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As aventuras da pesquisa ao ar livre

Cientistas saem a campo e enfrentam sol e chuva para estudar a natureza

EVANILDO DA SILVEIRA


Arte PB

Para a maioria das pessoas, sempre que se fala em cientista a imagem que vem à mente é de alguém, não raro meio maluco, de jaleco branco e óculos, fechado num asséptico laboratório, entre tubos de ensaio, pipetas e microscópios. Não é bem assim. Há, sim, os que usam jaleco e trabalham em laboratório, mas existem também, em grande número, os que desempenham suas funções em plena natureza. São entomólogos, biólogos, botânicos, zoólogos, geólogos ou arqueólogos, cujas atividades podem ser desenvolvidas em campo, ao ar livre.

Para realizar seu trabalho, muitas vezes eles andam com roupas sujas e molhadas. Passam noites em barracas precárias ou cavernas, ou ainda empoleirados em árvores. Encaram sol e chuva, chapinham na lama, superam corredeiras de rios e atoleiros de estradas. Enfrentam ataques de mosquitos e o risco de ser picados por cobras. Para esses pesquisadores, a ciência não está longe da aventura, e muitos vivem situações dignas de um filme de Indiana Jones. Mas não é ficção. É a descrição das dificuldades reais que fazem parte do trabalho de muitos desses profissionais.

Apesar disso, o estereótipo do cientista descrito no início desta matéria é universal e aparece bem cedo no imaginário das pessoas. O historiador da ciência Leopoldo de Meis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que estuda o tema há pelo menos 15 anos, comprovou isso numa pesquisa com estudantes de vários países, publicada no seu livro Ciência, Educação e o Conflito Humano-Tecnológico. Ele estudou três faixas etárias – de 5 a 7 anos, de 10 a 13 e de 15 a 17 – no Brasil, Estados Unidos, França, Itália, México, Chile, Índia e Nigéria.

Para evitar problemas de limitação do vocabulário, principalmente entre os mais novos, ele pediu que fizessem desenhos de cientistas. Praticamente todos os trabalhos mostraram um homem de jaleco branco manipulando tubos de ensaio num laboratório. Embora tenha concluído que a imagem dos cientistas, para jovens e crianças, é semelhante em todos os países, independentemente de fatores culturais, Meis não sabe por que isso ocorre.

Frankenstein

A seu ver, a recorrência de tubos e outros objetos de vidro nos desenhos talvez seja reflexo de um conceito predominante na Europa dos séculos 18 e 19, que identificava o cientista com o químico. As figuras eram também quase sempre de um pesquisador do sexo masculino e, às vezes, maluco. Meis atribui esse fato à influência do romance Frankenstein, de 1818, da escritora inglesa Mary Shelley, considerada a primeira feminista do mundo, que não pintou o cientista com boas cores.

Na vida real, não faltam histórias para desmentir essa imagem. O biólogo Miguel Trefaut Rodrigues, chefe do Departamento de Zoologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, já teve de abrir uma pista de pouso usando apenas um facão, no meio da floresta Amazônica, para poder ser resgatado por um avião monomotor, depois de ter perdido o barco. A aventura aconteceu em 1997, às margens do rio Vermelho, no município de Redenção, no sul do Pará. Rodrigues, que é herpetologista (especialista em répteis e anfíbios), e o colega canadense Claude Gascon estavam na região numa expedição de coleta de animais para estudo, tendo como quartel-general a aldeia indígena Ucre, dos caiapós.

Certo dia, eles resolveram ir até um local onde a floresta Amazônica se encontra com o cerrado. Para isso tiveram de subir o rio de voadeira, uma espécie de pequena lancha típica da região. O cacique caiapó Paulinho Paiakan e um sobrinho dele acompanharam os dois na viagem. No meio do caminho, surgiu um obstáculo: uma cachoeira. "Para vencê-la, foi preciso contorná-la por terra, carregando o barco, do qual só o motor pesava uns 60 quilos, equipamentos e mantimentos nas costas", conta Rodrigues. "Mas nesse caso tivemos sorte. Encontramos no local um grupo de seis caboclos que colhiam folhas de jaborandi (Pilocarpus jaborandi Holmes) nas terras dos caiapós. Paiakan não gostou e ordenou, como paga, que eles transportassem nossa tralha toda."

