Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Falta filosofia

Temos profusão de estudiosos, carência de pensadores

CECÍLIA PRADA


Renato Janine Ribeiro
Foto: Gabriel Cabral

Renato Janine Ribeiro é um dos mais destacados filósofos do Brasil. Professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo (USP), ocupa atualmente o cargo de diretor de avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação (Capes), em Brasília. Aos 55 anos, projeta-se no cenário intelectual com uma abordagem ampla de pensamento, que lhe permite tratar com profundidade as questões mais relevantes do Brasil de hoje - educação, ética, política, história, comportamento -, mantendo um elevado padrão acadêmico, mas, simultaneamente, vertendo suas idéias em linguagem viva, acessível, capaz de atingir o público geral.

Após sua graduação, realizada na USP, Janine fez mestrado em Paris, na Sorbonne, em 1973, com uma tese sobre o filósofo inglês Thomas Hobbes. Seu doutorado foi feito na USP, em 1984. Defendeu a livre-docência em 1991 e foi aprovado em 1993 no concurso de titular, sempre da USP. Ocupou cargos como o de presidente da Comissão de Cooperação Internacional da USP e o de membro do Conselho Deliberativo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi secretário e conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e presidiu a Comissão de Programação Científica da reunião anual da entidade, em Natal, em 1998, e em Porto Alegre em 1999. Concluiu a orientação de 11 doutorados e cerca de 15 mestrados. Em 1998 foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito Científico. É autor de vários livros de estudos filosóficos e sociais, como A Marca do Leviatã e Ao Leitor sem Medo, sobre Thomas Hobbes; A Última Razão dos Reis, A Etiqueta no Antigo Regime, Recordar Foucault, A Sedução e suas Máscaras, O Afeto Autoritário, A Democracia, A República, A Universidade e a Vida Atual e Por uma Nova Política. Seu livro A Sociedade contra o Social: O Alto Custo da Vida Pública no Brasil ganhou o Prêmio Jabuti em 2001, na área de ensaio e biografia.

Problemas Brasileiros - A filosofia parece estar "na moda", hoje. Foi mesmo reintroduzida, no estado de São Paulo, no ensino médio. Quais são as perspectivas?
Renato Janine
- Sou quase cético. Desde que comecei a dar aula na USP, em 1975, me empenhei na volta da filosofia ao ensino médio, mas com o passar do tempo o que veio mesmo a me preocupar são duas coisas: o quase analfabetismo de boa parte dos jovens e o descaso que nossa sociedade tem pela educação e pelo conhecimento. Nesse quadro, a filosofia, que é quase um conhecimento pelo prazer de conhecer, que chances tem? Tenho defendido, em artigos e palestras, que ela não seja lecionada sozinha no ensino médio; que um projeto realista e capaz de ensinar filosofia aos jovens a articule com outras disciplinas, dependendo do projeto pedagógico da escola: com português, para se escrever com rigor e riqueza; com história e sociologia, para se pensar a sociedade; com as ciências, para se aumentar a qualidade do raciocínio científico.

PB - Existe realmente uma "fuga de cérebros" do Brasil, hoje?
Janine
- A questão é controversa. Em 2003 tínhamos 254 mil docentes no ensino superior brasileiro (somando todas as áreas), dos quais 54 mil doutores. Há espaço para a contratação de mais doutores, até porque naquele ano formamos 8 mil - e, historicamente, um terço deles vai para fora da academia (a indústria, a imprensa, os serviços). Um problema é que a lei atual, que data do governo passado, exige que uma parcela do corpo docente das universidades se componha de mestres ou doutores, de modo que boa parte das instituições de fim lucrativo demite doutores para contratar mestres, e ainda assim atende à lei atual. O projeto de lei de reforma universitária do governo propõe que uma parcela desses docentes mais titulados seja de doutores mesmo, e estende a exigência das universidades também para os centros universitários e as faculdades. Na Capes lutamos muito por isso. Mas é preciso que os interessados se mobilizem. Não vi a área de filosofia lutando por isso no Congresso ou na imprensa.

