com exceção de eventos ligados à música popular e à edição de periódicos, que ainda seguem o modelo antigo, os patrocinadores não gastam hoje absolutamente nada de capital próprio.

"É algo que precisa ser corrigido, mas isso não pode ser feito de uma hora para outra. As companhias devem ser incentivadas a aportar recursos próprios, porque, da maneira como está, a totalidade do dinheiro provém dos cofres públicos. Seria melhor criar um fundo e um edital de seleção de projetos e distribuir diretamente a verba, sem a necessidade de intervenção de uma empresa no processo para decidir onde colocá-la", diz Xavier. Na opinião do advogado Fábio Cesnik, especialista na área, "as leis de incentivo destinam-se à criação de uma mentalidade de investimento em um segmento determinado. Elas não existem para ser eternas".

Mas nem todos pensam da mesma forma. De acordo com Paulo Pélico, é um erro considerar que elas devam ter uma finalidade didática, com o objetivo de educar empresários a aplicar dinheiro em cultura. "A Parmalat enterrou milhões no Palmeiras porque uma partida de futebol alcança um público que uma peça de teatro leva dez anos para atingir. Infelizmente, a indústria cultural brasileira está sucateada. Antigamente, havia espetáculo teatral de segunda a domingo. Paulo Autran, por exemplo, pegava empréstimo em banco e pagava com a bilheteria. Hoje, estamos nas mãos da caridade governamental. Diante disso, são necessários 100% de dedução, senão ninguém vai investir", diz.

Contudo, o problema crucial não reside nessa discussão. A realidade é que as leis de incentivo não representam apenas a maior fonte de recursos. Elas praticamente se confundem com a política de financiamento desenhada para a cultura, o que limita a visão sobre o que se enquadra ou não nessa categoria. "A Lei Rouanet criou personagens novos. Hoje, o produtor cultural que não tem habilidade ou capital para se organizar como empresa foi excluído", explica Dória. Isso fica ainda mais claro quando se leva em conta a burocracia necessária para a aprovação de um projeto pelo Minc e, posteriormente, a dificuldade de fazer a prestação de contas. "É irônico, mas é mais fácil conseguir R$ 500 mil do que R$ 5 mil", diz Cristiane.

Por outro lado, Toni Venturi crê que as leis de incentivo também contribuíram para formalizar o meio. "Sou defensor do produtor que se equipou e cresceu profissionalmente. Isso é muito sério: estamos mexendo com dinheiro público, com milhões que têm de ser muito bem aplicados", afirma. Porém, o cineasta também acredita que o Estado precisa dar mais atenção àquelas atividades que não possuem tanto apelo de marketing e que, por essa razão, encontram dificuldades para sua viabilização com recursos levantados no mercado, sejam elas manifestações tipicamente populares ou produções de vanguarda. Em tese, o FNC teria essa função. Mas, tirando o dinheiro reservado a algumas instituições públicas, como a Fundação Nacional de Arte (Funarte), o orçamento aplicado no fomento direto a projetos culturais de baixa monta foi de apenas R$ 7 milhões, no ano passado.

Horizontes

Para 2006, quando a Lei Rouanet completa 15 anos de vida, o Minc acena com alterações no seu funcionamento com o propósito de melhorar a aplicação dos recursos e democratizar o acesso a eles. A principal idéia é reservar um valor máximo para investimento cultural em uma determinada região e, por meio de editais públicos, abrir uma espécie de concorrência entre as empresas interessadas em bancar projetos que preencham as necessidades levantadas pelos Conselhos Municipais de Cultura e pelas Câmaras Setoriais - órgãos ligados ao próprio Minc com a missão de planejar ações para segmentos específicos, como teatro e dança. Assim, músicos do interior de Pernambuco não vão disputar o patrocínio com fotógrafos da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. "Para investir bem, é preciso primeiro conhecer as áreas onde existe demanda por dinheiro. O Estado vai orientar melhor, fazendo processos seletivos mais justos e transparentes", explica Xavier.

Outras mudanças de menor envergadura também serão feitas, como a criação de um cadastro de proponentes. Por incrível que pareça, a cada vez que um produtor cultural deseja enviar um projeto para ser analisado pelo Minc, para depois buscar patrocínio no mercado, ele precisa reunir novamente a vasta documentação exigida pelo ministério. Com a modificação, os dados ficarão armazenados em um sistema informatizado que poupará tempo e trabalho a ambas as partes. Além disso, o Minc também estuda a possibilidade de fazer análises mais rápidas de projetos de baixo valor, agilizando o processo e atenuando os efeitos da burocracia.

De 13 a 16 de dezembro de 2005, Brasília sediou a I Conferência Nacional de Cultura (CNC), que reuniu representantes de todo o país para discutir diversos temas, dentre os quais a questão do financiamento. A vinculação de 2% da receita da União para o Minc, antigo anseio de Gilberto Gil, figura entre as propostas da CNC. Mas nela também se discutiu um importante instrumento, talvez o mais relevante deles, que determinará as diretrizes para o desenvolvimento dessa área tão importante: a criação de um Plano Nacional de Cultura, à semelhança do que já ocorre, por exemplo, com a reforma agrária.

Na opinião de Carlos Alberto Dória, o principal desafio é debater de forma ampla e democrática o que a sociedade entende por cultura, para daí estruturar o financiamento às manifestações que ela julga importantes. Não se trata de jogar fora o que foi feito até agora, mas de repensar aquilo de que o país realmente necessita e o que deseja. Mesmo com todos os seus defeitos, as leis de incentivo hoje significam a parte mais expressiva do pouco investimento que existe na área de cultura, mas o modelo de financiamento centrado apenas nesse mecanismo já deu provas de que não contempla toda a demanda do setor. "Precisamos discutir tudo, desde o começo. É dinheiro público", resume Dória.


O caminho das pedras

As leis de incentivo à cultura funcionam como um tripé: em uma das pontas, encontra-se o governo, que aprova os projetos e concede os benefícios fiscais. Na outra, está a pessoa física ou jurídica que propõe o projeto e responde legalmente por ele. Por fim, existe a empresa patrocinadora ou investidora, que libera os recursos e se vale desses benefícios.

Existem leis nas três esferas do poder público:

• Os municípios autorizam a aplicação de uma parcela do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e/ou do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) em projetos culturais. O percentual varia de acordo com o definido pelas leis de incentivo em cada cidade. A primeira delas, criada em 1990, foi a Lei Mendonça, na capital paulista. Hoje, dezenas de municípios em todo o país seguiram o mesmo exemplo.

• Os governos estaduais permitem que os interessados em contribuir com a cultura destinem parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para projetos. Ao todo, 14 estados e o Distrito Federal contam com mecanismos dessa natureza, que também variam em cada uma das unidades da federação.

• O governo federal, por sua vez, deixa de recolher uma parte do Imposto de Renda (IR) desde que os beneficiados apliquem o recurso em projetos culturais, por meio da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual.

 

 

 

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