Vencido o primeiro obstáculo, os quatro seguiram viagem e acamparam no local onde desejavam coletar répteis e anfíbios para pesquisa. Ali tiveram de enfrentar outro problema: nuvens de piuns. "Era um inferno de mosquitos", lembra Rodrigues. "Havia tantos que para tomar banho no igarapé era preciso tirar toda a roupa na barraca e sair correndo pelado, jogar-se na água e voltar no mesmo pique." Depois de terminada a coleta dos animais, entre os quais havia vários exemplares de espécies novas, o grupo se preparou para voltar à aldeia caiapó.

Cadê o barco?

Como pretendiam sair bem cedo no outro dia, levaram todo o equipamento, incluindo espingardas e flechas dos índios, e quase toda a comida para o barco, que ficou amarrado no rio, a 200 metros do acampamento. Foi um erro. "Quando acordamos para partir, verificamos que estava chuviscando, mas isso não impediria nosso retorno", conta Rodrigues. "Desmontamos o acampamento e saímos caminhando em direção ao rio. Mal andamos uns 50 metros, começamos a pisar na água, que não estava ali no dia anterior. Avançamos mais um pouco e... cadê o barco? O rio estava na copa das árvores e nem sinal da voadeira. Havia chovido nas cabeceiras do rio, e seu nível havia subido bastante."

Durante cerca de três horas, eles mergulharam nas águas barrentas da enchente, deslizando pelos troncos submersos das árvores à procura do barco. Acabaram encontrando-o, mas o motor estava inutilizado. "A sorte é que o Paiakan sempre carrega um rádio e conhece as freqüências em que operam os dos aviões de garimpo da região", lembra Rodrigues. "Conseguimos falar com um piloto, mas não havia lugar para pousar. O único jeito era limpar uma área no meio da mata rala. Foi o que fizemos. Levamos quatro dias, nos alimentando com duas colheres de arroz por dia e alguns frutos, para abrir uma pista com 278 passos de comprimento (uns 300 metros). Foi assim que fomos resgatados. Primeiro Gascon e eu e, depois, numa segunda viagem, Paiakan e seu sobrinho."

Outro biólogo, Aldo Malavasi, ex-colega de Rodrigues na USP que hoje atua na iniciativa privada, também se viu às voltas com uma enchente repentina. Ele jamais se esquecerá do aperto que passou nas corredeiras do rio Oiapoque, na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa, em 1998. Na ocasião Malavasi era chefe de um programa da Organização das Nações Unidas (ONU) para erradicação da mosca-da-carambola (Bactrocera carambolae) no Amapá, na Guiana Francesa e no Suriname. Ele viajou de helicóptero de Caiena até o sul da Guiana Francesa, e depois navegou mais três horas até uma aldeia indígena. "O diabo foi a volta, pois houve um problema com o helicóptero e tive de retornar de barco", recorda.

Se fosse só isso, nada de mais. O drama começou depois que caíram chuvas torrenciais e o nível do rio subiu bastante, formando corredeiras de velocidade impressionante. Com ele, viajavam dois garimpeiros, donos do barco, e mais uma senhora. Ingenuamente, Malavasi perguntou se havia coletes salva-vidas. "Responderam que só tinham o ‘salva-brasileiro’, uns tamborzinhos de plástico, embalagens vazias de carne suína importada de Ontário, no Canadá", conta. "Fiquei pensando: mas como é que essa carne veio parar neste fim de mundo?" Malavasi passou cerca de três horas agarrado a um tamborzinho enquanto o barco pipocava pelas corredeiras. "Fiquei me amaldiçoando e perguntando o que fazia ali, por que não estava na minha sala na USP", lembra.