PB - Mas há um grande número de doutores desempregados?
Janine -
Na prática, o fato é que poucos doutores estão desempregados. Podem não ter o emprego que desejam, mas é preciso difundir doutores pelo país. Isto é, nem todos lecionarão no nosso eixo "Elizabeth Arden" - quer dizer, nos melhores lugares. Isso pode descontentar alguns, mas é ótimo que o país se desconcentre, que haja mais doutores lecionando fora de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. O verdadeiro problema não está aí, porém: é que um doutor dificilmente dará o melhor de si se não estiver lecionando num curso de pós-graduação. Explico. Um doutor é um pesquisador. Espera-se que lecione melhor que um não doutor, mas a razão de ser dele é pesquisar, o que geralmente exige um diálogo, um grupo de pesquisa. Um doutor sozinho não faz verão. E constatamos que grupos de pesquisa sem alunos - isto é, sem alunos de mestrado e doutorado - tendem a se estiolar. Portanto, quando difundimos doutores, precisamos formar grupos de pesquisa, e para que estes vivam é necessário criar cursos de mestrado e de doutorado.

PB - Pode dar alguns dados?
Janine - Dos 54 mil doutores que tínhamos no ensino superior em 2003, 34,5 mil lecionavam na pós-graduação (não só nela, mas boa parte deles também na graduação). É bom saber que dois terços desses docentes estão formando mestres e doutores, mas a verdade é que um terço está fora disso. Há várias razões para tanto. Alguns doutores são mais fracos (a Capes recebeu recentemente reclamação sobre uma brasileira que se doutorou na Espanha, e que não conseguia escrever os verbos no infinitivo: era "vê", "sabê", e não ver ou saber). O mais sério é que muitas vezes eles não têm densidade suficiente, mesmo sendo bons, para formar um grupo de pesquisa ou de pós-graduação. A Capes costuma pedir em torno de oito ou dez doutores para formar um programa, mas eles precisam ter ligação entre si. Em certas instituições, isso não acontece. Esse é um desafio, mas que não pode ser tratado de maneira paternalista. Recebi há poucas semanas queixa de uma aluna de tradução, que reclamava da inexistência de programas específicos no centro-oeste, da falta de revistas especializadas no assunto: concordo com ela, mas isso depende de os pesquisadores da área suarem a camisa. O Brasil é um dos países que mais investem na pós-graduação, mas um curso de mestrado e doutorado precisa começar de baixo, de dentro da instituição. Resumindo, o problema é o bom aproveitamento dos doutores e não apenas o seu desemprego. O desemprego é pequeno, o bom aproveitamento tem de aumentar muito.

PB - O senhor tem dito que "a filosofia é prioritariamente uma pergunta" - pode comentar?
Janine - Não sou o único a dizer isso. Talvez possa ser mais original se disser que a filosofia não traz respostas, pelo menos não na medida em que as ciências se propõem a dá-las. As ciências têm geralmente como ideal seu último resultado on-line. Renovam-se o tempo todo, e assim fazendo substituem o estado-da-arte anterior. A filosofia, não. Ela tem perguntas milenares. Não há refutação, na boa filosofia. Mas também é bom dizer que essa percepção que estou enunciando é recente. Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, refuta Hobbes. Ou acredita que o faz, porque seus argumentos contra Hobbes parecem indicar um mau conhecimento da filosofia hobbesiana. Hoje, lemos com mais atenção os clássicos - e por isso vemos que as refutações de uns a outros foram frágeis. O positivo dessa nossa percepção é a convicção de que os grandes pensadores têm uma lógica interna que é a de cada um, ou de cada grupo deles, sendo impossível refutá-los a partir dessa lógica - e sendo errado refutá-los com base numa lógica que não seja a deles. Daí que pelo menos os grandes filósofos se tenham tornado irrefutáveis, o que não quer dizer que sejam certos. Saímos, no caso deles, da dicotomia certo/errado. Ninguém usa essa dicotomia para falar do Quixote ou de Madame Bovary; por que empregá-la para A República ou O Contrato Social? Agora, essa leitura mais atenta que os filósofos contemporâneos fazem do passado talvez também os torne mais fracos. Esse é o lado negativo dessa percepção que temos. Reduz muitos deles a bons historiadores da filosofia, não a filósofos. O historiador da filosofia constitui uma profissão bem mais recente que a de filósofo. Há filósofos desde 2,5 mil anos, historiadores da filosofia, há 250 anos. Será que para alguém ser um bom filósofo precisa ser mau historiador da filosofia, precisa entender errado o que os outros disseram? Não sei. O fato é que hoje se lê melhor, mas se escreve pior: isto é, historia-se mais, pensa-se menos. Temos profusão de estudiosos, carência de pensadores. No Brasil, isso é mais sério do que na Europa e nos Estados Unidos, porque implicitamente acatamos uma divisão internacional do trabalho que deixa a filosofia para os países do Atlântico Norte e nos restringe ao comentário. Discordo desse recorte e tenho-o combatido, em artigos e livros.

PB - Como avalia a questão da objetividade em filosofia política? É possível fazer uma distinção entre "ciência" e "ideologia"?
Janine - Essa distinção foi muito utilizada por Louis Althusser, que teve enorme importância nos anos 60. Penso que ambos os termos podem ser empregados de maneira rica se, porém, os enfraquecermos. A própria ciência, desde os trabalhos de Karl Popper, renunciou a usar o verbo provar para suas teses. Teses científicas são falsificáveis, isto é, somente é científica a asserção que indica de que modo ela própria poderá ser dita falsa, ou refutada (por exemplo, a fórmula adequada para a lei segundo a qual "a água ferve a 100 graus centígrados" é que isso vale até se notar água fervendo a outra temperatura). Isso é fascinante, porque significa que a chamada lei científica está sempre em sursis.

Já a ideologia, que seria a prima fraca da ciência, aquela em que o interesse obscurece o rigor do conhecimento, é o ar que respiramos. Quando agimos, é mais porque nossos interesses e paixões o ditam do que porque a razão e a ciência nos esclarecem. O conhecimento rigoroso é um meio poderoso, mas escolhemos os fins em função de fatores mais afetivos do que racionais. Quando se lida com a filosofia política, como é o meu caso, o preconceito contra a ideologia corre o risco de fazer-nos perder o cerne mesmo do que é a ação humana.

PB - Como, na sua opinião, se situa o homem de hoje em relação à sua busca de um Estado que lhe proporcione condições satisfatórias de vida? É válido continuar a falar em "esquerda" e em "direita"?
Janine - É válido, se seguirmos a sugestão de Norberto Bobbio: os extremos (da direita e da esquerda) são contra a liberdade; e a esquerda se distingue da direita porque valoriza a igualdade. Assim, a direita não-extremada respeita a liberdade, e a esquerda democrática tem a vantagem, que faz que Bobbio, eu mesmo e outros a endossemos, de ser a única posição que une a defesa da liberdade e a da igualdade (mesmo que essa igualdade não seja identidade, não seja total). Bobbio foi muito sagaz, porque o pensamento liberal prefere dizer que a direita defende a liberdade (de iniciativa ou de empreender) e a esquerda, a igualdade. Com sua sugestão, que compartilho, Bobbio faz que a esquerda democrática tenha algo a oferecer que vai adiante da direita democrática: ambas defendem a liberdade, mas a esquerda prioriza, também, a redução da desigualdade.