Recursos extremos

Para superar dificuldades inesperadas como essas e levar adiante suas pesquisas, muitos cientistas chegam a extremos. Foi o que fez há alguns anos o médico-veterinário e doutor em genética José Maurício Barbanti Duarte, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias do campus de Jaboticabal da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Durante quatro anos ele e seus colaboradores tentaram encontrar populações de uma espécie nova de cervídeo, o veado-bororó-de-são-paulo (Mazama bororo), que eles já haviam descrito a partir de animais de cativeiro. "Era necessário, entretanto, descobrir onde ela ocorria na natureza", explica Duarte. "Após um bom tempo de exploração em algumas unidades de conservação, tivemos indícios de que a espécie vivia em um parque estadual de São Paulo."

Teve início, então, um trabalho demorado para tentar capturar um exemplar da nova espécie. Usou-se de tudo: cevas feitas com frutas, milho, pasta de amendoim. "Nada disso foi capaz de atrair um espécime", conta o pesquisador. "Mas, depois de algum tempo, armadilhas fotográficas nos revelaram que eles se alimentavam de algumas árvores frutíferas. Esperamos até o ano seguinte, quando essas árvores deram frutos de novo, e subimos numa delas, por cinco noites seguidas. A espera foi inútil." Foi aí que, desconfiada de que o cheiro de gente estava afastando os bichos, a equipe lançou mão de um recurso extremo. "Para resolver o problema, impregnamos nossas roupas com fezes e urina de animais de cativeiro", conta Duarte. "Mas nem após uma noite de frio e mau cheiro tivemos sucesso."

Foi preciso que a própria equipe desenvolvesse armadilhas para que, em julho de 2000, finalmente um espécime fosse capturado e, assim, ficasse confirmada a existência da espécie em vida livre. "Instalamos no animal um rádio-colar para um estudo ecológico, mas dois meses depois uma onça matou nosso bicho", diz ele. "Foi muito azar. Mas ainda estamos na luta, tentando saber um pouco mais dessa espécie tão particular."

Embora nem todo cientista tenha um caso dramático ou extremo como esses para contar, todos eles enfrentam pequenos ou grandes problemas para realizar suas pesquisas de campo. Muitas vezes, além dos obstáculos inerentes ao trabalho no meio do mato ou em locais de difícil acesso, alguns pesquisadores se deparam com a desconfiança da população local. Que o diga a arqueóloga Denise Schaan, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), que viveu essa situação durante uma escavação na ilha de Marajó, em 2002. "Os caboclos do local não entendiam por que saímos da cidade para passar dificuldades em busca de coisas que para eles eram banais, como pedaços de cerâmica indígena", diz. "Eles chegaram a pensar que havia ouro nos cacos e quebraram alguns para verificar."

Dificuldade inesperada

Nessa mesma ocasião, Denise se deparou com outra dificuldade inesperada: a superstição dos nativos. "Estávamos escavando uma área de sepultamento de um sítio e encontramos urnas funerárias, cheias de sedimento e alguns ossos", lembra. "Além da equipe composta de estudantes e técnicos, eu havia contratado, por intermédio do capataz de uma fazenda, quatro homens para nos ajudar. Geralmente eles trabalhavam na roça e na pesca. Eu estava pagando cerca de R$ 18 a diária, quando o preço normal era R$ 12, e eles estavam contentes com isso."

Com a descoberta de mais e mais urnas, Denise considerou que seria necessário escalar alguém para dormir no sítio durante a noite, para evitar vandalismo. "Perguntei então qual deles gostaria de ser o vigia", conta. "Nenhum quis. Ofereci o dobro da diária, e nada. O triplo... e nem assim. Então quis saber qual era o problema. Disseram que estávamos escavando o cemitério dos índios e que à noite eles viriam assombrá-lo. Falei que era bobagem e perguntei quanto queriam para vigiar o local. Mas eles responderam que por dinheiro nenhum do mundo fariam tal serviço. Eu não via outra solução senão eu mesma e mais alguém da minha equipe dormir lá. Na verdade o que me dava medo eram os escorpiões que encontrávamos durante o dia, não as almas penadas. No final das contas, o capataz se ofereceu para ficar, acertamos um preço e tudo foi resolvido."