PB - Há tempos o senhor fez uma distinção entre "espírito republicano" e "espírito democrático", afirmando que o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) era republicano sem ser democrático e o Partido dos Trabalhadores (PT) era democrático sem ser republicano. Isso vale para nossos dias?
Janine
- Chamei, anos atrás, de "tragédia light brasileira" o fato de nossos dois melhores partidos se cindirem. O Brasil seria outro se, ao fim do episódio Collor, PT e PSDB promovessem uma renovação da política nossa, em termos éticos e de combate à injustiça social. Mas houve ainda assim um aspecto positivo nessa divisão: ela acabou com a liderança política dos partidos egressos da ditadura. Foi muito melhor termos um fla-flu entre PT e PSDB do que uma disputa nacional em que ACM ou Maluf tivessem chances de ganhar. Contudo, pagamos um preço por isso. No poder, PT e PSDB se aliaram ao atraso. Suas virtudes não se somaram. A virtude do PT é sua prática democrática. Ele capta as ações de baixo para cima, faz que os grupos de descontentes se articulem e lutem pela justiça. A virtude do PSDB é seu discurso republicano. Ele sabe que não basta unir todos os grupos de descontentes, é preciso tornar coerentes suas reivindicações. Para dar um exemplo puramente hipotético, que não vivenciamos, há um limite entre defender os direitos das prostitutas e a liberação sexual. Podemos, sim, exigir que elas não sejam agredidas, mas num certo momento a liberação sexual reduzirá sua clientela. Unir o espírito republicano (isto é, do pensamento da totalidade como condição para a ação) do PSDB com o democrático (isto é, da organização dos injustiçados como condição para a sua emancipação) do PT não foi possível, por enquanto. Não parece possível tão cedo, tal o ódio que tomou conta da nossa cena política. Mas não temos saída fora disso. Infelizmente, a tragédia light se tornou hard.

PB - Quais as lições que podemos tirar da atual crise política brasileira?
Janine -
A principal é que tiramos a lição errada e insuficiente do impeachment de Fernando Collor. Muitos de nós celebramos o fato de se tirar do poder, rigorosamente dentro da lei, um presidente que agiu errado. Mas ficamos no moralismo. Não fomos além dele. Não chegamos ao que é a política. Na ética, tendemos a distinguir o certo do errado, o bem do mal; dialogamos pouco. Ela tende (erradamente, penso eu, mas isso é outra coisa) ao monólogo. Mas, na política, o diálogo é essencial. Sem ele, nada vale a pena. Quer dizer que na política o respeito ao outro significa aceitar que nossos valores não são os únicos. Por exemplo, eticamente posso condenar o aborto como assassinato. Mas, se passo à esfera política, não posso ignorar que o aborto ilegal é um drama social enorme. Não posso dizer que meu valor moral (a defesa da vida) seja superior ao valor de outras pessoas (o desespero diante de uma gravidez indesejada e insustentável). Ora, avançamos pouco ou mesmo nada nessa aceitação de que haja valores diferentes dos nossos. Dei o exemplo do aborto, mas vejam que há setores da direita que entendem que movimentos sociais são, por definição, criminosos! Isso fede ao século 19, quando parar as usinas era visto como roubo ou coisa pior. Por isso, a única lição que podemos tirar da atual crise - e que não vamos tirar, receio muito - é que sejamos mais modestos ao atirar a primeira pedra, e compreendamos que a política pode e deve ser ética, mas não no sentido de valores únicos e incontestes. Aliás, até sou otimista quanto a achar que essa idéia que exponho vai se desenvolver, mas não creio que chegue a galvanizar a população, que hoje se vê dominada por um moralismo fácil da mídia e da oposição.

PB - Mas isso é maquiavelismo... Então, na sua opinião, os fins justificam os meios?
Janine - Não, de forma alguma, até porque não é assim que entendo Maquiavel. Todo fim acaba, a certa altura, se tornando meio. Por exemplo, se alguém faz os piores acordos para atingir ou manter o poder, achamos que "os fins justificaram os meios"; porém, o poder também é um meio, digamos, para transformar a sociedade; e tais acordos podem tornar difícil essa transformação. Então, um fim justificou meios, mas o próprio fim faliu quando perguntamos para que finalidade ele era usado. Mesmo "transformar a sociedade" é algo que pode ser entendido de várias maneiras. Para a esquerda, é aumentar a presença do social; para a direita democrática, é ampliar a liberdade do indivíduo. Não dá para escolher só um desses dois lados e acabar com o outro. Uma direita que só invista no empreendedorismo favorecerá o egoísmo, uma esquerda que só aposte no social inibirá a liberdade individual.

 

Comentários

Assinaturas