Às vezes, os problemas vêm de onde menos se espera. Foi o que aconteceu com a engenheira Elisete Rinke dos Santos, do Setor de Lançamento de Balões, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que durante uma de suas pesquisas se viu às voltas com a polícia federal. Ela faz parte de um grupo que usa balões, veículos espaciais capazes de levar instrumentos científicos até uma altitude de 45 quilômetros, para realizar estudos atmosféricos e sobre geofísica espacial e astrofísica. Eles voam por dezenas de horas, ao sabor dos ventos estratosféricos. A carga útil (equipamentos científicos) é separada por telecomando, após o tempo de vôo desejado pelos cientistas, e cai de pára-quedas numa região previamente definida, onde é resgatada para outros lançamentos.

Numa operação realizada em 1987, a equipe de resgate efetuou a separação na região de Mato Grosso, por meio do equipamento de telecomando instalado num avião do Inpe. O experimento foi acompanhado pela aeronave até que os instrumentos chegassem ao solo. Em seguida a equipe que estava no avião pousou no aeroporto mais próximo, onde alugou um carro para ir em busca dos equipamentos. "Chegando à área de queda, encontramos a polícia federal à nossa espera com armamento pesado. Eles achavam que era um caso de contrabando, principalmente devido ao fato de lavradores terem visto o avião seguindo o objeto enquanto ele caía", lembra Elisete. "Ficamos sob a mira de metralhadoras até poder explicar e provar que se tratava de um experimento científico do Inpe. Realmente, passamos muito medo durante esses momentos."

Responsabilidade do cinema

Diante desses casos é de se perguntar: por que a imagem do cientista de laboratório ainda é tão forte e presente nos dias de hoje, ainda que aos poucos venha mudando? Para muitos desses profissionais, o cinema tem parte da responsabilidade por isso. "Hollywood difundiu o mito do cientista maluco, como o Frankenstein, que poderia liberar na natureza forças desconhecidas e perigosas", diz o glaciólogo Jefferson Cardia Simões, do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas, do Instituto de Geociências, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Esse mito acabou sendo reforçado com a invenção da bomba atômica e da de hidrogênio."

Simões, que enfrenta o frio e o isolamento da Antártida para realizar suas pesquisas, acrescenta uma outra explicação, muito importante, segundo ele, para a origem desses mitos e estereótipos. "O homem moderno criou uma sociedade dependente no seu dia-a-dia dos produtos da ciência", diz. "Infelizmente, não fomos capazes, como civilização, de fazer com que a maioria da população entendesse o que é a ciência. Por isso, cada vez mais, a divulgação é essencial para mudar esse quadro."

Para o biólogo Adalberto Luis Val, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), essa imagem distorcida dos cientistas decorre da falta de informação e do comportamento quase de clausura, no passado, dos próprios pesquisadores. "Hoje, no entanto, isso está mudando", diz. "O cientista se convenceu de que o fazer científico é uma atividade social e que há necessidade não só de entender os anseios da sociedade na qual se insere, mas de compartilhar com ela as informações colhidas a partir de seus estudos."

Seja como for, apesar da falta de reconhecimento e de todas as dificuldades enfrentadas no dia-a-dia, os cientistas que saem a campo para realizar seu trabalho não reclamam. Depois de passado o perigo ou o susto, eles se divertem com o ocorrido. Orgulham-se do que fazem e garantem que os sacrifícios valem a pena. "Fazer o que fazemos é a única maneira de conhecer o Brasil e sua população", diz Rodrigues, da USP. "Nosso trabalho vale por isso – assim como pela aventura e pela ciência." 

 

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